Entrevista | 05-05-2016 16:53

Um “chato” que não desiste de lutar pela sua terra

Um “chato” que não desiste de lutar pela sua terra

Júlio Carvalho Pereira foi homenageado pela cidade de Samora Correia pelo seu contributo cívico. É um nome conhecido em Samora Correia, terra que o viu nascer. Seja pela sua longa dedicação ao associativismo seja por gerar amargos de boca a muita gente por dizer sempre aquilo que pensa.

Muitos portugueses não souberam aproveitar a revolução do 25 de Abril de 1974, que tirou Portugal de uma ditadura e lançou as bases para a democracia, para assumirem responsabilidades e privilegiaram a reclamação de direitos em detrimento dos deveres que a liberdade também implica.
A ideia é defendida por Júlio Carvalho Pereira, samorense com uma vida ligada ao associativismo e participação cívica, recentemente reconhecido como cidadão de mérito vencendo o prémio Carlos Gaspar, na cerimónia dos 506 anos do Foral de Samora Correia.
O fim das escolas profissionais - que acabaram com gerações de serralheiros, torneiros e outros operários qualificados - e o desmembramento das grandes indústrias como a Mague são, para Júlio Carvalho Pereira, exemplos do que a “liberdade a mais” acabou por trazer. “Não há maior violência sobre um ser pensante do que não o deixar dizer o que pensa. Graças ao 25 de Abril hoje é possível dizer o que se pensa, em liberdade. A revolução trouxe muita coisa boa, mas o homem por vezes subverte o que as coisas têm de bom. Por falta de competência nas direcções acabámos com muita indústria e com um colosso a nível europeu chamado Mague, porque houve liberdade a mais nas secções. Não soubemos aproveitar a liberdade para assumir responsabilidades, fomos buscar os direitos todos mas esquecemos os deveres”, lamenta.
Júlio Pereira é um apaixonado pela sua terra, a qual sempre tentou servir da melhor maneira através de uma activa participação no movimento associativo. Foi professor de torneamento no Instituto de Emprego e Formação Profissional de Alverca e actualmente encontra-se aposentado. Apesar de ter sido namorado pelos políticos de Samora para integrar listas sempre recusou.
“Nunca me envolvi na política. Já fui convidado para ser candidato à presidência da câmara mas recusei. Não sou político, sou associativista. Creio que o António José Ganhão (ex-presidente da Câmara de Benavente) ficou irritado comigo por lhe ter dado o não que dei a todos os outros”, confessa.
É um homem que se assume como um “chato” que não desiste de lutar pelo melhor da sua freguesia. “Estou sempre em cima dos políticos a pedir mais para a minha terra. Samora precisa de um pavilhão multiusos que permita também acolher espectáculos taurinos. Será absurdo construir uma praça de toiros de raiz para fazer apenas duas corridas por ano. Para isso serve uma desmontável. A CDU tem feito um bom trabalho. Mas toda a gente comete erros e aqui também poderia dizer que a nossa zona ribeirinha, que é fabulosa, poderia estar melhor aproveitada”, critica.

Samora a concelho? Não!
Júlio Pereira é um orgulhoso samorense que esteve na Assembleia da República quando a localidade foi elevada a cidade, mas não é dos que defende a elevação de Samora Correia a concelho. “Nunca me meti na luta de Samora a concelho. Que me perdoem os samorenses que ambicionam esse título. Não acho necessário. Para mim é preciso, sim, ter uma extensão de serviços na cidade para as pessoas não terem de fazer dez ou mais quilómetros para ir entregar um requerimento ou tratar de um assunto. Fui dos que lutei para termos um espaço do cidadão a funcionar e felizmente tem funcionado bem. Claro que prefiro viver numa cidade do que numa aldeia, mas não é isso que me enche o peito de orgulho. Samora tem de ter qualidade para as pessoas que aqui residem e ter comércio, saúde em condições, extensões de serviços da câmara e espaços do cidadão”, defende. Diz, com um sorriso, que quer continuar a ser ribatejano, pertencer ao distrito de Santarém e ao concelho de Benavente.
Para o munícipe a cidade é “boa” para viver mas lamenta que esteja descaracterizada face ao que foi noutros tempos, fruto das várias gerações de novos moradores que passaram a residir naquela localidade. “Samora já não é dos samorenses, é de todos os que vieram para cá residir. Hoje são mais as pessoas que não nasceram cá do que as que nasceram e é cada vez mais difícil mobilizar a população para fazer coisas. Lamento a falta de respeito que há uns pelos outros. As pessoas que vieram para Samora, na maioria, não respeitam as pessoas que cá estão e que trabalharam anos e anos para chegarem aqui e terem uma terra em que dá gosto viver”, lamenta.
Júlio Pereira é crítico também da política pró-toiro que a Junta de Samora Correia, presidida por Hélio Justino, tem seguido. “Não sei se é de colocar com tanta intensidade essa aposta na festa brava. É demais. Exagera-se na festa brava. Devemos fazer com que não percamos essa nossa identidade. Mas justificar-se-à tantos dias de festa taurina, com feiras? Quase não se pensa noutra coisa o ano todo senão nas esperas de toiros”, lamenta.

Da taberna para o IEFP

Júlio Carvalho Pereira tem 77 anos e nasceu na fazenda dos pais em Samora Correia, concelho de Benavente. Aos 10 anos o pai pô-lo a trabalhar aviando copos de vinho numa taberna. “Aprende-se muito do que a vida tem de negativo numa taberna”, confessa.
Aos 18 anos entrou na metalúrgica Mague, em Alverca, onde fazia o caminho de bicicleta, fosse qual fosse o estado do tempo. “Sacrifiquei-me muito para não ser como o meu pai. Ele foi um desgraçado, trabalhava noite e dia e nunca tinha dinheiro”, recorda. Na Mague foi aprendiz de torneiro. Quando acabou a tropa, com receio de ser mobilizado para o Ultramar, entrou nas Oficinas Gerais de Material Aeronáutico, onde serviu na secção de máquinas e ferramentas. Depois voltou à Mague. “Tenho quatro pessoas a quem devo a minha personalidade, que são o Manuel Tomé, António Pederneira, Carlos Gaspar e Medina Cabral”, recorda.
Um dia viu um anúncio no jornal a pedir um professor de torneamento para o centro de formação de Alverca do Instituto de Emprego e Formação Profissional. Não hesitou e candidatou-se, tendo agarrado o lugar onde trabalhou até se aposentar. “Fui muito feliz a trabalhar. Naquele tempo davam-se cursos úteis a quem precisava. Hoje em dia fazem cursos de geriatria, pediatria, cabeleireiros, cursos sem valor, daqueles que não têm aplicação, não têm emprego, e acabaram com a fresagem, soldadura, serralharia mecânica, torneamento. Hoje precisamos de um profissional e não há. Acabou a formação de bons profissionais. Isso e acabar com as escolas industriais foi um erro tremendo. Esses cursos não eram maus e ontem já era tarde para voltarmos a ensinar essas artes”, refere.
Foi músico dos 15 aos 50 anos na Sociedade Filarmónica União Samorense (SFUS), onde tocou trompete, instrumento que ainda hoje toca. Chegou a tocar também pela banda do Samouco. Fez parte da direcção da SFUS e liderou o grupo de pessoas que fundou os Bombeiros Voluntários de Samora. Hoje é presidente da Associação Social Amigos de Samora Correia, entidade sem fins lucrativos que tem um papel sobretudo reivindicativo junto do poder político para introduzir melhoramentos na cidade. A luta actual é para que seja criado o 12º ano na escola de Samora Correia.
“Sou uma pessoa muito ligada à terra, não consigo sair daqui. No meu trabalho cheguei a ter de passar algum tempo em Macau e na Alemanha e sempre que lá estava só pensava em vir embora. Tinha uma saudade de Samora que nunca mais acabava”, revela.
É um benfiquista “moderado” que não cozinha mas gosta de ajudar a esposa, nem que seja a levantar a mesa. Vê pouca televisão e confessa-se moderado na vida que leva. “Quando sinto que estou a ficar viciado em algo corto. Os vícios são a pior coisa que podem acontecer a um homem”, explica. O livro que de vez em quando lê chama-se “Afinal quem são eles”, de BJ Gallagher e Steve Ventura, e foi-lhe recomendado em Santarém numa repartição de finanças.
Receber o prémio Carlos Gaspar, na cerimónia que se realizou dia 16 de Abril, foi “uma das melhores coisas” que lhe aconteceram na vida. “Para os outros é um prémio, para mim é o prémio de um amigo para um amigo. Éramos próximos. [O Carlos Gaspar] era um homem simples e convicto nas coisas que fazia. Foi uma pessoa extraordinária. Se cada pessoa de Samora tivesse 10 por cento de Carlos Gaspar dentro de si esta seria a melhor cidade do mundo”, conclui.

Novo complexo chinês não augura nada de bom

Uma “Chinatown”. É desta maneira que Júlio Pereira vê o que diz ser o excesso de lojas e armazéns chineses no Porto Alto e Samora Correia. “Estão a acabar o novo complexo de lojas que vai ter um grande volume de negociações. Não vai sair dali coisa boa”, critica sem meias palavras. Se fosse ele a decidir, “não haveria lojas chinesas na terra de que gosto tanto”. Não em tanta quantidade, pelo menos. “Com a dimensão que aquilo tem, tenho medo que se perca ali o controlo. Um destes dias tenho de aprender chinês senão deixo de conseguir falar com as pessoas na rua”, lamenta.

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