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A morte errou o alvo

As histórias de Rodrigo Ferreira, um reformado de Chancelaria que já passou por uma morgue

Rodrigo Ferreira é um homem com muitas histórias para contar. Já foi dado como morto e, graças ao diagnóstico, passou pela morgue de um hospital de Lisboa. Hoje, reformado mas cheio de vida, dedica-se à horta, aos petiscos e a coleccionar telefones.

Fazia 19 anos daí a dias quando um acidente de comboio o atirou para a morgue do Hospital de São José, em Lisboa, com o número 2092 inscrito numa chapinha presa com uma guita a um tornozelo. Hoje, com 61 anos, Rodrigo Dias Ferreira conta a história com humor. Afinal, só um homem cheio de vida poderia lembrar-se de coleccionar telefones.Nasceu na Chancelaria, freguesia de Torres Novas e aos 17 anos foi aprender o ofício de lubrificador e lavador para a oficina de um tio, em Lisboa. “Eles não tinham filhos e chamaram-me para lá”, conta.De casa dos pais chegavam os mimos da terra, acondicionados em cabazes de verga despachados pelas camionetas dos Claras. Um dia, depois do trabalho, Rodrigo foi até à estação de Campolide apanhar o comboio para o Rossio. A intenção era ir à garagem dos Claras buscar uma dessas encomendas.Mas a viagem foi atribulada. “Fui comprar o bilhete e quando atravessava a linha para apanhar o comboio fui apanhado por outro que me entalou contra o cais”. Entretanto perdeu os sentidos. “Pelo que me contaram depois, acabei por ir mesmo no comboio para que tinha comprado o bilhete até ao Rossio onde estava uma ambulância que me levou para São José. Acharam que era mais rápido”.Sempre inanimado, Rodrigo deu entrada no hospital, os médicos consideraram-no morto e foi para a pedra fria, com a identificação 2092. No dia seguinte, a família nada sabia de Rodrigo, embora ele levasse consigo a carteira com a identificação. “A minha sorte foi o meu tio ter dois médicos amigos que eram clientes da oficina, penso que já morreram. Foram eles que me encontraram na morgue e me tiraram de lá. Eu só acordei quando me estavam a tratar. Mas isso já foi há tanto tempo...”. Há 42 anos, mais precisamente.Esteve internado cerca de mês e meio, sem sequer desconfiar que a sua vida tinha estado presa por um fio. “Só soube da história quando quis levantar as minhas coisas, carteiras e roupas e ninguém no hospital era capaz de as descobrir. Fartei-me de subir e descer e nada”.A certa altura lembrou-se da chapinha. “Foi o que valeu. Quando disse ao homem que me tinham posto uma chapinha com o número 2092 ele respondeu-me ‘já podia ter dito’ e num instante abriu uma gaveta e deu-me a carteira. A minha tia que ia comigo só se ria”.A “aventura” não fica por aqui. Já em casa e recuperado Rodrigo recebe uma carta da estação de Campolide, informando os seus familiares de que havia um conta a pagar. Chegou lá e perguntou-lhe o chefe: “É familiar do rapaz que foi atropelado pelo comboio. Não, sou mesmo eu, respondi-lhe. Ele não queria acreditar e continuava a insistir que eu estava morto. O homem da bandeirola que me tinha tirado ficou de boca aberta quando me viu vivo. Lembro-me tão bem ele só dizia: ‘Era só sangue, ele estava morto”.A conta para pagar era do transporte de ambulância. “Não paguei nada, era o que faltava. Eles é que me deviam pagar pelo trambolhão que apanhei. Fiquei com a cabeça aberta, uma orelha toda rasgada que eles devem ter colado sei lá com quê, da parte de trás é duro como o ferro”.A história fica para os anais. Rodrigo continuou a trabalhar na oficina do tio até que foi chamado para a tropa e mobilizado para a Guiné: “Ao fim de nove meses e meio mandaram-me embora por excesso de nervos, disseram eles”. Sobre o que se passou nesses meses em que esteve na Guiné, Rodrigo prefere não falar, mas voltar a Portugal foi uma bênção: “Estava farto daquilo, mesmo antes de ir para lá já estava farto”.Telefones de todos os tamanhos e feitiosRodrigo vai desfiando memórias num recanto da garagem da sua casa na Chancelaria reservada aos amigos, com quem o anfitrião gosta de partilhar uns bons petiscos. “Esta é a mesa dos petiscos, escreva aqui em cima se quiser”.Nas paredes e nas vigas do tecto estão toda a sorte de objectos, isqueiros, cangas, balanças, telefonias, foles, alicates e telefones, entre muitas outras peças que foi juntando ao longo dos anos.“O telefone mais velho é dos anos 50, ainda não tem números”. Não se considera um coleccionador, mas há muitos anos que vai guardando e comprando peças. Depois da tropa, concorreu para a PT, entrou para as oficinas, mais tarde tirou a carta e ficou como condutor: “Os telefones consegui-os nessa altura, a maior parte iam para o lixo”.Entrou na idade da pré-reforma e quando a empresa lhe propôs a saída do activo só quis saber se o que iria receber era compensador: “Fiz as contas, era bom e não olhei para trás. Assinei o contrato de manhã e à tarde já estava a caminho da Chancelaria. Deitava Lisboa pelos olhos e ainda hoje quando lá vou ver as filhas só quero voltar para aqui”.“Aqui” é o sossego. Os carros passam ao longe, os vizinhos não apoquentam e Rodrigo entretém-se a cuidar da horta, dos patos, galinhas, coelhos e cabras. “São bem tratados, até lhes dou música”, diz ligando à corrente uma velha telefonia presa numa viga. “E há os amigos que vêm para o petisco. Eu gosto de ter visitas”.Margarida Trincão

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