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“Santarém é uma terra infeliz”

Joaquim Veríssimo Serrão, académico reputado, homem de cultura, apaixonado pela sua cidade

Na véspera de mais um feriado municipal em Santarém, o historiador e académico Joaquim Veríssimo Serrão celebra o seu amor pela cidade e pela região e fala das oportunidades perdidas nas últimas décadas. Nesta conversa critica ainda a partidocracia e deixa transparecer alguma mágoa com o que se seguiu à revolução de Abril.

Recebe-nos na Casa do Pinheiro, em Salmeirim, nos arredores de Santarém, na manhã de sábado. O toque da campainha interrompe-lhe as tarefas de bricolage a que se dedica habitualmente nesse dia da semana. O historiador e académico Joaquim Veríssimo Serrão surge ao portão do amplo quintal, polvilhado de gatos, pinheiros mansos e cedros, com roupas de trazer por casa, ar descontraído, barba por fazer. Pede-nos simpaticamente que não lhe tiremos fotografias porque não está “em condições”. A conversa decorre na divisão transformada em biblioteca e sala de trabalho. As obras literárias acumulam-se em prateleiras. Pelo chão espalham-se recortes de jornais, papéis, caixotes cheios de informação que um dia foi ou poderá vir a ser útil. Nas paredes ou em móveis repousam imagens religiosas, fotografias de familiares, do Papa João Paulo II, de Marcelo Caetano - o chefe de Governo de quem esteve para ser ministro da Educação. Quando olha para Santarém hoje o que é que vê?Estou muito ligado a esta terra, talvez porque vivi muitos anos fora. Nasci aqui em 1925. O meu pai era um modesto comerciante. Nesse tempo a cidade formava um todo. Santarém era a população que vivia dentro das muralhas. Toda a gente se conhecia. Hoje faço uma vida muito retirada da cidade, mas vejo-a como uma terra que continua a ter encanto mas em que há anomalias. Falta-lhe vida. Não digo que seja um sarcófago, mas para muita gente é. Às sete horas as pessoas vão para casa. Há poucos cafés e restaurantes abertos. É preciso acabar com isso. Santarém tem sabido honrar e preservar a sua história?Santarém é uma terra muito infeliz. Teve dois sismos terríveis, em 1531 e 1755, que destruíram muitas relíquias do passado. Santarém era das terras mais ricas do ponto de vista monumental no país. Depois disso, a cidade teve ainda mais duas fatalidades no século XIX: a ocupação pelas tropas francesas de Massena, que esteve aqui quatro meses, e a guerra entre os irmãos Pedro e Miguel. A então vila esteve ocupada pelos dois exércitos. Muitos dos monumentos se não desapareceram pelo menos envelheceram. Depois, durante o liberalismo, os antigos conventos foram ocupados para instalar repartições públicas e militares. Se Santarém não tem tido estas provações do tempo e da história hoje era uma grande Évora.Acha que o poder político local e central ao longo dos anos tem sabido cuidar do património que ainda resta?Na medida do possível. Nos meus tempos de rapaz já se andava a restaurar o Convento de São Francisco e hoje ainda continuam a restaurá-lo. Mas os monumentos góticos foram preservados. Houve obras em Santa Clara, na Graça, na Igreja de Santa Cruz, em São João do Alporão. Embora também tenham havido verdadeiras barbaridades, como as obras do convento da Trindade, onde se deitaram abaixo coisas que se deviam ter conservado. Foi há 50 anos. Se a torre está lá deve-se a mim. Houve luta e polémica nos jornais porque se argumentava que a torre não tinha valor. A defesa do património já estava na ordem do dia...Tenho impressão que havia um carinho maior pelas coisas de Santarém há 50 anos do que hoje. As coisas não se punham em termos políticos nem ideológicos, era mais a defesa da cidade. Era inconcebível nesse tempo mandar-se fazer uma piscina a dois metros das muralhas das Portas do Sol, como se fez.Qual seria a prenda mais útil para a cidade neste feriado municipal?Era que o Governo restaurasse as muralhas da cidade. Que assumisse esse ónus para com a cidade e a sua antiga grandeza e também com a característica que sempre teve de ser uma terra bem portuguesa. Sem a sua conquista, Lisboa não tinha sido conquistada.A candidatura de Santarém a património da humanidade foi uma tentativa de relançamento dessa antiga grandeza. Eu nunca concordei muito com isso. Como conhecia muitas terras no estrangeiro e em Portugal, sabia que à partida era uma batalha perdida. Porque apesar de conter muitas relíquias do seu passado, a cidade ficou arrasada com os sismos de 1531 e de 1755. Santarém é uma terra quase sem palácios.Foi mais uma oportunidade perdida?Acho que não valia a pena gastar dinheiro. Nessa altura falei com o presidente da câmara e disse várias vezes que Santarém tem trunfos fundamentais para valorizar. Um deles é ser capital do gótico. Não há nenhuma terra portuguesa que tenha tantos monumentos góticos. E já não falo do problema romano, pois as Portas do Sol parece que têm ali uma Conimbriga. Só tem que se escavar quatro metros, mas isso significaria arrasar o jardim...Acha que vale a pena?Talvez valesse a pena, embora o jardim seja um encanto.Voltando atrás. Que outros trunfos possui Santarém para se afirmar?Santarém devia ter aproveitado a circunstância de Pedro Álvares Cabral, descobridor do Brasil, estar aqui e afirmar-se como capital do Brasil em Portugal. Muita gente brasileira que vem a Portugal e procura raízes vai a Belmonte. Belmonte foi a terra do pai de Pedro Álvares Cabral, mas não há sequer certezas de ele lá ter nascido. Ao passo que há certeza que ele está enterrado em Santarém. Esses trunfos é que deviam ser explorados, em vez de se gastar dinheiro como se gastou.Não gostava que Santarém tivesse sido classificada como património da humanidade?Claro que gostava. Mas quando se compara Santarém com Marvão ou com Óbidos ou com o centro de Guimarães, mesmo com Viseu ou com os oitenta e tantos palácios que tem Viana do Castelo, ficamos a perder. Devíamos ter visto onde nos podíamos impor.É um apaixonado pela sua cidade mas não é fundamentalista. É isso?Sim. Santarém tem monumentos digníssimos, panoramas fabulosos sobre o Ribatejo e a História está cheia de dados sobre ela. Centenas de pessoas ilustres nasceram em Santarém. Mas tenho a consciência que isso só não chega para fazer de uma cidade património da humanidade.“Sou um fervoroso defensor do Ribatejo”Santarém foi considerado até há poucos anos, sem grande contestação, capital do Ribatejo e principal pólo urbano desta região. Acha que a cidade tem vindo a perder peso e influência no contexto regional e nacional?Primeiro que tudo não posso aceitar que a expressão Ribatejo esteja a desaparecer substituída por Vale do Tejo...Mas a província Ribatejo já não existe há uns bons anos enquanto realidade administrativa...Mas existe a tradição ribatejana. Um dos erros deste regime foi acabar com as províncias. A província subsiste ao lado do distrito. É um corpo tradicional, folclórico, etnográfico... O Ribatejo foi criado em 1937 como simbiose entre três regiões que o Tejo une – a lezíria, o bairro e a charneca. Santarém perdeu ou não influência?Perdeu um pouco por culpa própria. E é justo também que as terras à volta não sejam satélites de Santarém e se tenham desenvolvido. Acho muito bem que Torres Novas, Tomar, Almeirim ou Cartaxo se tenham desenvolvido. Tomar até merecia ser capital do Ribatejo Norte e Santarém do Ribatejo Sul.É mais ou menos isso que vai acontecer, com a divisão do distrito em duas comunidades urbanas, a da Lezíria e a do Médio Tejo. Como vê esse processo?Não acho que a criação dessas duas comunidades urbanas vá criar divisões entre o norte e o sul do distrito. Cada terra tem de dar o melhor de si para valorizar o conjunto económico e social. Há traços comerciais, o Tejo é um traço de união e nós não estamos em momento de fomentar rivalidades. Já há rivalidades a mais com a partidocracia que para aí há.Já que estamos a falar do Ribatejo, porque é que falhou o projecto que pretendia criar uma universidade na região?Em 1980 o ministro da Educação Vítor Crespo convidou-me para ser o primeiro presidente do Instituto Politécnico de Santarém. É evidente que eu sou professor universitário e o ensino politécnico naquela altura era um ensino terminal. Os cursos tinham três anos, preparava bacharéis para o mercado de trabalho. E eu era contra o ensino terminal, porque não dava a possibilidade aos jovens da região, que tinham valor e queriam subir, de poderem licenciar-se. O meu sonhor era criar o politécnico, como se criou, e transformá-lo em universidadeO que é que falhou?Quando a coisa estava já conseguida o ministro da Educação José Augusto Seabra, num gesto muito feio, não o permitiu. Mas também aí o poder político - éramos governados pelo chamado bloco central - não mostrou interesse. Não tiveram noção que esse era o momento de passar o politécnico a universidade, como já haviam feito a Covilhã, Aveiro, Braga ou Vila Real. Como isso não aconteceu voltei para Lisboa, para o meu lugar de catedrático na Faculdade de Letras. Faria sentido que aquilo que existe hoje a nível do ensino superior no distrito pudesse ser transformado numa universidade do Ribatejo?Claro que fazia! Mais do que nunca! Mas não quiseram...Esse e outros desaires deixam a ideia que a região não soube impor-se junto do Terreiro do Paço, dos centros de decisão.A culpa talvez não seja do Terreiro do Paço. Talvez seja dos centros políticos da região que olharam mais para o umbigo dos partidos do que para os interesses da região. Porque não há razão nenhuma para que em 1984 não tivesse havido aqui um movimento para levar isso para a frente. E agora já é tarde.Acha que os agentes locais deviam retomar essa velha luta?Eu ficava muito contente. E tem havido do Politécnico de Santarém esse desejo. Não queria morrer sem publicar os discursos sobre o assunto que fiz nessa altura, durante quatro anos.João Calhaz

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