Entrevista | 16-06-2016 00:56

“O político português gosta das fontanárias ideias”

“O político português gosta das fontanárias ideias”

Fernando Catroga é presidente da comissão para as comemorações do centenário da elevação de Abrantes a cidade. Professor catedrático jubilado da Universidade de Coimbra, Fernando Catroga aceitou o convite da presidente da Câmara de Abrantes e decidiu envolver-se nas comemorações do centenário da elevação a cidade.

A conversa com Fernando Catroga decorre em Coimbra, na esplanada de uma livraria onde tem obras suas à venda. A entrevista é mais uma lição deste professor licenciado em Filosofia e doutorado em História. Ou não estivéssemos perante um pensador e transmissor de conhecimento talhado na mais velha academia do país, que muito jovem saiu de São Miguel do Rio Torto, em Abrantes, para fazer caminho no mundo do ensino e da investigação. Tem gratas recordações da infância e juventude e considera que o seu envolvimento no centenário da elevação de Abrantes a cidade é uma forma de prestar tributo às suas origens.
Qual era a melhor prenda que Abrantes poderia receber neste centenário da elevação a cidade? A melhor prenda será aquela que a cidade pode colher de aproveitar a passagem do centenário. Saber entendê-la como um pretexto de se repensar, equacionando aquilo que são os aspectos positivos e negativos duma herança histórica, mas mediando esse diálogo com o passado através de horizontes de futuro.
Abrantes tem algumas das indústrias mais relevantes do distrito, como a Mitsubishi ou a Central do Pego, tem boas vias de comunicação, está a pouco mais de uma hora de Lisboa e da fronteira com Espanha, tem ensino superior, mas continua a perder população. Porquê? Acho que é por duas razões. Em parte devido à modernização das indústrias que já não concentram a mão-de-obra que antes atraíam. Depois é preciso não esquecer que a configuração do concelho continua a ser eminentemente rural. E como se sabe as correntes migratórias atraíram para o litoral muita mão-de-obra. Abrantes sofreu aquilo que julgo que todos os núcleos populacionais dessa região sofreram.
É irremediável esta inclinação do país para o litoral, onde estão os grandes centros urbanos e concentrada a maior parte da indústria? A primeira luta é saber manter e desenvolver o que existe. Por outro lado, julgo que os poderes locais, políticos e outros, têm que dinamizar a sociedade civil para manter aquilo que é comum aos grandes centros. Tem que haver uma permanente negociação no sentido de defenderem os seus interesses regionais e terem a capacidade de apresentar projectos que sejam sustentáveis. Muitas vezes o problema não é a falta de ideias, mas sim o desfasamento entre projectos demasiado ousados e a capacidade real de os concretizar. Não interessam promessas de investimentos, interessam é investimentos que reforcem.
A questão é essa: como é que se atraem investimentos para o interior quando os investidores, na sua grande maioria, pelos vistos, preferem a faixa litoral? Pensou-se que as auto-estradas poderiam ajudar a reverter esse quadro, mas não foi isso que aconteceu. Costuma-se dizer que as auto-estradas levam e não trazem mas eu acho que quem leva também traz. Se pela aceleração das vias de comunicação há essa tendência de concentração, é preciso corrigir e desenvolver a outra componente. Porque a região de Abrantes está a apenas uma hora de Lisboa, mas também está mais próxima da Europa.
Essa é uma mais valia a capitalizar? Uma região, mesmo que não esteja na raia, tem que pensar as suas correlações com regiões de Espanha que sentem precisamente os mesmos problemas em relação aos pólos de centralidade. Daí que nós, no centenário de Abrantes, tenhamos preocupações com isso e pensamos inclusivamente realizar um colóquio em Setembro com a ênfase também nessa questão.
Como é que vê Abrantes hoje? Que cidade encontra quando lá vai? Vejo Abrantes a sofrer aquilo que quase todas as cidades sofrem, que é o envelhecimento da população, uma desertificação das zonas históricas, mas também algum dinamismo em núcleos urbanos como o Tramagal. Julgo que Abrantes não está numa situação nem pior nem melhor do que os outros núcleos populacionais do Ribatejo. Sofre dos mesmos problemas. Daí que seja importante a articulação entre os poderes regionais, independentemente das rivalidades que possam ter entre si. Porque entregues a si mesmos serão sempre pequenos.
A intermunicipalidade é fundamental? Sim e também a sub-regionalidade.
Durante muitos anos os autarcas preocuparam-se mais com as suas “quintinhas” do que com o que se passava em redor? Naquela zona há exemplos concretos de excesso de recursos gastos em nome daquilo que podemos chamar de políticas paroquiais e não o equacionamento estratégico de uma articulação entre núcleos que estão no mesmo plano e que, de uma maneira rotativa, podem assumir lideranças junto dos poderes com os quais têm que dialogar. Um dos aspectos que vejo com agrado é a existência de massa crítica suficiente, com dinamismo. Aliás, as transformações que têm havido no plano da saúde levou a que haja uma intercomunicabilidade entre as três unidades hospitalares e as populações a tomarem consciência de que com o melhoramento das mobilidades afinal todos habitamos a mesma polis. Não o mesmo município, mas a mesma polis.
A criação do Centro Hospitalar do Médio Tejo, com três hospitais separados numa zona geográfica restrita, foi uma boa solução? Ou foi um dos tais desperdícios de recursos de que falava há pouco? Acho que é uma tentativa de resolver um problema que talvez tenha sido mal pensado, mal planificado desde início. E que resulta duma competitividade cega entre núcleos populacionais relativamente próximos e com o mesmo estatuto.
Essa competitividade cega entre municípios tem sido nefasta para o desenvolvimento da região? Não digo que seja nefasta. Foi importante para a afirmação das identidades e até para que os poderes regionais pudessem ter margem de manobra e até argumentário para convencer o poder central em matérias que já tinham sido concedidas a outros núcleos. Dou o exemplo de toda a luta de boa parte dos líderes de Abrantes para que fosse elevada a cidade, que começou mais ou menos em 1907. Vejo com bons olhos alguns exemplos de reivindicação descentralista e simultaneamente de intercomunicabilidade e de intermunicipalidade que aquela região tem dado provas.
Falávamos há pouco de investimentos. Não houve um certo deslumbramento do poder autárquico durante o período de abundância de fundos comunitários? Lembro-me por exemplo da construção de um campo de basebol em Abrantes, num país em que não há praticamente equipas a praticar esse desporto e muito menos na cidade. Foi uma aposta visionária ou um desperdício de recursos? Os americanos costumam dizer: faz uma igreja que depois vêm os fiéis…
É uma boa teoria, mas neste caso não parece ter correspondência prática. Infelizmente em Portugal nem sempre é assim, até porque a população não está a crescer. Esse deslumbramento dos poderes municipais - e julgo que Abrantes não pode ser eleita como uma excepção, pois foi transversal - é fruto da nossa cultura política. Como já dizia um célebre poeta português do século XX, Alexandre O’Neill, o político gosta das fontanárias ideias. Uma ideia que não se traduza em fontanário, aqui como metáfora, é uma ideia politicamente pouco rentável. Os fracassos e dissabores que se traduzem hoje em muitas dívidas municipais têm servido para alguns autarcas de exemplo e de casos de estudo para não se voltar a repetir aquilo que se julgava impossível.
Gostou de ver o aproveitamento feito da zona ribeirinha do Tejo em Abrantes? Do ponto de vista estético sim. Agora não tenho uma percepção real, porque não vivo lá, de qual é a taxa de ocupação que aquela infraestrutura tem. De qualquer modo sei que pelo menos alguns núcleos de juventude se têm dedicado à prática desportiva, a um ponto tal que há uma atleta ali formada que vai aos Jogos Olímpicos. Parece-me uma mais valia turística e estética e espero também que desportiva.
Foi professor, logo está habituado a avaliar desempenhos. Que nota daria ao trabalho feito pela Câmara de Abrantes neste novo século? Não tenho informação suficiente, mas posso dar uma impressão que recolho de amigos que visitam Abrantes. Acho que é uma cidade onde pela acumulação de contributos de várias gestões camarárias há um grande investimento num sector que me é particularmente caro, que é o da cultura e também no turismo e defesa do património. E a luta pela despoluição pelo rio Tejo tem também vindo a ganhar nova ênfase.

“Pensar-se que a democracia se esgota nos partidos é uma visão perigosa”

O senhor saiu ainda jovem do concelho e fez toda a sua vida profissional fora. Nunca pensou em regressar de vez? Ia muito a Abrantes enquanto os meus pais foram vivos. Quanto a regressar, nunca esteve em perspectiva porque quando me licenciei fui convidado para assistente da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Ora, Abrantes nessa altura nem sequer tinha ensino superior. E regressar àquilo que era o ofício do meu pai (ligado à indústria corticeira) estava fora de causa.
Nunca pensaram seguir o negócio da família? Não porque isso implicava o não estudar.
Que memórias mais marcantes guarda da sua infância e juventude em Abrantes? São memórias mais ligadas à terra natal do que propriamente à cidade de Abrantes, embora a geografia dos meus afectos tenha sido enraizada pela comunhão da escola, dos jogos de bola de trapos, até à escola primária e à Escola Comercial e Industrial em Abrantes. Diria que esse período é uma das minhas utopias.
O seu irmão (o antigo ministro das Finanças Eduardo Catroga) ganhou grande notoriedade pela ligação à política e à sua participação no Governo. Nunca sentiu apelo por esse mundo? Senti esse apelo quando, quanto a mim, era mais necessário, porque tive uma grande actividade política e ainda sofri algumas consequências disso, particularmente naquilo a que podemos chamar de lutas estudantis, quer em Lisboa quer aqui em Coimbra. Em 1969, fui um dos 49 que o regime da época escolheu aqui em Coimbra, achando que eram os líderes. O regime não nos prendeu através da PIDE mas obrigou-nos a ir cumprir o serviço militar numa altura em que tínhamos ainda direito a adiamento para tirarmos as licenciaturas.
Depois do 25 de Abril, a política foi posta de lado? Fui muito solicitado por partidos políticos mas nessa altura achei que uma vida democrática que reduzisse toda a participação de um indivíduo à política partidária podia ser redutora. Se os partidos são fundamentais para a democracia, pensar-se que a democracia se esgota nos partidos é uma visão perigosa. Optei por participar em campanhas eleitorais, em acções cívicas, protestos e em compromissos de gestão democrática, nomeadamente no meio em que me inseria. E, sobretudo, fiz isso porque a minha profissão é por essência uma profissão política. Ser professor é formar consciências. Essas foram as razões que me levaram a não participar enquanto militante partidário, embora ainda na última campanha tenha feito a minha opção por um candidato.
E pode saber-se qual foi? Apoiei Sampaio da Nóvoa.
Presumo que não seja da mesma área política que o seu irmão Eduardo Catroga. Não. Mas temos uma profunda amizade. Mesmo o meu irmão, embora se situe inequivocamente em determinada área política, não deixa aqui e ali de sublinhar que não é militante do partido (PSD).
O senhor vive em Coimbra há muitos anos. Como vê à distância a sua região de origem, o Ribatejo? O Ribatejo é uma construção muito recente, muito ligada às tentativas de se criar uma visão político-administrativa de carácter provincial que vai ser forte essencialmente nos finais do século XIX e no princípio do século XX. Era uma reivindicação também dos republicanos, que defendiam uma política administrativa que desse à província o estatuto de autarquia, com órgãos eleitos. Os próprios geógrafos procuraram desenhar onde afinal começava o Ribatejo e quais eram as suas fronteiras. Portanto esta ideia da identidade tem que ser vista com cautela. Ela é também, de certo modo, uma construção.
Não há uma verdadeira consciência regional, digamos assim, como existe marcadamente noutros território do país. Não pode ser comparada à do Algarve ou à transmontana, por exemplo, porque não há uma geografia que tenha isolado determinado território. Bem pelo contrário, o Ribatejo foi sempre a estrada de acesso à capital desde que a capital foi para Lisboa. Acho, de qualquer modo, que houve uma política muito centrada em Santarém de se socializar a ideia de Ribatejo. E depois a própria institucionalização, a partir do código administrativo de 1940, da província do Ribatejo, com a junta provincial, que tinha algumas esferas de competência, e com o fomento, por exemplo de feiras como a do Ribatejo.
Como ribatejano revê-se na simbologia do campino, do cavalo e do touro ou não liga muito a isso? Não, porque ela tem um perigo. O campino reduz o Ribatejo à zona plana e nós, quer a norte quer a sul, temos Ribatejo que já é além-Tejo e temos um Ribatejo que é Beira Baixa. E o caso de Abrantes tem mais essa virtualidade e essa potencialidade.
Como reagiu ao convite para ser o presidente da comissão das comemorações do centenário da elevação de Abrantes a cidade? Já conhecia a presidente da câmara, Maria do Céu Albuquerque? Não conhecia e fiquei surpreendido com o convite. Tinha acabado de dar a última lição, que eventualmente pode ter tido algum eco em Abrantes, o que aliado à minha maior disponibilidade pode ter tido influência. Estava na Rússia na altura quando recebi o telefonema da senhora presidente, não lhe disse logo que sim, mas achei que não fazia sentido dizer que não. Não só porque a minha disponibilidade aumentou mas também porque tenho estudado alguns destes fenómenos das comemorações. Participei também na comissão do centenário da República, o que me deu alguma ideia acerca do que poderia ser um programa de comemorações, à devida escala. E, por outro lado, é também o pagamento de uma dívida.
Pela ausência de tantos anos? Fui sempre um ausente presente. Porque há os que estão presentes e estão ausentes. Abrantes e a minha terra estiveram sempre presentes. Só tem futuro quem tem memória. Um desmemoriado não sabe de onde vem nem para onde vai.
Dos contactos que tem mantido com a presidente da Câmara de Abrantes com que imagem ficou dela? Parece-me uma pessoa ponderada, aberta a esta dimensão intermunicipal, muito sensível às questões ecológicas, às questões de género. Tenho notado que sabe trabalhar em equipa. Quanto a outras dimensões, mais políticas, não estou a par. Mas tem sido uma relação muito grata com ela e com os membros da câmara com quem tenho contactado.

De São Miguel do Rio Torto para a academia coimbrã

Fernando José de Almeida Catroga nasceu em 30 de Julho de 1945 em São Miguel de Rio Torto, no concelho de Abrantes, filho de um operário corticeiro que mais tarde se tornou industrial do sector e de uma dona de casa. Fez o ensino primário na aldeia natal e o ensino secundário na Escola Industrial e Comercial em Abrantes. Ainda estudou Economia em Lisboa antes de optar pelo curso de Filosofia em Coimbra. Terminada a licenciatura foi convidado para dar aulas na Faculdade de Letras de Coimbra. Doutorou-se em 1988, em História Moderna e Contemporânea, e tornou-se professor catedrático em 2003. Jubilou-se em Maio de 2015.
Irmão do antigo ministro das Finanças Eduardo Catroga (que é três anos mais velho), o professor catedrático foi condecorado em Outubro de 1998 pelo então Presidente da República Jorge Sampaio com a comenda da Ordem de Santiago e em 2001 recebeu no Brasil a medalha de honra da Universidade de São Paulo.
Fez a sua vida profissional na cidade do Mondego, onde continua a residir. É casado e não tem filhos. Apesar de reformado do ensino, continua a escrever muito, dá muitas conferências e diz que a fama possível que para ele é relevante é a boa memória que possa ter deixado entre os seus alunos e entre quem o ouve ou lê.

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