Opinião | 09-01-2013 17:05

Sobre a vida à porta de casa

Como se pede a alguém que depois de uma conversa tão dolorosa limpe as lágrimas ou sorria para a objectiva?

Há dias lia o relato de uma jornalista que percorreu algumas aldeias de Trás-os-Montes na companhia de uma equipa médica que presta cuidados paliativos. Escrevia ela que existem coisas que não se podem escrever como sempre se escreveu. Eu vou experimentando a mesma sensação ao longo do tempo. Não preciso de percorrer tantos quilómetros. Basta-me sair de casa, meter-me num centro de saúde, caminhar pela zona ribeirinha, conversar com um polícia ou sentar-me na sala de audiência do tribunal.Nunca me esqueço de um senhor que me segredou ter sido deixado pela esposa depois de ter descoberto que tinha um cancro do cólon. Dizia ele que tinha aprendido a contemplar o mar de um modo diferente. Lembro-me do embaraço que senti para tirar-lhe uma fotografia. Como se pede a alguém que depois de uma conversa tão dolorosa limpe as lágrimas ou sorria para a objectiva? Penso também no pai que veio à porta do tribunal pedir-me para não escrever o seu nome no jornal. Não era um ladrão verdadeiro. Era um trapalhão que até chegou a pedir desculpa ao motorista que sequestrou com mais uns comparsas para roubar umas televisões. Saiu com pena suspensa. Precisava de encontrar trabalho para ajudar a sua filha de cinco anos com uma grave doença crónica. Um nome será assim tão importante? No Verão estive à conversa com alguns idosos que se encontravam em lares. Nunca nenhum pensou que seria ali que terminaria os seus dias. Tentei saber como é que se deixa uma casa para trás, como é que se mete meia dúzia de coisas numa mala e se vai partilhar um quarto com uma pessoa desconhecida. O silêncio ou um encolher de ombros era sempre a primeira reacção. À memória vem-me também um velho campino que vivia isolado do mundo, numa casa em plena lezíria ribatejana. Em redor só se ouviam os sons da natureza. Dizia que dali só saía morto. Sem luz, nem electricidade, salgava a carne que o filho trazia para a semana. Ocupava parte do tempo a cavar a terra. Um velho rádio a pilhas em cima da mesa ajudava-o a matar a solidão. Hoje ainda me pergunto se dentro das paredes de um lar não existirá muito mais solidão...Ouvir estes testemunhos e tantos outros é também realizar uma viagem todos os dias. Não é preciso ir a Trás-os-Montes. À porta da nossa casa, temos a vida tal como ela é. Disse-me um jornalista amigo que uma das maiores qualidades para se ser um bom jornalista é gostar de pessoas. Eu acrescento que também é preciso ter um coração duro. Eduarda Sousa (Jornalista)Nota: “Agora e na Hora da Nossa Morte”, de Susana Moreira Marques, é o título do livro citado nesta crónica.

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