Cultura | 21-03-2018 13:51

Hoje é Dia Mundial da Poesia

O MIRANTE associa-se ao dia Mundial da Poesia que se comemora hoje.

O MIRANTE associa-se ao dia Mundial da Poesia, que se comemora hoje, publicando poemas de António Ramos Rosa, João Rui de Sousa, Amadeu Baptista, José do Carmo Francisco, Anne Quetzal, Joaquim Fortunato de Valadares Gamboa, Luís de Miranda Rocha, Luíz Vaz de Camões, José Niza, Pedro Barroso, Hugo Santos, Pedro da Silveira e Álvaro F. do Amaral Netto, todos publicados em livro na colecção Alma Nova de O MIRANTE ou na editora Rosmaninho.

A data foi criada na 30ª Conferência Geral da UNESCO em 16 de novembro de 1999. O Dia Mundial da Poesia comemora a diversidade do diálogo, a livre criação de ideias através das palavras, da criatividade e da inovação. A data visa a importância da reflexão sobre o poder da linguagem e do desenvolvimento das habilidades criativas de cada pessoa.

António Lobo Antunes
A felicidade é acender um cigarro com outro,
começar um poema num lenço de papel ranhoso,
levantar voo com um peido
no meio de uma esplanada bem frequentada,
entrar no mar e sair da água com uma sereia no olhar,
aprender a foder com a picha murcha,
ir para a cama com uma puta e não sentir vergonha;
a felicidade é quando um homem sonha
sair da velha casa e regressar à nova morada,
adormecer ao teu lado de barriga cheia
comendo-te apenas as bolachas maria,
andar a cavalo nas tuas costas
e cair do cavalo para as tuas coxas,
com o cheiro do teu perfume e do teu suor
ir para a cama com outra mulher,
cair como um tordo nos teus braços
mas poder continuar a caçar aos tordos;
a felicidade é quando um homem sonha
e tudo o que a vida não lhe dá ele rouba.
Em Poemas Políticos e Eróticos
De Anne Quetzal

Marilyn Monroe
Gostava de ser mais ousada nas palavras e nos gestos;
se uma pessoa me fizer feliz eu faço mil pessoas
felizes; para sonhar precisamos de alimentar os sonhos
com pequenos gestos e segredos e palavras roubadas
ao silêncio; o nosso destino é morrer jovens; um pouco
de felicidade chega sempre na hora certa: o resto
é o incómodo da viagem; tantas palavras para te dizer
que estou sentada no sofá a tocar-me entre pernas
como um bela rapariga enamorada e sinto uma grande
emoção por já não me ver no espelho que tenho em casa
desde o dia em que ousei deixar de ser a puta da tua cara.

Tenho um livro para ler, uma paixão para alimentar,
um trabalho em mãos; o que é que uma poeta pode querer
mais da vida? respondem as tripas quando me sento
na sanita a fumar um cigarro: o teu problema é o tamanho
da barriga; tabaco a mais e planos de viagens na cabeça;
e o cabrão do anjo da guarda que fez de ti
uma mulher de família.

Gosto de ouvir a fêmea a gozar; o meu amor tem as mãos
firmes; roubei-lhe estes dois versos em quatro dias
de cama, mesa farta, sonhos azuis e muita conversa fiada;
fiquei sem forças e sem palavras quando pela última vez
me pediu para engolir o seu esperma e depois adormeceu
a beber as suas lágrimas; na despedida disse-me ainda
a chorar que era um cabrão que se entregava a qualquer
mulher de palavra fácil.
Em Poemas Americanos
De Anne Quetzal

Ditoso seja aquele que somente
Se queixa de amorosas esquivanças;
Pois por elas não perde as esperanças
De poder nalgum tempo ser contente.

Ditoso seja quem, estando ausente,
Não sente mais que a pena das lembranças;
Porque, ainda que se tema de mudanças,
Menos se teme a dor quando se sente.

Ditoso seja, enfim, qualquer estado,
Onde enganos, desprezos e isenção
Trazem o coração atormentado.

Mas triste quem se sente magoado
De erros em que não pode haver perdão,
Sem ficar na alma a mágoa do pecado.
Em Sonetos e Outros Poemas
De Luís Vaz de Camões

Irreal o real que por vezes incerto
que se vê que se ouve tão disforme e informe
construção do sentido que flui evolui
no sentido de que se agrava crescendo
perpepção das imagens tão real irreal
irreal percepção das imagens que vê
que ouvê das imagens sensação percepção
das imagens que vê que oscilam que tremem
Em Nocturnos Litorais
de Luis de Miranda Rocha

Eu sei que não sou de pedra,
Sinto de amor a paixão,
Tenho as leis da humanidade
Gravadas no coração.

Amei a Márcia, é verdade,
Eu ver a Márcia desejo;
Mas não que queira por ela
Ir afogar-me no Tejo

Bem pode um pastor amar
E no seu amar ser fino;
Mas não deve esta paixão
Passar a ser desatino.

Estas duas irmãs belas
São pastoras agradáveis;
Cada uma por seu modo,
Ambas se fazem amáveis.

Mas que importa? Elas vieram,
O seu fim foi ver a prima;
Não cuides que o nosso afecto
Lá nos peitos se lhe imprima.

Quais águas de trovoada
Quando vêm, pelo verão,
Passa a nuvem, não aturam,
Secam-se logo no chão.
Em Antologia Poética
de Joaquim Fortunato de Valadares Gamboa

VIAGEM
São as viagens apenas imaginadas
Sem início sem final sem trajecto
Nos intervalos das tardes demoradas
Quando o calor se transforma em objecto

Impossível de esconder nesta bagagem
Transformada rente à tarde em poema
Exercício de fazer uma viagem
Sem sair da cadeira do cinema

Viagens afinal não começadas
Num autocarro saído do postal
Sem bilhete nas janelas vigiadas
Sem data sem notícia sem jornal
Em As Emboscadas do Esquecimento
de José do Carmo Francisco

CANÇÃO MElO-TONTA
Este quase murmúrio.
que se repete, insiste,
esta música antiga.
que, tão débil, mal se ouve

onde a escutei, num tempo
que nem sei bem se foi?
(E os retratos, no álbum,
que ao seu soar sorriem)

Dir-se-ia que morre
e morrendo revive
o vago som, sem corpo,
da música d' outrora

(A caixa tem fendida
a tampa onde a pintura
figura uma menina.)
Doi-me esta pobre música

IV-1970
Em Poemas Ausentes
de Pedro da Silveira

Tenho razões inefáveis
para aceitar o temor
e invios sortilégios
para descrer a ilusão.

Um golpe de vento entrega
à distância
a folha de loureiro,

avança um homem
para a frente de batalha,

com um golpe de asa
avança,
lentamente.

A noite me perturba.
Sem que me oculte
oculto-me na treva,
o incêndio dos céus
ilumina a minha face.
Em As Tentações
de Amadeu Baptista

Talvez um dia peça:
"Desenha uma flor".

Ou o sol.
Ou o olhar.

Suponho que a tua mão
crescerá para mim
com a flor o sol e o olhar
suspensos da indecisão
do gesto.

A luz estará lá
insubornável
na clandestina cor
do silêncio.
Em A Cor
de Hugo Santos

Ribatejo! ... Roseiral
que nos perfuma e cativa!
Coração de Portugal,
sempre. nobre e sempre igual,
na paz, na força e na vida !

Ribatejo! ... Terra grande
quer na alma ou na alegria!
Em ti vibra, em ti se expande,
- Sempre grande!
Sempre grande·!
o Portugal de algum dia!

Ribatejo ! ... Madrugada
dum dia resplandecente!
Bendita chama doirada,
sempre pura e renovada,
sempre viva e reluzente!
Em Brasas da Minha Lareira
de Álvaro F. do Amaral Netto

CONSELHO DE MINISTROS
A mesa é utópica
a palavra é redonda

a sala é indirecta
a luz é rectangular

a caneta é mineral
a água é americana

a dúvida é regimental
a hora é cartesiana

a subversão é azul
a alcatifa é vermelha

e cada ministro
é uma ovelha
Em Poemas de Guerra
de José Niza

LUXÚRIA
Será possível tudo o que se vive
tudo o que transcende em nós e acredita?
Que pelo cheiro se conquiste o firmamento
e pela boca ele se alcance e se repita?

Será tudo verdade e tão enorme?
Será tudo demais? Então está bem!
O mar e o vento nasceram de ninguém.
Deus não existe. Mas também não dorme.

Será que vivo o que vivo ou estou vivendo?
É que vivendo tanto assim nem acredito
que os olhos vejam quadro tão estupendo
e os corpos vão tão longe no delito...

Se a loucura invadiu a nossa vida
que o desmando seja a festa do infinito;
descubramos na noite mais furtiva
que a luxúria vale bem mais do que esta escrito

Será tudo verdade e tão enorme?
Será tudo demais? Então está bem!
O mar e o vento nasceram de ninguém
Deus não existe. Mas também não dorme.
Em Das Mulheres e do Mundo
de Pedro Barroso

Eu presenteava-te
com a doença da minha sabedoria,
corn o terror de um escondido pranto,
com tábuas de música (requiens e cantatas).
com o som da minha natural pungência
e com frias palavras onde digo
que o mundo não tem cor ou está vazio
(isto é: sem o calor que é ave
ou árvore ou estrela
sem as lentas águas transformadas
nas turbulentas formas que são rio).
Em Obstinação do Corpo
de João Rui de Sousa

Pela primeira frase de um livro
se nora a chama do seu corpo
O que aparece é uma aparência
mas o seu todo
revela-se cm musical escultura
A face da melancolia adolescente
evidencia uma folhagem de fogo
ou a indolência deslumbrante da sua água
Espelhos cabelos árvores sombras veias
tudo se conjuga na monótona felicidade
de uma atitude que quer ser a presença
de uma onda que se levanta ou de uma coluna
que tem os lábios ferreis da conjunção
do que era apenas o fogo virtual
ou o silêncio da expectativa inquieta
É então que o cisne como uma folha que se abre
oferece a flor branca das suas plumas
e a palavra se torna a consumação do silêncio
Em Versões/Inversões
de António Ramos Rosa

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