Entrevista | 27-11-2013 18:00

Responsável das bibliotecas públicas de Vila Franca proibiu “As cinquenta sombras de Grey” por ser intragável

Responsável das bibliotecas públicas de Vila Franca proibiu “As cinquenta sombras de Grey” por ser intragável
O facto de o romance erótico “As cinquenta sombras de Grey” ser o livro mais vendido no mundo no último ano e meio, não é suficiente para fazer parte do espólio das bibliotecas públicas municipais do concelho de Vila Franca de Xira. O chefe de divisão da rede de bibliotecas, Vítor Manuel Figueiredo, leu a obra e classificou-a como demasiado má para ser adquirida pelo município e disponibilizada aos utentes das bibliotecas. Apesar de vários leitores já terem perguntado pelo livro nas bibliotecas do concelho, Vítor Manuel Figueiredo, 58 anos, continua a defender que é mal gasto o dinheiro na compra do livro da autoria de E.L. James. “Sem desconsideração por quem tem o livro e quem gostou de o ler, a verdade é que este é um livro mal escrito, intragável. É má literatura”, critica. Vítor Figueiredo, que trabalha na biblioteca de Vila Franca há 32 anos, garante que o espaço tenta sempre satisfazer o interesse do público. “Já nos acusaram de censura mas isso não fazemos. Tentamos reflectir os gostos de todos, desde o Saramago à Rebelo Pinto. Mas as obras têm de ter um mínimo de qualidade e as Cinquenta Sombras de Grey não tem nenhuma”, nota. Vítor Figueiredo garante que a biblioteca tem ao dispor “melhor literatura erótica” que a obra de E.L. James e dá os exemplos de Emmanuelle Arsan, Henry Miller, Anaïs Nin e Marquês de Sade. Cinquenta Sombras de Grey, livro que relata as aventuras sexuais de uma jovem inexperiente com um milionário que gosta de sadomasoquismo, vendeu 250 mil unidades em Portugal e 70 milhões em todo o mundo, rendendo à autora 95 milhões de dólares.Vítor Figueiredo diz que o cinema é responsável por criar livros praticamente desconhecidos em fenómenos culturais, como aconteceu com a trilogia de “O Senhor dos Anéis”, de JRR Tolkien, que esteve na biblioteca durante anos sem que ninguém lhe pegasse. “Depois de saírem os filmes tivemos de comprar vários exemplares de cada título, porque a afluência era de tal maneira grande. É como o vampirismo, está na moda”, sublinha. Em 2012 o livro de não ficção mais lido na biblioteca de Vila Franca foi “O diário de Anne Frank”, seguido de “Um político assume-se” de Mário Soares e “Os donos de Portugal”, de Fernando Rosas. Na ficção o mais lido foi “Sangue Fresco” de Charlaine Harris, seguido de “O último segredo” de José Rodrigues dos Santos e “Os Pilares da Terra” de Ken Follett.Bibliotecas são espaços de inclusão socialPara Vítor Manuel Figueiredo, as bibliotecas são cada vez mais importantes espaços de inclusão social. Sobretudo em tempos de crise e desemprego. Porque as pessoas procuram refúgio nos livros para esquecerem os problemas. “As bibliotecas são espaços para ricos e pobres. Entram pelas nossas portas todos os dias pessoas que sabemos que passam mal na vida. Aqui sentem-se bem, bebem um café, lêem um livro, vão à internet e assistem a um filme. Dessa forma afastam-se das suas realidades terríveis”, refere. O responsável recorda casos dramáticos, como uma mulher de Vila Franca, de classe alta, que era vítima de abusos sexuais em casa e se refugiava na leitura. “Nesses momentos terríveis fechava-se a ler, as histórias eram o castelo dela, a sua muralha. E conseguiu ultrapassar essa fase negra da vida através da leitura”, conta. Já os políticos, esses, muito raramente aparecem na biblioteca de Vila Franca. “Nunca os vejo por aqui, embora alguns gostem de dizer que conhecem bem a biblioteca”, nota. Mas vê com frequência alguns dirigentes associativos a ler os jornais ou a requisitar livros ligados ao teatro, música e pintura.No último ano 78 713 pessoas foram à biblioteca de Vila Franca de Xira. Registaram-se 18 875 requisições de livros. “É um número que podia e devia aumentar”, admite o responsável. Nos últimos anos não houve autores conhecidos a visitar a biblioteca, só mesmo nas iniciativas que são promovidas com frequência no pequeno auditório do espaço. “Há bibliotecas do país e da região que não têm dinheiro para comprar os jornais diários”, lamenta.Sem livros novos afastam-se as pessoasVítor Figueiredo defende que abrir uma biblioteca não é só fazer uma inauguração “com pompa e circunstância”. “Em termos culturais é preciso adquirir regularmente livros, jornais, material áudio e filmes. É isso que é o sangue novo que entra na biblioteca. Uma biblioteca que não recebeu o último livro do Lobo Antunes ou do António Damásio, o livro que está na berra, então está a afastar as pessoas. Sempre que uma obra tem qualidade deve ser adquirida, senão a biblioteca fica moribunda”, avisa. A biblioteca de Vila Franca tem 80 836 documentos, dos quais mais de 60 mil são livros. O mais antigo, sobre horas marianas, data de 1824 e é preciso autorização para o consultar. O jornal mais antigo é “O Campino”, de uma edição de 1879. Ao todo, em todas as cinco bibliotecas do concelho, sala de leitura do Bom Sucesso e bibliomóvel, estão 148 337 obras ao dispor da população. Em depósito estão largos milhares de livros que, por estarem desactualizados ou estragados, não podem ser disponibilizados ao público. A biblioteca de Vila Franca é procurada por muitos moradores de concelhos limítrofes, especialmente de Alenquer, Arruda dos Vinhos, Benavente e Azambuja. “A nova biblioteca vai ser um ponto de atracção para o concelho e espera-se que seja um edifício para várias décadas, porque vai estar equipada para aguentar um fundo documental para os próximos 40 ou 50 anos”, refere.Uma proposta de namoro dentro da “Tieta do Agreste”O responsável das bibliotecas um dia encontrou uma proposta de namoro dentro do livro de Jorge Amado, “Tieta do Agreste”. “Percebia-se que tudo devia ter sido previamente combinado e que a pessoa em questão devia perceber que o livro estaria na biblioteca a determinada hora com o recado lá dentro. Não fomos capazes de o tirar, era muito bonito e deixámos. O recado chegou ao destino, mas não sabemos se o namoro foi aceite”, recorda com um sorriso. Infelizmente, ninguém ficou com uma cópia do que foi escrito. Outro episódio passou-se com três alunos. “Abriram a janela e enquanto um deles atirava os livros para a rua os outros dois apanhavam-nos no exterior”. O grupo acabou por ser apanhado. Os tablets nunca vão matar os livros Na opinião de Vítor Figueiredo os tablet’s e e-reader’s nunca irão acabar com os livros impressos. Mas quanto aos jornais já tem ideia diferente. “Nunca me verei a ler um livro que não esteja impresso. O livro tem uma relação pessoal com o leitor, através das folhas, do cheiro, que o tablet nunca terá. Ler um romance não é possível num tablet. Mas uma notícia, curta, é possível ler no tablet, e isso sim pode representar uma mudança, até pelas funcionalidades multimédia que permite”, defende.Um leitor compulsivo que tem mais de 3 mil livros em casaO director das bibliotecas é um leitor compulsivo que tem em casa mais de 3 mil livros, arrumados em duas salas. Desde que começou a trabalhar, aos 17 anos, que tem acumulado livros a um ritmo acelerado. Diz, meio a brincar, que é por causa disso que hoje está divorciado. “Tenho de tudo um pouco, não posso dizer que os li todos, mas li todos os romances e os ensaios históricos que tenho”, conta. O espólio quer entregá-lo um dia à filha que tem 27 anos.Gosta de ir a alfarrabistas procurar livros antigos de edições limitadas, sobretudo de autores portugueses. “No dia-a-dia contento-me com uma grande livraria de centro comercial, só às vezes vou às livrarias de bairro procurar algo mais específico”, refere. O primeiro livro que recebeu foi aos nove anos, sobre as aventuras dos sete. Gosta de romance e ensaio histórico, sobretudo dos conflitos do século XX. Gosta de escrever mas não pratica. Vítor Figueiredo é natural e residente em Vila Franca. Vai a pé para o trabalho e nos tempos livres gosta de cinema, teatro e visitar museus. Quando pode assiste a concertos de jazz e música clássica. Filho de famílias humildes, sempre foi um apaixonado pela literatura. Estudou na escola industrial de Vila Franca onde aprendeu a profissão de electricista. No Instituto Industrial de Lisboa formou-se como engenheiro técnico e aos 17 anos ingressou numa empresa de telefones em Lisboa. Passou pelas oficinas aeronáuticas de Alverca para fugir à guerra colonial, onde passou o tempo a reparar equipamentos de aviões. Depois dos 30 anos licenciou-se em história e em 1981 ingressou na câmara municipal para trabalhar na biblioteca de Vila Franca. Tirou uma pós-graduação em ciências documentais e um mestrado em educação e leitura. Chegou a chefe de divisão das bibliotecas do concelho. Diz que ser bibliotecário não é uma profissão, é um modo de vida, não se vendo a fazer outra coisa até morrer.

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