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O mau exemplo que vem de cima

O mau exemplo que vem de cima

Maioria dos edifícios públicos não cumpre legislação e continua a travar acessos a deficientes

A lei obrigava a eliminar as barreiras arquitectónicas em edifícios públicos até à passada sexta-feira. Mas no Ribatejo, a maior parte das entidades fez orelhas moucas e continuou a ignorar as pessoas com as deficiências motoras ou com dificuldades de locomoção. É o mau exemplo vindo de cima.

Em Dezembro de 2002 Rogério Pereira afirmava numa reportagem a O MIRANTE que os deficientes eram ignorados pelas entidades públicas e privadas portuguesas. Na última sexta-feira, acabou o prazo que o Governo estipulou para que as barreiras arquitectónicas nos edifícios públicos fossem eliminadas. Mas poucas foram aqueles que, no Ribatejo, cumpriram a lei. O que prova que Rogério Pereira, afinal, tinha razão.Em 1997 o Governo fez sair uma legislação específica (Decreto-Lei n.º 123, de 22 de Maio) que exigia a supressão de barreiras arquitectónicas de modo a permitir a acessibilidade a qualquer cidadão em qualquer espaço público ou de natureza pública. Diz o artigo 4º do diploma governamental que as instalações, edifícios e estabelecimentos, já construídos ou em construção, que não garantam a acessibilidade das pessoas com mobilidade condicionada teriam de ser adaptados no prazo de sete anos.O prazo acabou na última sexta-feira. E no Ribatejo continua a existir uma quantidade assinalável de edifícios que pura e simplesmente meteram a legislação na gaveta. Como a agência da Caixa Geral de Depósitos de Almeirim. E muitos outros bancos, repartições de finanças, tribunais, centros de saúde, notários e edifícios camarários, de norte a sul da região. A lista é extensa, demasiado extensa.Rogério Pereira sente-se um cidadão de segunda. Porque continua sem poder depositar ou levantar dinheiro na Caixa Geral de Depósitos de Almeirim. Como a instituição não construiu uma simples rampa ao lado das escadas de acesso ao seu interior, Rogério foi obrigado a mudar a sua conta para um banco com acesso mais fácil.A maioria dos edifícios não necessitavam de grandes obras para instalarem uma simples rampa de acesso ao seu interior. Ou até mesmo um elevador entre os vários pisos. Mas são poucas as entidades que se incomodaram a alterar o que pode ser alterável. Aparentemente sem se importarem pelo incómodo que isso pode causar a centenas de pessoas.Maria Rosa Lourenço, residente no concelho de Tomar, não tem culpa de só ter crescido até aos 76 centímetros. É uma situação que não pode alterar. Aos 48 anos já não consegue manter-se em cima do corpo, tendo de se deslocar em cadeira de rodas.A sua vida não é fácil mas seria menos difícil se pudesse fazer ter algumas compensações. Como assistir a uma sessão de cinema. O que não pode fazer no Cinema Templários, de Tomar. Simplesmente porque os seus responsáveis não tiveram em conta que há pessoas que medem menos de um metro.Viajar de autocarro é impossível, a não ser que tenha alguma ajuda. Se vivesse na cidade vizinha de Torres Novas não teria esse problema. Ali os autocarros urbanos que percorrem a cidade (TUT) estão já apetrechados com uma plataforma específica, que desce para entrar uma cadeira de rodas. Em Santarém o tribunal só tem rampa até ao patamar do rés-do-chão. E os Correios continuam com a sua larga escadaria. Tal como a agência principal da Caixa Geral de Depósitos. A tesouraria da Fazenda Pública de Almeirim só está apta a receber pessoas “normais”.Em Vila Franca de Xira não há deficiente que consiga subir três lances de escadas para poder ser consultado no centro de saúde e as escadarias do tribunal da cidade também não devem ser fáceis de ultrapassar.Há quem tenha feito obras para “inglês” ver. Como as finanças de Abrantes, que construíram uma rampa de acesso para uma porta que raramente se encontra aberta.A maioria das instituições só se decide a implementar uma lei obrigatória quando a isso é obrigada. As escolas são um bom exemplo. Em Torres Novas e Abrantes foram feitos acessos depois de se verificar que havia alunos deficientes inscritos nos estabelecimentos.Há uns anos, entrou para a Câmara de Torres Novas um funcionário deficiente e a autarquia teve de criar uma plataforma elevatória para cadeiras. A plataforma sobe do rés-do-chão ao segundo andar mas poucos munícipes sabem que ela existe, por estar colocada numa entrada secundária, nas traseiras do edifício dos Paços do Concelho.As câmaras são, aliás, as principais prevaricadoras. Poucos munícipes deficientes motores, pessoas com dificuldades de locomoção ou simplesmente pais com carrinhos de bebé podem hoje em dia assistir a uma simples reunião do executivo.Há todavia excepções mas são tão poucas que só confirma a regra. Praticamente a totalidade dos gabinetes onde funcionam os serviços concelhios da Segurança Social estão equipados com rampas de acesso, uma garantia dada pelo director distrital.Nos equipamentos de saúde também houve obras de adaptação em muitos concelhos. Foi-se aproveitando a necessidade de realização de algumas obras de conservação nos edifícios para se introduzirem também melhorias ao nível da locomoção das pessoas.Como irá acontecer no Centro de Saúde de Marmelais, Tomar, que entrou agora em obras. Segundo Fernando Afoito, responsável máximo pela saúde no distrito, será colocado ali um elevador de acesso ao primeiro piso. A Constituição Portuguesa proclama o princípio da igualdade, o direito à qualidade de vida, à educação, cultura e ciência para todos os cidadãos. Mas a realidade é bem diferente para o cidadão deficiente. E pelo visto, não há constituição que lhe valha.Indemnizações podem pagar “esquecimentos”A Associação Portuguesa de Deficientes anunciou na terça-feira que os cidadãos e/ou organizações podem processar o Estado português por ter falhado a eliminação das barreiras arquitectónicas no prazo estipulado.Rogério Pereira, um deficiente motor de Almeirim, tem intenção de seguir o conselho da associação. Não é pelo dinheiro, é pelo princípio. “Os governantes não podem só ter direitos, têm de ter também deveres. E cumpri-los”, diz o deficiente, adiantando que, neste caso, “falharam todos”.Até os próprios deficientes, porque não foram capazes de se impor perante a arrogância, insensatez e o deixa andar das instituições públicas ou de serviço público.“Se cada deficiente exigisse agora do Estado uma compensação de 100 mil euros para pagar a ineficácia governativa, apareceriam de repente rampas em tudo quanto era sítio”, ironiza o deficiente de Almeirim, finalizando com um desabafo – “Tenham vergonha”.
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