Crónicas do Brasil | 30-10-2015 11:09

Os doze trabalhos de Hércules e mais um

Os doze trabalhos de Hércules e mais um
Não é sempre que alguém se vê acordado, às três da manhã, diante da janela de casa, a olhar a rua silenciosa. Para quem costuma trocar o dia pela noite, por hábito, prazer ou pelos imperativos do trabalho, não significa muita coisa. Mas para quem prefere dormir e acordar em horas regulares e trabalhar, de preferência, enquanto brilha o sol, o momento é excepcional. Não bastasse isso, começa a cair, como de encomenda, uma chuvinha mansa. Como ao lado há um estacionamento com telhado de zinco, a chuvinha de nada ensaia ali a sua doce fúria, chegando quase a parecer um temporal. Acabo, excepcionalmente também, de trabalhar – e creio merecer uma cerveja diante da janela, de frente para a rua onde sequer os gatos se fazem presentes a esta hora. Na verdade, acabo de me distrair e, até mesmo, de rir um pouco, fixando o texto de O 13º trabalho de Hércules, de Orígenes Lessa, preparando mais um título para a editora paulista que vem reeditando a obra do escritor. É um livro na fronteira entre dois gêneros, o infantojuvenil e o adulto, delicioso e divertido, como tantos do autor. Neste, Orígenes Lessa traz o personagem mitológico, o herói grego, para o Rio de Janeiro dos anos 1970, imaginando que, depois de cumpridos os célebres 12 trabalhos, Hércules teria um 13º trabalho a realizar. Que trabalho será? Esse é o mote e, claro, o segredo da narrativa. Arrastado pela curiosidade, vamos avançando, entre o trabalho e a diversão, e, pelo cotejo com duas edições anteriores, expurgando o texto dos equívocos eventuais de revisores desavisados. Na prosa do escritor, que foi casado com uma portuguesa da gema, encontramos, em certos momentos, os cacoetes do seu convívio diário com a esposa. No livro em questão, encontro “Moscovo”, grafia portuguesa para “Moscou”, e pouco adiante, de novo o nome da capital da Rússia, desta vez grafado à brasileira: “Moscou”. Com frequência, nos diálogos, em vez de ”sim”, ou de “pois sim”, expressões afirmativas comuns entre nós, encontro vários “pois não?”, a dúbia indagação comum em Portugal, que parece negar quando, na verdade, afirma. O “Moscovo”, grafado assim em todos os países lusófonos, exceto o Brasil, deve ser padronizado, e vira Moscou. Mas nesses “pois não?”, obviamente, não se pode mexer – Orígenes tinha todo o direito de fazer a sua mediazinha com a dona Maria Eduarda, e, ao mesmo tempo, manifestar o que talvez fosse nostalgia da pátria-mãe. Mas será ainda nisto – no trabalho – que pensa esse camarada que acabou de trabalhar? Não. Ou antes, pensa indiretamente. Pensa na imaginação fabulosa do autor, que trouxe o herói do seu mundo mítico para o Rio de Janeiro do nosso tempo. Pensa na fascinante liberdade da imaginação. Logo, de volta ao computador, sem deixar de olhar para fora, ele acha que, afinal, encontrou o seu assunto. Será? A rua não é a mesma. O silêncio, a chuva, os reflexos da água no asfalto, tudo a modifica. Há qualquer coisa de infinito, de sideral nos reflexos e no persistente silêncio. Não, o que acabei de encontrar, nos descaminhos da memória, não foi o assunto da crônica, mas a lembrança de certa viagem de um ano atrás, exatamente um ano: numa ambulância, em companhia de uma irmã e uma enfermeira, acompanhávamos na volta para casa nossa mãe de 94 anos, que acabava de sair de uma cirurgia de risco. Na idade, qualquer coisa era risco. Dois dias depois, 31 de outubro, ela nos deixou para sempre. A imaginação não busca – nem quer – encontrar nexo entre pensamentos e imagens. Ela é perigosamente livre Assim, o que resta, no silêncio da rua, como nexo possível, é o sentimento de que a tarefa mais dura, o trabalho mais penoso – não há herói mítico capaz de suportá-lo sem dor – é carregar um luto durante um ano inteiro e, de repente, tomar consciência que se há de carregá-lo pelo resto da vida. São os riscos de ficar diante de uma janela, com um copo de cerveja, à mercê do tempo e do infinito, às três horas da manhã.

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