Crónicas do Brasil | 07-01-2016 13:58

Camus e a descoberta do feijão-preto – ou vice-versa (I)

Camus e a descoberta do feijão-preto – ou vice-versa (I)

A comparação entre livros e comida é um clichê barato, uma banalidade – mas me permitam dizer que não deve ter sido por acaso que descobri Camus no mesmo dia e lugar em que descobri, também, um feijão-preto inigualável.

A descoberta de um grande escritor, aquele que você vai ler e reler pelo resto da vida, não é uma experiência qualquer. Não importa a circunstância, se prosaica ou não, é algo que não se apagará de sua memória. A comparação entre livros e comida é um clichê barato, uma banalidade – mas me permitam dizer que não deve ter sido por acaso que descobri Camus no mesmo dia e lugar em que descobri, também, um feijão-preto inigualável. Na época, eu tinha o costume de ler ao ar livre. Meu primeiro Hemingway foi O último bom lugar (The last good country), lido no quintal da casa da minha adolescência em Januária. Por quem os sinos dobram, deitado numa rede de fibra de buriti, entre duas árvores, noutro quintal, o da casa da tia Guiomar, no Gama (Brasília): três dias de suspensão do tempo, durante o longo feriado de Carnaval, mergulhado nas páginas de um romance inesquecível. Nada, porém, que se iguale ao primeiro Camus, inclusive porque eu tinha acabado de chegar ao Rio de Janeiro. A primeira caminhada foi da rua do Catete, altura da Dois de Dezembro, até o Passeio Público, passando pela Glória e a rua da Lapa. A primeira cerveja foi num bar da Buarque de Macedo, o Azteca, conhecido na intimidade por Risca-Faca, o que dispensa explicações. Pela espécie de república onde fui morar, já haviam passado outros estudantes de Januária. Na sala, perto de um sofá tão roto que se via por baixo seu esqueleto de madeira – ele me servia de cama –, havia uma pequena estante com cerca de trinta livros. Fui conferir. Entre a maioria de didáticos, o título de um romance me chamou a atenção: A morte feliz. Como era possível? Foi naquele sofá roto, que acomodava mal os ossos do magrelo que eu era então, que li a história de Patrice Mersault, condenado à morte por um golpe de ar(i) no mesmo dia em que mata um inválido de guerra. Claro que depois daquele dia resolvi que não descansaria enquanto não tivesse lido todo – todo! – o Camus. Com ele, acabava de descobrir – espanto dos espantos – que sim, era possível. De manhã, todo mundo saía para o trabalho ou para seus cursinhos pré-vestibular, e o novato ficava só – e sem dinheiro. Uma vez por semana vinha uma senhora – dona Lúcia – fazer a faxina e cozinhar. Foi quando o mineiro, até então habituado ao feijão-mulatinho do dia a dia, descobriu que no Rio o feijão cotidiano era o preto. Toda semana aquela santa senhora deixava um panelaço do melhor feijão-preto que já comi. Meses depois, quando eu quis reler A morte feliz, não encontrei mais o livro na estante. Eu havia falado dele com tanto entusiasmo que um colega – em surdina – o levou para Januária, entregando-o ao dono cujo nome se via na folha de rosto: Márcio Tupiná. Era outro dos vários januarenses que haviam passado antes de nós pela república. De volta à cidade, tempos depois, soube que Márcio Tupiná andava atrás de A peste, na tradução expurgada de Graciliano Ramos – dei-lhe o meu exemplar e peguei de volta A morte feliz, mais raro, que guardo até hoje. i) Camus sofreu de tuberculose na juventude, numa época em que a doença matava com mais frequência e quando se acreditava que podia ser contraída pelo ar.

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