uma parceria com o Jornal Expresso

Edição Diária >

Edição Semanal >

Assine O Mirante e receba o jornal em casa
31 anos do jornal o Mirante
Um homem do Ribatejo

Um homem do Ribatejo

Durante mais de uma hora julgámos ter perdido a chave das palavras que precisávamos para a introdução desta entrevista. Ilusão nossa. Os sentimentos, quaisquer que sejam, nem sempre são traduzíveis para a língua de Camões. O prazer que nos deu fazer esta entrevista com Mestre David Ribeiro Telles deve adivinhar-se ao longo da sua leitura. De resto, o entrevistado não precisa dos nossos elogios. Nem da poesia das nossas palavras. Porque, segundo nos confessou, gosta muito de viver, e sente-se forte para continuar a saborear esse gosto•.

O MIRANTE - Para mim, o senhor é o Mário Soares da afficion. A maioria vota em si pela integridade, pelo percurso, pela maneira de estar, etc. Pensa que é isso que as pessoas pensam de si?

DAVID RIBEIRO TELLES - Eu não, nunca pensei isso. O que sinto é uma aproximação muito grande das pessoas. Sinto que me tratam bem e eu também faço tudo para as tratar bem. Vejo que se chegam a mim e fico muito contente com isso.

P. - Ainda parece que foi ontem que alcançou os seus êxitos como cavaleiro tauromáquico. Sente alguma nostalgia desses tempos?

R. - Sim, recordo-me muito desses tempos. Tenho noites em que sonho que me fardei e que no outro dia toureio, etc. Tenho uma saudade enorme desses tempos. Essa nostalgia só é um pouco abafada porque continuo a viver a minha vida de toureiro. Tive três filhos a tourear - este ano só está o António - e sentia-me realizado neles. la ver um, ia ver o outro, montava os cavalos, sentia-me também como se fosse tourear.

P. - Essa febre de tourear tem a ver com o público que o acarinhou ao longo da carreira, ou mais com a emoção de montar e tourear?

R. - É tudo isso ao mesmo tempo. Mas o público faz-nos muita falta. Quem toureou muitos anos, como eu, depois sente uma falta enorme dessa gente que nos acarinhou, que nos proporcionou o ambiente forte em que se viveu muitos anos.

P. - Quer dizer que o toureiro pensa mais no público quando está a actuar?

R. - O toureiro não pensa só no público mas liga sempre o público ao resto. Isso pode ter a certeza. Mesmo os que dizem que não toureiam para o público estão enganados. O público está ligado completamente ao toureiro.

P. - Contabilizou as corridas que fez e os touros que toureou ao longo de uma vida de profü­ sional?

R. - Não, não lhe sei dizer o número. Sei que toureei muitos. Os meus filhos às vezes fazem contas e chegam a resultados muito grandes. Mas como eu nunca toureei com sacrifício e gostava muito do que fazia, nem me preocupei com isso. Por vezes até toureei algumas corridas que não devia. Exagerei, sem dúvida. De resto, fui um toureiro que nunca escolhi público, nem praças. Fui um toureiro de todas as praças e de todo o público. Tanto aceitava um contrato para uma praça sem importância, como toureava a seguir no pueblo mais simpático que existia. E isso divertia-me e dava-me prazer.

P. - Qual foi o maior “cachet” da sua vida?

R. - O meu maior “cachet” foi em velho. Quando comecei a tourear em Lisboa, que era a praça que marcava, comecei por ganhar 12.500$00 (escudos), que era o mesmo que cobrava o senhor Simão da Veiga e o Manuel Conde. Daí a um ano ou dois, comecei a achar pouco e passaram-me para 15 contos e mais tarde para 17 contos. Isto numa altura em que o senhor João Núncio, o cavaleiro mais bem pago da altura, ganhava já 25 contos. Para se perceber a diferença que já havia nessa altura entre Espanha e Portugal, fui nessa fase a Espanha cobrar por uma corrida 80 mil pesetas. Mas o meu maior “cachet” aqui em Portugal foi 250 contos, precisamente na última vez que fui contratado para ir a Santarém.

P. - Há quanto anos é que foi isso?

R. - Não sei bem, mas há mais de dez anos. Foi precisamente quando o meu filho João tirou a alternativa e depois começou a tourear com uma certa garra. Nessa altura tínhamos necessidade, aqui em casa, de fazer dinheiro, por razões que tiveram a ver com a revolução e todos os problemas que daí advieram. Como eu não podia levantar os meus “cachets”, porque era já conhecidíssimo e era um artista mais que visto, que actuava 30 ou 40 vezes por ano, optei por levantar os “cachets” do meu filho João e pôr os cavalos ao seu serviço. Foi também nessa época que ele apareceu como primeira figura ao lado de João Moura, Domeq, Mestre Baptista, Luís Miguel e José João Zoio.

P. - Graças aos cavalos ensinados pelo pai?

R. - Não só por isso. Como lhe disse, nessa altura precisávamos de realizar capital e como o João era um toureiro cheio de garra e qualidades, havia que apostar nele. E posso dizer-lhe que valeu-nos muito.

P. - Uma grande carreira como a sua tem necessariamente os seus pontos baixos. Houve al­ gum fraco que o tenha marcado?

R. - Os dois que eu tenho mais marcados foram na Praça de Lisboa. Um foi na Corrida do Sin­ dicato dos Toureiros. Eu tinha tido uma época muitíssimo boa. Tinha, também, um cavalo muito bom, que era o Perdigão, um cavalo em que eu tinha toda a confiança. Saiu-me um touro de Pinto Valério, e esse touro acabou com o Perdigão, acabou comigo e aquilo correu o pior que podia ser. Eu saí dali desmoralizado e fui para o hotel mudar de roupa. Quando eu toureava em Lisboa e toureava também o senhor João Núncio, ele convidava-me sempre para cear com ele. Nesse dia eu não lhe apareci. Daí a bocado veio o peão de brega do senhor João Núncio insistir comigo e eu lá fui. Quando cheguei, diz­

-me ele: «Então, você ainda agora começou e já quer saber tudo? Vamos lá mas é cear, que hão-de aparecer melhores dias».

Houve uma outra ocasião, que foi igualmente em Lisboa e relacionada com o Sindicato dos Toureiros. Este Sindicato, para angariar fundos, começou a organizar umas corridas em que se toureavam touros a pé e a cavalo, ao mesmo tempo (lembro-me que uma vez, nas Caldas da Rainha, numa corrida desse género tive um êxito enorme com o Mário Coelho). Mas em Lisboa, nessa tal corrida não aconteceu nada disso. Nessa altura eu montava ainda o melhor cavalo que eu tive ao longo da minha vida, que era o Ermilita, que veio precisamente da Chamusca, de casa do senhor Joaquim Ferreira. O cavalo já estava parado há algum tempo, mas como os meus filhos me viram tourear aqui em casa uma vaca, ficaram doidos e insistiram para que eu o levasse para Lisboa. Nem imagina o que sucedeu. Lá não havia nenhuma vaca, o piso era diferente e o cavalo, coitadinho, não podia com o rabo. Eu, que não me tinha apercebido que tinha os outros cavalos doentes, quis mudar de montada mas nenhuma estava em condições. Julgo que não pus ferro nenhum, e se pus foi apenas um. O que é certo é que o público não me pateou e acarinhou-me, deixando-me a continuar a minha carreira.

P. - O senhor é uma pessoa aparentemente calma, e no entanto, a tourear, lembro-me agora, era vivo e alegre. Isso tinha a ver com o profissionalismo ou haviam outras razões?

R. - Uma pessoa pode ser calma e ao mesmo tempo conseguir transmitir ao público energia. E ao cavalo e ao toiro calma. Pode transmitir energia na maneira de ter a sua calma. As ajudas que tinha com os meus cavalos eram calmas e suaves. Nunca provoquei o excitamento do meu cavalo para chegar às bancadas. Agora, entusiasmava-me quando as coisas corriam bem e isso transmitia-se ao público. Eu emocionava-me a tourear e ainda hoje me emociono a ver os outros tourear. Sinto-me feliz quando vejo tourear bem, qualquer que seja o toureiro.

P. – “As corridas já não são o que eram dantes” - dizem. Falta o público, não há tão bons cavaleiros, não há tão boas ganadarias, as praças continuam a ser as mesmas mas com piores condições, porque foram envelhecendo. Há alguma verdade nisto?

R. - Nalgumas coisas sim, noutras não. Não creio que haja menos cavaleiros ou que sejam piores. O que talvez aconteça é os cavaleiros hoje não viverem a sua profissão como os antigos viviam. Nós éramos profissionais do toureio a cavalo. Nós é que ensinávamos o nosso cavalo e vivíamos aquilo que fazíamos com o nosso cavalo. Hoje é diferente - não é que eu condene, mas é outra maneira de fazer as coisas. Vai-se comprar um cavalo que já é isto e aquilo, e pronto. Antigamente, nós é que fazíamos o nosso cavalo. Também não havia tantos meios de transporte e meios de as coisas começarem e acabarem tão depressa, por isso vivíamos mais com os aficcionados e com os próprios toureiros. Hoje os toureiros só se veem um quarto de hora antes das cortesias e no fim da corrida já nem se despedem uns dos outros. O nosso espectáculo tinha vésperas e tinha o dia depois. Íamos um dia ou dois antes, convivíamos uns com os outros, ficávamos em casa de pessoas amigas, discutíamos, não quem esteve melhor ou pior, mas o cavalo deste e do outro e o toiro, e o espectáculo andava à volta disto. Hoje o espectáculo não tem a crítica dos próprios intervenientes. Assim que acaba a corrida desarmam a tenda e vão logo preparar-se para outra.

P. - E também há poucos críticos a escrever nos jornais, não é?

R. - Não, ainda há bastantes. O que já não acontece é a crítica desses jornais principais sair logo a seguir ao dia da corrida. Hoje as críticas já aparecem muito depois de passada a corrida ou em revistas da especialidade, que se publicam tempos depois.

P. - É verdade que a festa dos toiros tem dado alguns passos atrás?

R. - Julgo que sim. Mas isso é por terem acabado aquelas corridas tradicionais, próprias das festas e das antigas feiras. Hoje olha­se para uma parede e não se vê um cartaz a anunciar uma corrida, vêem-se seis ou sete. Como os espectadores aficcionados são quase sempre os mesmos, não podem ir a todas. Mas reconheço que o público que vai aos toiros tem aumentando, porque não nos podemos esquecer dos turistas e daquelas pessoas que vão à praça para se divertirem e passarem um tempo diferente.

P. - É mais rentável ser ganadeiro ou artista tauromáquico?

R. - Julgo que nenhuma delas é rentável, mas são maneiras de estar e de se viver. E é preciso notar que a situação em Portugal não é a mesma do país vizinho. O toiro em Espanha já está pago pelo seu justo valor. Uma corrida de toiros em Espanha vale uns milhões de pesetas. Aqui, realmente, não está e julgo que nunca poderá vir a estar pago pelo seu justo valor. A afluência aos espectáculos é menor, as praças também são mais pequenas, não levam tanta gente, mas se fossem maiores, se calhar, não enchiam. Em Espanha, não só enchem como os preços são mais do dobro do que se paga aqui. E há uma protecção: o governo espanhol considera o espectáculo de touros um espectáculo nacional e dá-lhe uma protecção brutal. Enquanto aqui isso não acontece e nem sequer se faz a propaganda que eles lá fazem para o estrangeiro. Chega-se a Madrid e há trinta corridas para o mês, todas esgotadas. Voltando à pergunta, para uma ganadaria ser aceite e conseguir a comercialização dos toiros por de­ terminado valor, essa ganadaria também tem de investir e ter capacidade de resposta.

P. - Se não tivesse os seus filhos a tourear se calhar não era ganadeiro hoje. Ou era?

R. - Era na mesma. Tenho uma paixão enorme por isto e era com certeza. Mas sinto-me satisfeito por ter posto os três filhos a tourear: o João, o António e o Manuel. E até tenho uma filha, que é a Marta, que é tão aficcionada que anda sempre aí a tourear.

P. - Só que realmente não há espaço para ela no toureio nacional. Ou havia se se quisesse?

R. - Eu não vejo lugar nos toiros para uma mulher. Nesse aspecto sou antigo. No entanto, já houve um caso, a Conchita. Mas foi um caso invulgar e não vamos esperar que apareçam Conchitas todos os dias.

P. - Costumam aparecer por aqui muitas pessoas a procurá-lo para lhe pedir conselhos, opiniões?

R. - Dantes, quando era mais novo, aparecia-me aí muita gente para tourear vacas e para experimentarem cavalos. Agora atrás dos meus filhos vem outra gente, não digo todos os dias, mas muitas vezes. Eu gosto de ser útil a quem gosta das coisas que eu gosto.

P. - Há alguma aparência nessa calma que às vezes inspira às pessoas?

R. - Não sei bem o que lhe hei­de responder.

P. - Dorme bem? Não tem pesadelos?

R. - Não. Durmo bem e depressa. Não sou homem de passar as manhãs na cama. Isso não sou, mas o tempo que lá estou durmo sem problemas.

P. - Que outros espectáculos aprecia, para além dos toiros?

R. - Gosto muito de Teatro e dantes via muito o espectáculo de Revista. la muito à Revista e conhecia muitos artistas. Estive sempre muito ligado a esse meio.

P. - Se houvesse um escritor que se interessasse pela sua biografia, pelo seu percurso, dispunha-se a contar a sua vida... alguma coisa da sua intimidade?

R. - Se interessasse ao escritor não me importava, claro que não.

P. - Alguma vez escreveu um diário?

R. - Não, não. Gosto muito de recordar, mas escrever diários foi coisa que nunca fiz. Mas gosto de escrever, isso gosto.

P. - Também escreveu poemas aos 18 anos, para a sua namorada?

R. - Isso escrevi. Cartas bonitas e coisas assim (risos). Sabe que eu gosto de escrever. E ainda hoje escrevo muito. Gosto de escrever uma carta a um amigo e procurar escrever bem.

P. - Há muita gente ainda a escrever-lhe, como no tempo em que era cavaleiro tauromáquico?

R. - Sim. Ainda hoje recebo muitas cartas a perguntarem-me coisas. E respondo a todas, porque isso dá-me prazer.

P. - A vida tem sempre momentos bons e maus. Aparte a vida dos touros e das corridas, o balanço que faz é positivo? A sua vida tem sido só de alegrias?

R. - Não, a minha vida não e só de alegrias. Tenho tido coisas muito desagradáveis, que não são para contar, porque não têm interesse para as pessoas. Mas o balanço é positivo.

P. - O que pensa das pessoas que mudam muitas vezes de opinião?

R. - Em primeiro lugar, penso que podem ser precipitadas. Em segundo, não as costumo condenar. Mudar de opinião, às vezes, pode ser uma valentia, quando a pessoa percebe que estava enganada. Eu fui educado de uma maneira diferente. Por exemplo, hoje quer-se falar de tudo e de todos. E quem o faz diz logo: “não digas que eu disse”. No meu tempo era diferente. O meu pai era capaz de dizer, “este é aquilo e aqueloutro e se quiseres vai lá dizer a ele que fui eu que disse”. Hoje é ao contrário. Fala-se das pessoas e depois pede-se para guardar segredo.

P. - Qual é a expressão artística, sem ser o toureio, que mais admira?

R. - É a música. Gosto imenso de música, apesar de não ter ou­ vido nenhum. Gosto de todo o tipo de música. Faz-me descontrair. Quando eu era rapaz não havia televisão mas havia a telefonia, enfim, a música portuguesa era muito mais conhecida. Eu tive sempre uma tendência muito grande para ouvir e apreciar música. Depois estive a estudar em Coimbra e era um grande adepto e frequentador de todos os meios em que se cantava o Fado.

P. - A literatura é uma outra espécie de música. Já que fala­ mos nela, pergunto-lhe também se leu ou lê muitos livros, se tem o hábito da leitura?

R. - Não, eu não sou um homem culto. Sou um homem do mundo. Só sou culto por convivência. E como sou velho e convivo há muitos anos, tenho essa cultura. Mas gosto de falar com gente culta e quando o assunto me interessa tenho a preocupação de perguntar até ao fim como é e como não é.

P. - Se eu então lhe perguntar quem é Agustina Bessa Luís ou o Vergílio Ferreira, o Ramos Rosa, o Torga, não sabe responder?

R. - Não, não me pergunte que eu não sei. Sou um ignorantão. Mas não me sinto diminuído por isso. Acho uma coisa natural. Não quer dizer que noutros aspectos eu não me sinta uma pessoa realizada.

P. - O que é para si um burguês?

R. - O indivíduo que é burguês tem uma maneira de estar na vida que não tem nada a ver com a minha. Eu considero o burguês um tipo que vive à custa dos outros, sem considerar os outros. E isso não são pessoas com quem eu me entenda. Na minha opinião, são pessoas que estão a mais na sociedade.

P. - Como é que define um marialva?

R. - Se o marialva for burguês a minha opinião é idêntica à anterior. Se o marialva for uma pessoa que se interesse pelos outros, que não assuma atitudes de confronto e de choque com a sociedade, então ele tem o seu lugar e eu respeito-o.

P. - E qual o conceito que tem de um operário?

R. - O operário é, de todos, o que mais considero. Tenho um respeito enorme por quem trabalha dia-a-dia para viver. Eu sei o que isso custa. Tenho pessoas a trabalhar comigo que não me interessa só chegar ao fim-se-semana e pagar-lhes, dar os bons-dias e não saber quem é a pessoa, nem as suas necessidades. Não estou a vangloriar-me, mas eu sei o que cada um dos que trabalham comigo necessita e a sua maneira de viver e as aflições que têm. Para mim, o operário é o homem mais importante na sociedade.

P. - Falemos do nosso país. Portugal tem futuro, na sua opinião?

R. - Eu acho que sim. Tem futuro, mas ainda futuro comprometido. Talvez falte honestidade a muita gente que está em lugares de cima e que junta os interesses próprios aos interesses de Portugal. Assim vai demorar mais tempo até pôr a situação definida e limpa.

P. - A revolução de Abril mudou muito a sua maneira de ver e estar na vida?

R. - Não. A revolução de Abril não me ensinou nada. Eu já era e mesma pessoa que sou hoje. A revolução apenas veio definir situações e ao encontro até de muita coisa que já fazia parte da minha maneira de estar na vida. Não mudei nada. Claro que foi um choque como todas as revoluções. E também me atrapalharam a vida em muita coisa, mas uma revolução é mesmo assim.

P. - Não acha que a sociedade portuguesa ainda se verga muito aos senhores doutores e engenheiros que nos espreitam, muito empertigados, no topo das hierarquias?

R. - Eu acho que essas pessoas têm de estar lá, têm de existir. O que devem é ser pessoas mais maleáveis e que deixem os outros chegar até eles. Para não falar em humildade, que pode ser chocante, pelo menos devem ser naturais, sem ‘carapaça’, pessoas humanas, que convivam. E não são só os senhores doutores que gostam de servilismo. Isso está no espírito de muitos portugueses. E isso eu não admito. Sou completamente contra.

P. - Nas próximas eleições vai votar no mesmo partido em que votou há quatro anos?

R. - Bem, já nem me lembro em quem votei ultimamente. Parece que foi no PSD. Eu sou monárquico, mas não absolutista. Sou liberal - não sou do D. Miguel, sou do D. Pedro. De momento, não sei em quem votar. Terei que ver.

P. - Ponha por ordem de prioridade: Educação, Respeito, Tolerância e Liberdade?

R. - Educação e Respeito vêm logo juntos. Depois Liberdade, por fim, Tolerância.

P. - Se uma pessoa não tem medo dos toiros, então do que é que tem medo?

R. - Ó, homem, mas eu não disse que não tenho medo dos toiros (risos)! Tenho medo, sim senhor. Tem é de haver qualquer coisa que supere o medo, senão uma pessoa andava aí a fugir de tudo. Com o toiro, o que supera o medo é o saber, é a técnica de lidar com o animal. Não quer dizer que não se tenha respeito pelo toiro. Eu nunca fui um aventureiro a tourear.

P. - É um homem religioso?

R. - Muito. Sou praticante. Ajuda-me muito a viver.

P. - Considera-se um homem com sorte?

R. - Considero.

P. - Respeita mais os amigos ou os inimigos?

R. - Propriamente inimigos, acho que não tenho muitos. Mas agora respeitar, respeito os amigos. Mas não sinto, sinceramente, que tenha inimizades grandes. Sei que há pessoas que não gostam de mim, mas não sinto que essas pessoas exagerem esse não gostar ao ponto de me considerarem um inimigo muito grande. Eu também nunca marginalizei ninguém. Nem os meus inimigos. Poderei ter tomado alguma vez alguma atitude desagradável e violenta, mas não sou pessoa para a cultivar. Não sou, nem quero.

P. – “O cavalo é o melhor amigo do homem”. É assim?

R. - Isso depende. Para mim é. Mas para outra pessoa pode ser o cão ou o gato. Para mim é o cavalo porque é com ele que convivo mais e tenho tido os melhores agradecimentos de amizade. Eu tive um cavalo que a certa altura já não toureava e foi vendido para França. Isso porque eu precisei de dinheiro, senão esse cavalo teria morrido aqui. Quem apareceu para o comprar foi o Nuno Salvação Barreto, que o queria levar para França para oferecer a um amigo, que até era também meu amigo. Esse homem queria um cavalo português para fazer uma cria com umas garranas dos Pirinéus e dar uns passeios. Eu achei que era uma velhice óptima para o meu cavalo e vendi. Daí por um ano ou dois fui a França tourear, e esse senhor, Pierre, pediu­-me para tourear um pouco com o meu antigo cavalo só para me ver tourear. Eu nem sabia como o cavalo estava, mas com um bocadinho de sacrifício, aceitei. Quando o cavalo chegou e eu fui para o montar, ele começou a cheirar-me todo, a lamber-me as mãos. O cavalo conheceu-me e eu acho que não vai acreditar, mas eu julgo que o cavalo chorou, mesmo sem ter mostrado lágrimas. E quando o montei, senti-lhe o coração a bater na minha bota. Por isso fiz só fiz as cortesias e não toureei com ele, o que me obrigou a arranjar uma boa desculpa.

P. - Quem são os três melhores cavaleiros da actualidade?

R. - Não sei se devo dizer-lhe. Não é que tenha medo de dizer as coisas. Mas reconheço que é difícil estar a dizer quem são os três melhores. Até porque um está bem a tourear, e amanhã já não está. Há meia dúzia de cavaleiros bons a tourear. São mais que três, portanto.

P. - O facto de ter dois filhos a tourear, inibe-o de responder directamente à pergunta?

R. - Não, até porque eu considero os meus dois filhos primeiras figuras. Embora o João este ano não esteja a tourear.

P. - Porque é que o João não está a tourear este ano?

R. - Eu ia dizer-lhe que era por um exagero de honestidade, porque sentiu que os cavalos não estavam capazes, esta época, para tourear. Mas talvez essa não seja a resposta. É o que ele me diz, mas eu vejo que não está a tourear porque encaminhou a sua vida noutro aspecto e este ano não estava a ponto de fazer as duas coisas.

P. - Verdadeiramente populares são as largadas e entradas de toiros. Como é que o senhor David vê este espectáculo no âmbito da festa dos toiros?

R. - Eu gosto de ver, mas condeno-as. E condeno-as pelo seguinte: ainda há pouco tempo, aqui, em Benavente, houve uma entrada em que o toiro desembolado matou cavalos, feriu pessoas, não sei se morreu um homem. Enfim, coisas desagradáveis. Eu pergunto: se para os toureiros, que são profissionais e sabem tourear, se põem embolas nos toiros e se arranjam os cornos aos toiros, como é que se solta para as ruas, para o meio do público, toiros desembolados, toiros assassinos - porque quase sempre são escolhidos toiros maus. Como é que se solta para essa gente que está num dia de festa, que está num dia em que as famílias estão reunidas, que estão a gozar a festa, como é que se soltam toiros assim? Dizem que vai para lá quem quer, mas não é bem assim, e quem sabe tem obrigação de proteger. Eu defendo isso tudo, mas com precauções. Se fosse eu que mandasse só deixava ir para a rua toiros embolados e animais que eu visse com condições para isso. De resto, condeno e volto a repetir: pôr toiros desembolados na rua para, de repente, levar a morte ao seio de uma família que estava a vi­ ver um dia de alegria, é uma coisa para mim que nem sequer devia passar pelo pensamento das pessoas.

P. - Não há melhor pessoa de que um ganadeiro para perguntar o que é que pensa dos toiros de morte nas corridas. Responda-me lá sinceramente?

R. - Acho bem. Acho que o toiro deve morrer na praça, é mais digno. Mas isso não pode ter a mesma extensão em todo o lado. Aqui em Portugal existe o forcado com esse brilhantismo que todos conhecemos e, por isso, não pode haver da mesma maneira que em Espanha o toiro de morte. A solução era deixar coexistir os dois tipos de tourada. Mas eu não creio que a corrida de morte tenha possibilidade de vir para Portugal porque o toiro tem de ter um grande desgaste físico para que depois possa resultar a morte. E um dos maiores intervenientes nesse campo é o picador. E eu não acredito que aqui em Portugal possa existir um picador. Em Espanha já é uma aflição, quanto mais aqui, que há outro tipo de corrida para optar, a corrida à portuguesa, e com praças que não têm condições para o picador. O espectáculo em

Espanha, o espectáculo da morte do touro, é todo passado a distâncias, as arenas e praças têm um tamanho completamente diferente das nossas. Agora, realmente, a morte do toiro na arena é mais digna e com menos sofrimento.

P. - E como exemplo para a sociedade? Não acha que pode ser encarado como um espectá­ culo bárbaro?

R. - Pode ter essa interpretação, sim senhor. E acho que há alguma razão para se pensar assim. Mas que é menos doloroso para o toiro e mais digno, isso também é verdade. Já reparou o que é um toiro, depois de toureado, ir para os currais, tirarem-lhe aquelas bandarilhas todas e depois, aos empurrões, ir para cima de uma camioneta para ir morrer a outro sítio? Olhe que é uma coisa medonha!

P. - Então e quando o toiro, em vez de encontrar toureiros, encontra ‘sapateiros’ de espada e capote na mão?

R. - Bom, quando isso acontece, deixa de haver a tal dignidade. Mas isso também não se encontra todos os dias.

P. - O senhor David é um filho de Almeirim, mas viveu lá pouco tempo. Qual é a sua relação com a terra em que nasceu?

R. - Não, eu vivi muito em Almeirim. Nasci em Almeirim, em casa do meu avô, pai da minha mãe, com quem eu convivi sempre. Mesmo quando estive a estudar em Santarém. A minha relação ainda é grande porque nessa casa, onde eu nasci, vive uma tia minha, que nos trata, a mim e ao meu irmão, como filhos. E depois tenho muita gente amiga em Almeirim.

P. - Qual é a região mais bonita do nosso país?

R. - Ribatejo, claro.

P. - Considera-se um homem do Ribatejo?

R. - Completamente, completamente.

P. - O senhor David deu muitas borlas ao longo da sua vida·?

R. - Sim, dei muitas (risos). E não estou arrependido.

P. - Hoje seria mais difícil?

R. - Hoje é tudo mais difícil. Mas, por exemplo, os meus filhos, quando toureiam, dão muitos bilhetes de borla. Se eu lhe disser que o meu filho António quando toureia oferece cerca de setenta ou oitenta contos por corrida, não lhe estou a mentir. Mas aqui estão incluídos aficionados, amigos, e também a família toda, que ainda são muitos. Só aqui de casa são vinte.

P. - Não sei se pode tornar público, mas um toureiro, com a dimensão do seu filho António, quanto é que pode ganhar por corrida?

R. - Ganha entre seiscentos e mil contos. Mas oiça lá: pode tornar público, mas, se o fizer, faça-o com clareza para todas as pessoas saberem. Ganha, mas tem de pagar aos bandarilheiros, transportes, comidas, cavalos, sindicatos, fundos de assistência, enfim, uma série de coisas que as pessoas não sabem e custam muito caro.

P. - Já falámos das borlas, vamos agora falar das boleias. O senhor David tem encontrado muita gente à boleia ao longo do seu percurso de sessenta anos de vida?

R. - Tenho, sim senhor. Mesmo sem ser na minha profissão, tenho muita gente atrás de mim. Pessoas que se chegam a mim e que eu não tenho a coragem de afastar.

P. - Qual é o seu lema para o futuro?

R. - É uma continuidade da vida que tenho tido, que a possa viver ainda mais alguns anos. De resto, não tenho mais nenhuma aspiração.

P. - Há pouco assisti à despedida dos filhos porque iam ver uma corrida de toiros nocturna. Como é que é o sono de um homem que tem onze filhos e sabe que os azares estão sempre a acontecer? Dorme descansado?

R. - Durmo, durmo porque eles são tantos, como diz, e todos um isto, outro aquilo, que a certa altura se gera uma tranquilidade e nós aceitamos as coisas e pronto. Ainda há dias me despedi de uma filha minha que foi para África.

P. - Sente-se com forças para continuar a ser um ganadeiro activo?

R. - Ânimo e entusiamo tenho. Quanto às forças... às vezes sinto-me um bocado gasto. Eu dei muito trambolhão a cavalo, caí muita vez e parti muitos ossos. E o andar a cavalo também tira um bocado o uso das pernas. Eu andei muito a cavalo e ando ainda - hoje já montei dois! Em cima do cavalo ainda tenho força, agora a andar é que já me vejo um bocado atrapalhado.

P. - Ainda espeta uns ferros de vez em quando?

R. - O ano passado toureei uma corrida. Este ano ainda não mas quero tourear. Tinham-me pedido para participar na festa do Luís Miguel, em Montemor, e depois para tourear a corrida do António Badajoz, que é em Lisboa. Se eu já tivesse toureado uma corrida ou duas antes, lançava-me a isso, mas como ainda não toureei este ano tive medo de ir logo para umas cor­ ridas de tanta responsabilidade e chegar lá e fazer um papel ridículo. Acho que a coisa de que tenho mais medo na vida é do ridículo. Estar bem ou mal é uma coisa. Agora ridículo e as pessoas com pena do cavaleiro, isso é que eu quero ver se consigo evitar que me aconteça.

P. - Tem medo da velhice por causa do ridículo?

R. - Do ridículo, tenho muito medo.

P. - Acha que as pessoas, quando chegam aos setenta anos, ficam todas meio apanhadas?

R. - Não sei. Eu conheci pessoas que não ficaram. E conheci outras que foram homens valentes e vi-os assim.

P. - Agora que estamos quase a terminar a nossa conversa, conte-me lá em que praças toureou ao longo da sua carreira?

R. - Eu comecei a tourear formalmente aos 16 anos: portanto foram cerca de 44 anos de carreira. Aqui em Portugal toureei em to­ das as praças que há. Toureei nas ilhas: Açores e Madeira. Toureei em África: Lourenço Marques, na Beira, em Quelimane, em VilaPeri. Em Angola toureei em Sá da Bandeira, inaugurei a praça de Luanda, toureei em Benguela e por aí fora. Em Macau, toureei 11 corridas em dez dias. Toureei em todas as praças francesas. Em Espanha toureei em muitas praças; houve uma época em que fiz 22 corridas. Nesse ano fiz, ao todo, 62 corridas. Na América não toureei em público, mas fi-lo em casa de algumas pessoas amigas. Estive no Perú, no Equador, na Colômbia e na Venezuela.

P. - A festa dos touros é uma paixão? Esta arte tem pouco a ver com o lucro, não é?

R. - O toureio é uma paixão. É uma profissão que se torna apaixonante para quem gosta. Por vezes é proveitosa, mas nem sempre. Eu fui sempre um toureiro por paixão. Nunca deixei de ir a uma corrida só porque não ia ganhar nada. Tive sempre a paixão de ser toureiro. Quando comecei, o meu pai contrariava-me. Ele gostava que eu toureasse mas sem me profissionalizar. O meu pai tinha sido grande amigo de dois toureiros que tiveram a vida um bocado estragada pelos toiros - António Luís Lopes e Simão da Veiga. E tinha receio de eu ser toureiro e sair prejudicado também. Por isso, apesar de gostar, não me encorajava a prosseguir. Quando eu tirei a alternativa, o meu pai esteve cerca de seis meses quase sem me falar. Não foi assim uma coisa fácil.

P. - Recorda muitas vezes o dia da sua alternativa?

R. - Recordo, porque, graças a Deus, tive uma grande actuação. Foi em Lisboa, no dia 28 de Maio de 1958.

P. - Qual é a importância que a sua esposa teve, ou tem, na sua vida de toureiro e ganadeiro?

R. - Muita. Se eu não tivesse encontrado a minha mulher, não tinha casado com ninguém, ou então já estava separado (risos). É porque ela tem que me aturar muito, porque eu sou um homem muito chato. Tivemos doze filhos... a mais velha já morreu. Mas a nossa relação como casal foi e é muito forte.

Um homem do Ribatejo

Mais Notícias

    A carregar...