Opinião | 16-12-2010 10:13

Perguntas estúpidas

Há uns anos O MIRANTE editou um livro de poesia de António Ramos Rosa. O poeta veio a Santarém com a mulher Agripina e com o nosso comum amigo João Rui de Sousa, igualmente publicado na colecção Alma Nova, título da referida colecção de poesia de O MIRANTE.O meu último encontro com o poeta foi nesse dia do lançamento do livro em Santarém, depois de o ter visitado duas vezes na sua casa de Lisboa antes da publicação do livro. Foi num estacionamento de um restaurante da Portela das Padeiras que o esperei e ajudei a sair do carro para nos dirigirmos à mesa do restaurante. Depois de receber o poeta, que saiu do carro ajudado pela mulher, dei-lhe o braço e cumprimentei-o com uma saudação do género, “como é que vai isso mestre”. Já pendurado nos meus ombros, caminhando devagar e falando sem olhar para mim, descascou um ralhete que me deixou literalmente encavacado, embora tranquilo já que estávamos quase em família.“Que mania a das pessoas cumprimentarem-se com saudações banais. “Como é que vai isso não é uma boa forma de cumprimentar um amigo”, ralhou o poeta com a sua voz pausada, que eu já tinha ouvido e apreciado algumas vezes mas a falar de livros, de mulheres, de amor e de “liberdade livre”.Esta semana fui a Salvaterra de Magos e reuni-me à porta da Caixa Agrícola com um grupo de pessoas que foi participar numa iniciativa de solidariedade para com Marília Batista e os seus filhos.Quando cheguei ao local, depois dos cumprimentos habituais a quem chegou primeiro, pus a mão por cima do ombro da Tatiana, de 13 anos, a filha mais velha da Marília, e para fazer conversa perguntei-lhe “como vai a escola”. “A escola não vai, está mesmo ali ao virar da esquina”, respondeu-me ela com um sorriso maroto e uma voz traquina mas de forma tão espontânea que eu emendei a saudação logo de seguida e nem lhe dei tempo para pensar. Estes dois episódios têm oito anos a separá-los. Têm em comum o facto de ter sido eu a criar condições para os viver. E de, apesar das perguntas estúpidas, nunca me ter sentido estúpido a ser solidário. Quase todos os dias me lembro do poeta António Ramos Rosa e do silêncio ensurdecedor feito à volta da sua Obra, provavelmente porque o poeta ainda não morreu. É, de certo, o poeta português vivo mais importante destas últimas décadas e um dos maiores de sempre. No entanto a sua Obra, inexplicavelmente, está ausente das livrarias. Numa altura em que estará muito perto dos 90 anos, com uma saúde muito precária, os editores precisam do seu cadáver para poderem vender os seus livros. Não encontro outra explicação.A Marília tem três filhos que foram levados da sua casa de madrugada a meio do sono por um batalhão da GNR a mando de uma organização que se diz protectora de crianças. Depois da indignação pública e da solidariedade, todos os responsáveis lavaram as mãos desta afronta. A família hoje já não existe como antigamente e ninguém sabe até que ponto estes incidentes ajudaram a criar esta infelicidade. As crianças continuam a abraçar-nos como se fossemos da família deles e nos víssemos todos os dias. Talvez porque até ao dia de hoje ninguém deu a cara pedindo desculpas pelas maldades que lhes fizeram. E eles sabem que nós, mesmo longe, somos a garantia de que já ninguém os arranca da cama, de madrugada, só porque a mãe é pobre e indefesa. JAE

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