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“Acho que daria um bom padre”

Nelson Carvalho, presidente da câmara de Abrantes

A vida de Nelson Carvalho foi feita de acasos, coincidências e oportunidades. Acasos determinantes, coincidências felizes e oportunidades certas que fizeram com que este homem, beirão de nascença, poeta e benfiquista ferrenho, se sente hoje na cadeira do poder da Câmara Municipal de Abrantes. Foi seminarista mas depressa achou que não tinha vocação, apesar de acreditar que daria um bom padre. O bichinho da política apareceu mais tarde, já em terras do Ribatejo. Para não mais sair.

Nelson Carvalho destacou-se na escola por ser uma criança atenta e aplicada. E isso levou a que se lhe tivessem aberto, desde muito cedo, algumas portas, que se vieram a revelar determinantes para o seu futuro.Estava-se no ano de 1964 e o actual presidente da Câmara de Abrantes tinha acabado a quarta classe. “Nessa altura não havia escolas ou liceus senão nas capitais de distrito e a maioria das crianças acabava por ir trabalhar”, diz. E foi precisamente nessa altura que aconteceu o primeiro acaso da sua vida – “por ser bom aluno e por haver lá na escola um miúdo, filho de uma família mais abastada, que queria ir acompanhado para o seminário, o professor acabou por indicar o meu nome”. Fez o primeiro e o segundo ano do liceu no Seminário Salesiano de Arouca. Mas no final do segundo ano acabou por sair – “foi por puro acaso que lá entrei, não por opção ou por vocação, e saí de lá tão circunstancialmente como entrei”. Os pais queriam-no mais perto de casa e intercederam na sua admissão no colégio particular que existia em Mangualde, onde Nelson Carvalho viveu desde tenra idade. Naquele estabelecimento só estudava quem tinha possibilidades mas o colégio abria excepções para bons cérebros. “Os meus pais colocaram a questão ao director, que a achou interessante e criou condições especiais para eu entrar, condições de favor”.Do balanço que faz ao tempo que passou no seminário, Nelson Carvalho diz que a estadia lhe deu sobretudo a aprendizagem da disciplina e da auto disciplina.Do outro lado da balança estava o clima repressivo do seminário, com um quotidiano que não era pêra doce. A memória de Nelson Carvalho volta 47 anos atrás e recorda as alvoradas às seis da manhã, os banhos diários de água gelada, os três quartos de hora de estudo, a que se seguia a obrigatória missa. Só depois do cumprimento destas tarefas é que aparecia o merecido pequeno-almoço. “Quando chegava a hora do pequeno-almoço já ia esfaimado”.Não se arrepende de ter dado dois anos ao seminário mas acredita que o seu futuro não estava ali – “não creio que tivesse vocação mas acredito que daria um bom padre”, refere o actual presidente da Câmara de Abrantes revelando que admira a vocação socialmente forte que hoje alguns padres têm. “Se eu tivesse sido padre daria talvez menos relevância ao culto e mais aos valores, à humanidade, à vida dos homens”. Filosoficamente distancia-se muito da teologia e das crenças religiosas e não se reconhece como católico praticante. O que não o impede de ter a Bíblia como livro de cabeceira. “É um livro muito rico em termos de ensinamentos e cultura”.A partir do terceiro ano do liceu passou a estudar em Mangualde e era reconhecido quase sempre como o melhor aluno da turma. O que dava particular orgulho aos pais, que sonhavam já para o filho um futuro bem mais risonho que a princípio lhe estaria destinado – “o meu pai era alfaiate e a minha mãe cuidava da casa e de uma horta. Eram pessoas de modestos rendimentos e foi extremamente importante para eles que eu pudesse seguir os estudos e fazer uma carreira académica”.Todos os dias Nelson Carvalho passava horas a estudar mas não se considerava um “marrão”. “Era apenas um bom praticante que tinha a noção que se não tivesse determinado tipo de resultados as benesses acabariam”.Os estudos nunca o impediram no entanto de fazer o que os jovens da sua idade faziam – praticava atletismo, saia à noite com os amigos. E deitava olhares ao sexo oposto – “todos nós, a partir de certa idade, temos um olho no caderno e outro na colega do lado”.Caiu em Coimbra, caloiro em engenharia mecânica, em 1972, no momento em que já se vivia um grande clima de contestação ao regime. E a certa altura, dá-se uma reviravolta na sua vida. Ele, que até ali tinha sido um aluno certinho, deixou simplesmente de ir às aulas. “Ia para a biblioteca da universidade ler o marxismo e outras matérias na tentativa de compreender o que se passava na altura, e isso permitiu-me uma abordagem e uma aproximação à filosofia política”. O estudante aplicado “desapareceu em dois tempos”, diz.Acabou por desistir de estudar. Voltou para Mangualde e entrou no mundo do trabalho, a dar aulas de matemática, mantendo sempre uma leitura assídua da filosofia.O 25 de Abril apanhou-o com apenas 20 anos mas já com uma larga bagagem teórica de cultura política, empenhando-se nas movimentações da revolução – “era reconhecido em Mangualde como uma espécie de líder de esquerda da malta mais nova”. Ao mesmo tempo preparava o seu regresso à universidade e ao curso de filosofia. “Era a minha verdadeira vocação”.Casou com 22 anos – “costumo dizer à minha mulher que nunca me lembro de ser solteiro porque era um garoto quando casei” - e três anos depois foi viver para Portalegre onde a mulher, professora, fora colocada. A vinda para Abrantes surgiu em 1983, mais uma vez por um acaso feliz – “nessa altura tinha um colega de Abrantes, o Jana, e quando decidi concorrer para o estágio profissional olhei para o mapa, vi que Abrantes ficava perto, que passava lá o comboio e que tinha pelo menos uma pessoa na cidade que conhecia e acabei por a escolher”.Na Escola Secundária Manuel Fernandes fez várias coisas, entre as quais a criação de uma revista de filosofia. A queda para as letras revelou-se mais tarde no livro de poemas que escreveu – “eu acho que escrevo bem e decidi fazer um ensaio e uma experimentação, saber até onde conseguia ir”. O que conseguiu foi que um grupo de rock lá da terra – os Putos da Noite - agarrasse numa das letras de “Que Vivam as Rosas” e as transformasse numa canção.É benfiquista “desde sempre”. “Quando comecei a ter preferências clubistas estava-se na época dos golos do Eusébio, das finais europeias do Benfica e da selecção de 66. Na altura Portugal era o Benfica e o Benfica era Portugal”.Nunca foi sócio e podem contar-se pelos dedos de uma mão as vezes que foi ao Estádio da Luz. “Sou benfiquista convicto, sou ferrenho, o Benfica é o melhor do mundo, ponto final, mas prefiro ver os jogos pela televisão”, diz, afirmando que o Sporting é um clube essencial ao Benfica – o eterno rival – e que o Porto está a mais. “O Porto veio meter-se no meio disto com um regionalismo primário, talvez por isso seja um clube pelo qual não tenho grande simpatia”.Mas é o mesmo regionalismo – ou bairrismo – que o leva todos os domingos a assistir aos jogos do “seu” Abrantes. “O Abrantes é o clube que leva mais pessoas aos estádios”, diz o presidente da câmara, que não se escusa de “despejar um bocadinho o fígado e chamar palhaço e sacana ao árbitro”. Entrou para a política concelhia em 1989, tinha o PS acabado de perder as eleições. “Assumi a comissão política na sequência de uma derrota e com um enorme desafio pela frente – dar a volta ao estado de coisas para o PS regressar à liderança”.Foi assim que quatro anos depois concorre à presidência e leva o PS a recuperar a autarquia. Até hoje. Diz que acima de tudo está na política porque gosta do exercício do poder e detesta os que dizem que andam na política pelo espírito de missão. “Se é pelo espírito de missão que vão para missionários”.Margarida Cabeleira

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