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Aprimorado Serafim das Neves

Hoje deu-me uma insónia de duas dúzias de rebanhos de carneiros. São cinco da matina e eu aqui, zumba, zumba, no teclado, a escrever-te e a descrever-te o amontoado de merdices que me estão zurzir os neurónios.Saudades. Aliás, saudade. Ou soidade, como se diz lá para o norte. Eu lembro-me de me dizerem que é uma palavra que não tem tradução para nenhuma língua do mundo. O escritor Milan Kundera, fala no assunto no segundo capítulo do romance “A ignorância”. Fala de nostalgia, anoranza, saudade, heimweh, stesk. Eu aponto o dedo acusador aos telemóveis. À internet. Ao videofone ou lá que raio é aquilo. Aos automóveis, aos aviões. A tecnologia está a matar a saudade.Isto está confuso, mas eu vou tentar explicar. Se baralhar ainda mais, paciência. A culpa é da insónia. E uma insónia destas há-de ter as costas bem largas. No século passado havia o telefone fixo, mas nem toda a gente tinha telefone e as ligações eram péssimas. Para não falar do custo de cada chamada. Os contactos com familiares e amigos eram escassos. Raros, raríssimos, rarérimos. Ao fim de algum tempo vinham as saudades. E não havia tantos carros, nem outros transportes. Ia-se à terra no Natal, na Páscoa e nas férias do Verão. Para matar o porco ou o cabrito, ou o pirum. E para matar saudades, pois claro. Agora a saudade nem tem tempo de crescer. É morta à nascença. No útero. Quando ela começa a mexer cá dentro, zás, rapa-se do telélé, liga-se a net, ou arranca-se com o fiat punto estrada fora, e já está. É o chamado aborto digital. Qual terapêutico, qual carapuça??!! Serafim, qualquer dia a saudade é o apêndice do espírito. Está no dicionário mas não tem qualquer função. Vai acontecer-lhe o mesmo que aconteceu ao lince da serra da Malcata. Desaparece. Só se falará dela em mesas redondas, congressos, seminários, documentários do canal história. É trágico meu amigo. Com a saudade extingue-se o fado, extinguem-se as mornas caboverdianas, extinguem-se as declarações de amor, os abraços calorosos dos reencontros. Que saudades vamos ter da saudade. Hoje vi na televisão uma reportagem sobre um pagador de promessas. O gajo tem uma página na internet para anunciar o serviço. Vive em Cascais e vai a Fátima a pé por quinhentos contos a viagem. Quem não quer ter dores nas pernas nem bolhas nos pezunhos, paga e livra-se de canseiras. Prometer agora não custa. Quer dizer, custa mas não cansa. E veio-me agora à cabeça a história daquela médica da Chamusca que descobriu a sua verdadeira vocação. Aventureira. É a Indiana Jones da medicina. A senhora doutora Fátima Ferreira dava consultas numas terreolas daquele concelho mas fartou-se da pasmaceira. Aquilo era só velhos e velhas com gota, reumático, castrol. Nada de entusiasmante. Nada de desafiante. Um dia a dia estagnante. Profissionalmente. Pessoalmente.Um dia partiu à descoberta do terceiro mundo. À descoberta de doenças a sério. De sofrimentos extremos. Largou a velharia da Chamusca e andou por Angola, por Timor, pela Jordânia, pelo Iraque. Os doentinhos crónicos portugueses queixaram-se por deixarem de ter assistência médica e a senhora não compreendeu tamanha falta de solidariedade internacionalista. Egoístas, ingratos, quererem um médico para si quando há tanto doente por esse mundo fora. A última vez que a vi estava de colete à maneira numa fotografia do Correio da Manhã a dar uma entrevista. Já teve os seus minutos de fama. Já se fala nela nos jornais. Até aqui n’ O MIRANTE. Se a senhora não está feliz é porque é das tais. Das eternamente insatisfeitas. E se é esse o caso aconselho-a a ir ao médico. Ao médico de família, já se vê. Se ele não tiver partido para a China, numa missão de combate à atípica.Na despedida uma referência ao gás mostarda do amigo Fanã, de que falas no teu e-mail da semana passada. Felizmente estavas com a máscara colocada na altura em que começou a fermentação do feijão, caso contrário não tinhas ficado cá para contar. E a máscara aguentou-se bem. Foi um milagre Serafim. Um autêntico milagre. Devias ir a Fátima a pé, agradecer a Graça Divina. Ou então mandar lá o outro, o pagador de promessas. Se andares com vontade de esbanjar dinheiro à toa.Um abraço ecológico do Manuel Serra d’Aire

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