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Mais um dia sem beber

Mais um dia sem beber

O MIRANTE foi a uma reunião dos Alcoólicos Anónimos

A abstinência conquistada a pulso. Um dia de cada vez. Os Alcoólicos Anónimos ajudam todos os que se querem libertar das garras da bebida. Todos os que querem voltar a ter uma vida normal.

“Eu sou Maria e sou alcoólica”. O nome é fictício. A história é semelhante a muitas outras. Anos a fio nas garras do álcool, até que um dia decidiu dizer “basta”. Nos Alcoólicos Anónimos (A.A.) encontrou um abrigo, um local de compreensão onde partilha experiências de vida, onde enfrenta a doença que a privou de uma vida normal. O alcoolismo.É com esperança que “Maria” se desloca aos núcleos dos Alcoólicos Anónimos da área oito, uma área que comporta Santo António dos Cavaleiros, Odivelas, Alverca do Ribatejo e Vila Franca de Xira. As reuniões realizam-se duas vezes por semana.Pede que a tratemos por “Maria”. Não só por uma questão de privacidade, mas porque, acima de tudo, “importa a mensagem. Não o mensageiro”, como diz. O MIRANTE acompanhou-a à reunião em Alverca. São nove da noite e começam a chegar os primeiros elementos à sala cedida pela Fundação Cebi (uma organização de apoio comunitário).São pessoas entre 30 e 50 anos de idade. Antes do início do encontro trocam cumprimentos e breves palavras. Algumas fumam. Outras aproveitam para beber um café. “Como eu estava a dizer, A.A. é uma comunidade de homens e mulheres que se regem por tradições e pelo princípio da auto-suficiência e da responsabilização, e que têm como principal objectivo alcançarem a sobriedade”, vai explicando Maria.Para se ser membro basta apenas que se tenha vontade de parar de beber. “Não há registo de nomes, nem de dados. Não há tratamentos e todas as contribuições são voluntárias, ou seja, nós responsabilizamo-nos pela nossa cura e pela abertura dos grupos. Este princípio impede-nos de aceitar contribuições vindas de fora”, acrescenta.Drama atinge todas as classesComo todas as doenças o alcoolismo atinge pessoas de todos os extractos sociais e credos. O núcleo de Alverca, espelha bem esta realidade. Empresários e trabalhadores por conta própria unidos pelo mesmo problema. “A partir do momento em que me preocupava com as horas em que seria correcto beber, já era alcoólica, mesmo sem o saber”, continua Maria. “Desde os 14 anos nunca soube o que era beber moderadamente. Todas as vezes que tocava numa bebida, acabava sempre bêbada, sem noção do que fazia. A bebida funcionava como uma muleta, uma espécie de solução para todos os meus problemas”, diz. Era capaz de estar meses sem beber mas quando o fazia sentia-se incapaz de parar. Uma pessoa esquece-se de tudo. “É uma vontade incontrolável. Sentia-me completamente impotente”, relembra. “Depois vinham os remorsos, as perdas de memória, e por vezes alguns apertos económicos”. Não há necessidade de fazer perguntas. Maria consegue falar do pesadelo de onde está a sair. Falar ajuda. Daí as reuniões. “No dia seguinte a uma bebedeira, se me viessem prender por ter morto alguém, eu não tinha condições para negar, porque não me lembrava de nada”. Nos Alcoólicos Anónimos encontrou a solução, depois de muitos tratamentos hospitalares, e muitas tentativas de recuperação falhadas. “Disseram-me uma coisa muito simples: Isto é só por hoje. Amanhã logo se vê”.Dia a dia, foi conquistando a sobriedade e já lá vão 20 meses. Para trás ficaram muitas amizades perdidas, e muitos anos de sofrimento. “Eu hoje sei que consigo controlar esta doença. Basta não beber o primeiro copo. A partir do momento em que tocar numa gota de álcool, começa tudo de novo. Só eu posso evitar que isso aconteça”, diz como se falasse para si própria.A reunião vai decorrendo. Ana começa a falar de si. Uma variação da mesma história. Começou por beber socialmente na casa dos trinta. Quando a vida lhe pregou “uma partida” e ficou só, o desespero, a depressão e o medo levaram-na a procurar no álcool um refúgio. Tem 56 anos. Está sóbria há 11 meses. “Gostava de um bom vinho, à refeição, e até de um bom whisky, mas quando os problemas começaram a apertar comecei a utilizar o álcool para descontrair. Para esquecer. Para me evadir.”.O consumo aumentava e os problemas pioravam. “Mais tarde, para combater a ressaca, comecei a beber logo pela manhã”. O trabalho começou a tornar-se insuportável, e as horas demoravam a passar. “Contava os minutos para poder ir para casa e beber à vontade”, confessa.Um dia uma amiga teve a coragem de levá-la aos Alcoólicos Anónimos. Teve receio de ser a única mulher na reunião, mas quando lá chegou os nervos e os medos passaram. “Identifiquei-me com as experiências que partilharam comigo, e assim que cheguei a casa comecei logo a devorar a literatura que me deram. O melhor que fiz foi voltar lá”. Os testemunhos sucedem-se. Há recordações que doem. Que custam a sair. Só perante os olhares e os acenos de encorajamento é que os relatos prosseguem. “Bebo desde criança. Tenho anos da minha vida de que não me lembro. Não sei como certas coisas aconteceram”, ouve-se.“Perdi a confiança de toda a minha família. Já ninguém sabia o que fazer comigo”. Alguns dos novos elementos baixam o rosto, pesarosos. “Com os Alcoólicos Anónimos encontrei a solução. Custou-me aceitar que era alcoólico, mas quando o fiz voltei a viver”. Doença sem curaO alcoolismo é uma doença que não tem cura, por isso os membros dos A.A., ainda que não bebam há muitos anos continuam a considerar-se alcoólicos. Não dizem que estão curados, porque uma vez que deixaram de conseguir controlar a forma como bebiam, nunca mais podem ter a certeza de conseguir beber com segurança. Podem, isso sim, tornar-se “alcoólicos sóbrios”. As reuniões são fulcrais na recuperação do alcoólico, mas quando o desespero aperta, de dia ou de noite, podem sempre recorrer à terapia do telefone. 24 horas, sob 24 horas têm sempre alguém - um membro dos A.A. a quem chamam de madrinha ou padrinho - que ao primeiro toque está disponível para ajudar a ultrapassar um mau momento.A hora e meia de reunião passa a correr. Ficou muito por dizer, mas há sempre uma próxima oportunidade de “passar a mensagem”. De mãos dadas, o grupo reúne-se à volta da mesa, onde sobressai uma toalha com as insígnias dos A.A.. O encontro termina com o grupo gritando em uníssono: “Mais 24 horas”. Amanhã? Bem, ... amanhã é um novo dia.
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