A Palavra dos Leitores | 06-01-2013 00:13

Bom Retiro - Dissertação breve para uma festa de aniversário

A vida é um mistério. Se fosse um negócio os mais ricos compravam a saúde, eram felizes e prolongavam a vida até ao limite do seu dinheiro. A vida é um mistério e ainda bem. Nós somos filhos dos homens que nunca foram meninos: cavadores, marçanos, serralheiros, motoristas, ordenanças de escritório, criados de lavoura, eles começaram a vida muito cedo entre as praças da jorna da Estremadura ou do Ribatejo e as sombras pesadas das lojas e dosescritórios da cidade. O nosso tempo é hoje tempo de memória: um bairro, um tempo e um lugar nos anos sessenta do século XX. Quando os campinos não usavam telemóvel. Havia sempre crianças em casa quando chegava o homem do gazcidla e eleacendia um fósforo para provar que não havia fugas de gás. Não morreu ninguém e estamos cá para contar mas poderia ter acontecido uma explosão nas casas do Bairro do Bom Retiro. Havia sempre homens e rapazes a ver o jogo do chinquilho no café do senhor Jorge nas tardes infinitas de Verão e no som repetido das malhas sobre os paulitos. E os maços de tabaco «Definitivos» continuam a custar 17 tostões. Nas manhãs de Domingo, depois da missa do padre Moniz na Paroquial de Vila Franca, estava sempre gente nova nas bancadas do Campo do Cevadeiro a gritar pelo «União» e havia lá dentro no pelado rapazes da nossa turma. Por isso as camisolas tinham dois pesos: o tronco e os sonhos de cada um de nós na Escola e na Vida.A vida é um mistério. Estamos aqui e fomos há pouco tempo às Águas Férreas, ao Senhor da Boa Morte, à Ermida de Alcamé. Fomos a pé, fomos em grupo, fomos na carroça de um vizinho toda enfeitada com bandeiras e alecrim nos varais e um pano branco por causa do sol. Fomos e connosco foi o som da água em Santa Sofia, os golos gritados nos jogos ao lado do café do Birra para mudar aos 6 acabar aos 12, o homem da água sempre a chegar com o auto-tanque municipal à hora do romance na rádio. Viemos e connosco veio o fervor das orações de quem pedia em 1962 que a guerra já não chegasse ao nosso tempo de mancebos. Trouxemos no olhar a força dessa liturgia de palavras, no peito o sol e o pó das romarias, na boca as canções mais puras e simples como esta quadra quehoje cito de memória: «Quem é pobre sempre é pobre / quem é pobre nada tem / quem é rico sempre é rico / e às vezes não é ninguém». Afinal estas são também outras formas de poema pois em todos os casos (oração, viagem, canção) as palavras servem para juntar de novo o que o tempo separou, a noite ajudou a esquecer e a memória veio depositar numa mesa de festa de aniversário. A vida é um mistério. Não é um negócio. Às vezes no meio do silêncio, da solidão e da melancolia é possível uma tentativa para decifrar os mistérios da vida. José do Carmo Francisco

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