Entrevista | 23-10-2013 18:19

A professora de Moita Flores que se desencantou com o aluno

A professora de Moita Flores que se desencantou com o aluno

Alecta Ferreira entrou na vida autárquica em 2005, pela mão de Moita Flores, que foi seu aluno de Filosofia em Beja e veio reencontrá-la em Santarém. Foi primeira secretária da assembleia municipal durante seis anos, até ter renunciado ao mandato por razões pessoais e também desiludida com o rumo que a política autárquica levava.

O mundo é pequeno e Portugal ainda mais e foi um acumular de coincidências que levou Alecta Ferreira, uma professora de Filosofia aposentada, a reencontrar “trinta e tal anos depois”, em Santarém, um seu ex-aluno do liceu de Beja chamado Francisco Moita Flores. Ou melhor, foi o aluno que reencontrou a professora, porque esta já residia na cidade desde 1974 e o ex-pupilo tinha acabado de chegar e acalentava a ideia de ser presidente da Câmara de Santarém. Foi assim, por uma série de acasos e vontades, que Alecta chegou à política autárquica em 2005, pela mão do ex-aluno.“No início da minha actividade profissional estive dois anos em Beja. Tive muitos alunos do 10º e 11º ano e quando o dr. Moita Flores, trinta e tal anos depois, equacionou a questão de se candidatar a Santarém procurou saber de algumas pessoas ligadas ao ensino que pudessem ter alguma sintonia ideológica com ele. Ouviu falar no meu nome, que é invulgar, e interrogou-se se seria a professora que lhe dera aulas de Filosofia em Beja. E de facto era. Foi ele que me convidou, exactamente porque foi meu aluno”, conta.Alecta Ferreira sempre se interessou por política, mas os afazeres profissionais e a vida familiar, com três filhos para criar, nunca lhe deram tempo para essas andanças. Em 2005, com os rebentos criados e casados, não resistiu ao convite. “Acabei por me envolver na vida autárquica por considerar que havia a possibilidade de se modificar a cidade de uma forma substancial. Achei que era possível abrir um pouco a cidade”.A professora de Filosofia, apreciadora de Kant e de Sartre, já não se recorda de Moita Flores nos bancos do liceu, mas tem a memória fresca acerca dos dois mandatos em que o autarca chefiou a Câmara de Santarém. “O seu legado tem aspectos positivos, obviamente, como a recuperação do Convento de São Francisco e do Jardim da República, mas também tem aspectos negativos, sobretudo no que toca ao aumento da dívida da autarquia e das prioridades que foram definidas”. Alecta Ferreira, recentemente eleita para um terceiro mandato na Assembleia Municipal de Santarém pelo PSD, acha que Moita podia ter definido melhor as prioridades. Pagar mais a quem devia, sobretudo às entidades que trabalham na área do apoio social, e gastar menos em coisas acessórias como festas e outras coisas. “Houve prioridades definidas com as quais eu efectivamente não concordei.”.E ela bem o avisou, pessoalmente. Foram as orelhas moucas do ex-autarca que contribuíram também para a renúncia de Alecta Ferreira ao mandato na assembleia municipal em Fevereiro de 2011. “Renunciei por razões de natureza pessoal mas também por um certo desencanto relativamente ao rumo que a política autárquica em Santarém estava a tomar”. Sentiu que estava a pregar no deserto. “Tinha feito algumas observações ao dr. Moita Flores para que baixasse os níveis de conflitualidade e desse mais atenção a alguns sectores que do meu ponto de vista eram verdadeiramente negligenciados. Ele aceitou sempre muito bem as minhas sugestões, sempre com muita afabilidade, mas digamos que não modificou em nada o seu procedimento”.As intervenções polémicas de Moita Flores na assembleia municipal, roçando por vezes o insulto pessoal, incomodavam-na, até porque por vezes atingiam pessoas que ela conhecia há muito tempo e por quem nutria estima. “Todos sabíamos que parte daquilo era teatro. Havia uma teatralização que esbatia um pouco a contundência daquilo que era dito. Mas efectivamente não gostava de ouvir certas coisas”, admite.Tal como não gostou de ler no jornal O Ribatejo (a poucas semanas das eleições autárquicas) a entrevista a Moita Flores em que este dizia que Ricardo Gonçalves, o seu sucessor, não tinha cabeça para gerir o legado que lhe deixou na Câmara de Santarém. “Neste momento, na política portuguesa há declarações infelizes e penso que esse foi também um momento menos feliz por parte do dr. Moita Flores”.De Ricardo Gonçalves, que não foi seu aluno, diz ter a melhor impressão e confia nas suas capacidades para enfrentar os tempos difíceis que se vivem. “É uma pessoa muito comprometida, que conhece bem o concelho. Penso que a sua ligação às pessoas, e a vontade de trabalhar, de colaborar, são características que neste momento melhor podem servir Santarém”. Foi aliás a convite de Ricardo Gonçalves que voltou a integrar a lista do PSD à assembleia municipal, tendo tomado posse na segunda-feira, 21 de Outubro. Diz que se vai envolver menos neste mandato, mas deixa desde já alguns conselhos ao presidente da câmara. “Todas as políticas ligadas às pessoas devem ter absoluta prioridade, como o apoio às escolas e às instituições de apoio social. Deve ser também dada atenção à limpeza e tratamento do espaço público. Penso que também seria muito importante contribuir para a criação de sinergias entre o politécnico e as empresas, embora aí a intervenção da câmara seja muito reduzida, para ajudar ao desenvolvimento económico da região”.Santarém não foi amor à primeira vistaAlecta Ferreira nasceu em Vouzela, distrito de Viseu, em 22 de Agosto de 1946. Licenciou-se em Filosofia pela Faculdade de Letras de Lisboa “nos longínquos anos de 1968”, mas na sua adolescência a preferência ia para a medicina. O pai demoveu-a por achar que poderia ter dificuldade em lidar com situações de doença e sofrimento e por ser uma profissão muito absorvente. Alecta escolheu então Filosofia para poder estudar Psicologia, pois em Portugal na altura não havia Faculdade de Psicologia. Já formada, fez carreira como professora, actividade que exerceu “com muito gosto”. Portimão, Beja, Oeiras, Bissau e Santarém foram os locais onde deu aulas. Aposentou-se há seis anos. É casada com um advogado, mãe de três filhos e avó babada de seis netos.Quando o marido cumpriu o serviço militar na Guiné acompanhou-o e lá deu aulas e foi directora do magistério primário entre 1972 e 1974. Estava na antiga colónia africana quando se deu a revolução de 25 de Abril. Conta que lá já se pressentia que ia haver qualquer coisa, só não se sabia quando. Veio viver para Santarém por opção profissional do marido. Queriam uma cidade onde pudessem trabalhar os dois e próxima de Lisboa, onde tinham a família. A cidade não foi amor à primeira vista. “Santarém na altura desagradava-me muito porque não a achava muito cuidada, tinha poucos jardins e zonas verdes e era muito fechada sobre si própria”. Mas o factor humano, graças aos conhecimentos que foi fazendo, acabou por compensar e foi-se adaptando. Com a aposentação sobrou tempo para outras actividades, integrando a equipa de fundadores do Banco Alimentar Contra a Fome de Santarém, onde é voluntária e dirigente. “Sindicatos dos professores representam uma agenda política Professora durante cerca de 40 anos, Alecta Ferreira considera que a função docente tem vindo a ser desvalorizada por sucessivos governos e que, também em resultado disso, a classe tem perdido prestígio social. Mas no retrato que faz do estado da educação em Portugal não isenta de críticas os sindicatos, que diz representarem sobretudo uma “agenda política” em detrimento dos verdadeiros interesses dos professores. “Eu era sindicalizada, mas não considero que os sindicatos representassem os interesses dos verdadeiros profissionais. Era mais dos oportunistas... Com toda a sinceridade, não tenho uma boa opinião acerca da actividade sindical ligada à classe docente”, diz Alecta Ferreira, que foi professora da Escola Secundária Sá da Bandeira Santarém durante mais de trinta anos.Alecta Ferreira reconhece que tem havido alterações negativas no âmbito do exercício da profissão e nem as relaciona com a indisciplina dos alunos, que em Santarém, na sua opinião, não tem a gravidade que se regista noutros pontos. “Penso que as condições de exercício da nossa profissão são muito piores do que eram, em termos remuneratórios e de mobilidade. Mas é inquestionável que continua a haver pessoas que ultrapassam tudo isto e cuja consciência profissional lhes permite fazer o melhor possível”.

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