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“Escrever para teatro é pôr palavras a mexer”

“Escrever para teatro é pôr palavras a mexer”

Fernanda Narciso, dramaturga, inventa personagens

Fernanda Narciso escreve histórias para teatro. As personagens inventadas pela dramaturga, surgem da observação do dia a dia. Para criar gosta de se envolver em grandes multidões. Numa estação de caminho de ferro, por exemplo, onde passa muita gente diferente. Não tem horários nem espaços para escrever. As palavras surgem naturalmente. “As personagens vão entrando na minha vida, no meu pensamento, no meu acto de criar. É uma coisa espontânea”, descreve.

“’As Bem Aventuranças’ escrevi-as em cima da minha barriga em forma de bola...lá dentro crescia o ‘Pê’... ‘P’ de Paixão, ‘P’ de pranto, ‘P’ de paz (...)”. As palavras são de Fernanda Narciso, autora de “As Bem Aventuranças”, escrita em 1986 e levada à cena pelo Centro Dramático Bernardo Santareno em Outubro. A dramaturga e actriz vestiu a pele de Júlia, uma personagem forte como tantas outras criadas pela autora.Fernanda Narciso já se apaixonou por muitas personagens soltas que contam uma história instantânea, como a pianista careca ou Alzira parteira – uma personagem cruel que reúne as características da sua escrita. A peça “Branco, vermelho e preto”, escrita e encenada pela autora, surgiu logo a seguir ao 25 de Abril quando se falava aborto. Na peça não tomava uma posição sobre o assunto até porque “a escrita do teatro não tem que apontar caminhos”. “Alzira parteira” descrevia como fazia os abortos e falava das “crianças a rolarem no balde”, com um sorriso nos lábios como quem conta uma história na esplanada. Alguém disse mais tarde à dramaturga que quase se sentia o cheiro. No teatro para adultos a maneira de escrever de Fernanda Narciso tem a ver com a maneira de sentir. “As minhas personagens vivem todas com uma grande crueldade, mas acreditam muito no amor, têm muita esperança em relação à vida e, às vezes, não apresentam solução, quebram. Há grandes contradições nelas próprias, mas é esse misto de realidade e de sonho que gosto nas minhas personagens”.A dramaturga, 45 anos, vive em Perofilho, Santarém, e reparte o tempo com os três filhos, os seus grandes críticos, e a pintura – outra das suas paixões.Gosta de escrever à mão. Pode estar um dia inteiro a escrever, o que não quer dizer que seja mais “vitorioso” que apenas uma hora. Não tem um horário definido. Escreve nos sítios mais incríveis. Na casa de banho, na sala, na cozinha. À noite aproveita para ler. As personagens criadas pela autora surgem da observação do dia a dia. “Para criar gosto de me envolver em grandes multidões. Numa estação de caminho de ferro, por exemplo, onde passa muita gente diferente. É muito importante porque se vê o modelo humano. É como um arejar de ideias de maneiras diferentes das pessoas se vestirem andarem. Às vezes tenho necessidade de ter esse contacto humano, outras tenho uma terrível vontade de ir escrever para casa sozinha”, explica.As personagens podem surgir a partir de uma simples música. A escrita surge naturalmente. “As personagens vão entrando na minha vida, no meu pensamento, no meu acto de criar. É uma coisa espontânea”.Quando cria as personagens no seu mundo imaginativo vê-as a mexer. “Escrever a história das minhas personagens é pôr a mexer bonecos que por sua vez mexem as palavras que escrevi. Eu já as vejo, no meu mundo imaginativo”. A escrita para teatro é especial. “Há um soar de palavras. São palavras para serem ouvidas. Há um ritual na maneira como se juntam. Há uma fonética diferente”. Fernanda Narciso mantém uma actividade de animação constante para os mais novos. O último trabalho foi um conto de Natal. A história do cozinheiro Benjamim que recebeu uma encomenda de bolinhos de mel do Pai Natal. Normalmente cria duas ou três histórias por ano. São histórias curtas que faz em espaços pequenos para um número reduzido de crianças. Considera que não é “mais difícil ou mais fácil” escrever para adultos ou para crianças. “O que é para adultos está à flor da pele. Tenho que pôr lá os meus sentimentos sem rodeios, sem medos. Com as crianças tenho que ter preocupações. Não posso abusar da tal crueldade, da frieza, mas também do excesso de amor porque eles sabem o que é verdadeiro”.O primeiro passo do trabalho da dramaturga é a leitura da história. Depois imagina as coisas esteticamente no ar. “Eu escrevo as minhas pinturas”, descreve.Outra faceta da escrita que lhe agrada é a adaptação de um texto literário para teatro. Ultimamente, como elemento do Centro Dramático Bernardo Santareno, tem-se dedicado a esse trabalho. Pega em “histórias que já fazem parte da humanidade”, como a Alice no País das Maravilhas ou o patinho feio e “Mc Beth” e adapta-as. Gosta de pegar num trabalho do princípio ao fim. Escrever o texto e encenar a peça. Mas acha interessante que sejam outros encenadores a criar o espectáculo.Aprendeu que é preciso trabalhar muito para viver da arte. “Não vivo essencialmente da escrita. A escrita é um complemento do meu trabalho. Vivo do todo que faço. Da pintura e das animações culturais”. A dramaturga, que encara o seu trabalho de forma lírica, acredita que a escrita para teatro pode ser uma arma. “Com essa arma pode dar prazer, ferir, amar, mostrar o belo e o amargo. E isso não tem preço”.Ana Santiago
“Escrever para teatro é pôr palavras a mexer”

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