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O vidente bancário

O vidente bancário

Carlos Alberto constituiu família, fez uma “vida normalíssima”, mas morreu novo

A criança de Asseiceira que diz ter visto Nossa Senhora levou uma vida normal, casou e teve filhos. Faleceu aos 37 anos vítima de acidente de viação.

A vida de Carlos Alberto Delgado não mudou radicalmente após os acontecimentos de 16 de Maio de 1954, quando pela primeira vez afirmou ter visto Nossa Senhora em Asseiceira. O filho de um cantoneiro da Câmara de Rio Maior e de uma trabalhadora rural continuou a marcar presença todos os dias 16 no designado recinto das aparições de Asseiceira, mas o novo estatuto não lhe colocou obstáculos incontornáveis no caminho nem lhe subiu à cabeça. Estudou, namorou, fez a tropa na Escola Prática de Cavalaria de Santarém e casou com a sua namorada de sempre.“Fez uma vida normalíssima”, conta a viúva, Célia Delgado, 57 anos. A excepção talvez tenha sido a negativa que lhes foi dada pelo padre Armando, de Rio Maior, quando pensaram em contrair matrimónio pela Igreja. “Quem foi falar com o padre fui eu. Disse-me que só nos casava se ele se retractasse. Se negasse que tinha visto Nossa Senhora. Mas ele disse que isso não podia fazer. E acabámos por casar só pelo civil”. Em 21 de Setembro de 1968.O casal residiu depois dois anos em Alpiarça, antes de mudar para as Caldas da Rainha. Carlos Alberto era funcionário bancário nessa cidade quando a morte o apanhou de surpresa num domingo fatídico, 9 de Novembro de 1980. Em Óbidos, um autocarro de passageiros desgovernado colidiu com o carro onde transportava a família em passeio. Carlos Alberto morreu a caminho do hospital de Coimbra. Teria hoje 61 anos. O seu filho, de 11 anos, morreu seis meses depois em sequência dos ferimentos. A esposa e a filha ficaram para contar a história.“Nunca falava nas aparições. E eu também não puxava a conversa. Era um assunto de que não se falava em casa”, continua a viúva, também ela filha de Asseiceira, quando lhe perguntamos se a fama de vidente não interferia na vida do casal. A ligação de Carlos Alberto ao fenómeno consumava-se apenas nos dias 16. Quando não podia estar presente, enviava uma cassete aos crentes com palavras suas gravadas, hoje ampliadas pelo megafone que se ampara nos ramos de uma oliveira contígua à chamada “capelinha das Aparições”.Há pouco tempo, Célia Delgado não resistiu aos insistentes chamamentos de alguns populares da aldeia e decidiu integrar a comissão que zela pelo recinto. “Não queria que dissessem que isto existia por causa da mulher”, explica. Preferiu manter sempre algum distanciamento face ao fenómeno e à exploração que é feita dos acontecimentos que ali se terão verificado. Agora, já aposentada, cedeu.Os testemunhos de fiéis de sempreMilagres e visões para todos os gostosCada qual tem a sua versão dos milagres e das graças concedidas por Nossa Senhora de Asseiceira. Os relatos orais de testemunhas que ali estiveram em 1954 falam em velas que se acenderam sozinhas, de vultos na improvisada capela construída à época, de soldados da GNR vergados por uma força sobrenatural.Nos registos da imprensa da época nada disso é mencionado. O crivo apertado da censura salazarista não permitia que transpirassem para a opinião pública situações que as autoridades eclesiáticas se recusavam a acolher. E a verdade é que poucos meses passados desde a primeira aparição o assunto deixou de ser citado nos jornais de grande circulação.José Vasco, 69 anos, vem de Vale de Óbidos, Rio Maior, ao local das alegadas aparições todos os dias 16 desde Julho de 1954. Foi por curiosidade, “para ver o que ia acontecer” e nunca mais deixou de ir. A 16 de Dezembro desse ano “deu-se o desfecho maior”. Os militares da GNR não deixavam os populares aproximarem-se do recinto, mas “mais ou menos na altura de Nossa Senhora aparecer ao Carlos Alberto o pessoal foi-se chegando e a guarda nunca mais foi capaz de segurar o povo”.O devoto diz que viu um vulto dentro de uma capelinha que ali havia feita em plástico. “Uns gritavam que era Nossa Senhora, mas ao certo não sabíamos o que era. Depois desceu uma ave, que a malta gritava que era um anjo. Eu não sei o que era, parecia um peru”. Maria José Timóteo, esposa de José Vasco, é outra crente na Nossa Senhora de Asseiceira. “Eu quando nasci já encontrei cá Fátima e acreditei, mesmo nunca tendo visto lá nada. E aqui na Asseiceira vi!”. E o que é que viu? “Nossa Senhora há muita gente que viu, mas eu não vi”. Viu, como muita gente diz ter visto, o sol a ganhar tonalidades diferentes. A fazer-se de noite de repente. E a imagem no céu de Carlos Alberto, já então falecido, ajoelhado em frente a Nossa Senhora.Não admitem que isso possa ter sido uma visão? Uma sugestão? “Foi um sinal de Nossa Senhora para que não deixássemos de cá vir mesmo depois de ele ter falecido”, respondem.Maria Ernestina Santos, 65 anos, também de Vale de Óbidos, descreve um alegado milagre na primeira pessoa: “Estava a fazer limpeza no meu quarto, onde havia umas lanternas com umas velinhas que o meu pai tinha feito para vir aqui a Nossa Senhora. Achei que não estavam lá bem e fui pô-las a um barracão que a gente tinha. De noite deu-me a sede e vim cá fora à bilha. Qual não é o meu espanto quando olho para as lanternas e vejo uma luzinha acesa em cada uma”.
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