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Carreira rumo ao esgotamento

Carreira rumo ao esgotamento

Vítimas das exigências da vida profissional são cada vez mais

Cada vez é mais comum ouvir trabalhadores, independentemente da sua área profissional, falarem em stress, depressão, esgotamento. Porque a vida é cada vez mais exigente e os profissionais têm de a acompanhar. Mas há alguns que não conseguem ultrapassar o desgaste psicológico que as profissões provocam e vão-se abaixo.

Ainda hoje, seis meses após a primeira consulta no psiquiatra, Telma Soares toma em média cinco comprimidos por dia. Para “se aguentar em pé”, como ela própria diz. Mas continua a viver um dia de cada vez. Como Telma, muitas outras pessoas sofrem do que se chama desgaste psicológico profissional. Antigamente havia um pequeno grupo de profissões em que o risco de desgaste era assumido por todos – professores, polícias, médicos, motoristas de longo curso, entre outros. Hoje, o conceito de profissão de rápido desgaste psicológico está generalizado. “A vida é mais exigente. Os patrões querem mais, os trabalhadores forçam o seu ritmo. Há pessoas a trabalhar 16 horas por dia para manterem o nível de vida a que estão habituadas”, referiu ao nosso jornal uma psiquiatra clínica da região. O reverso da medalha vem depois.Para Telma Soares as manhãs são as piores. Assim que acorda – hoje já consegue dormir – as mãos tremem-lhe só de pensar que irá estar todo o dia a fazer a mesma coisa, a funcionar como um autómato. Telma mora em Alverca e trabalha numa empresa de componentes para auto-rádios. Durante oito horas por dia tem de encaixar peças minúsculas, tão minúsculas que quando chega a casa quase não consegue mexer os dedos.Quando conseguiu aquele emprego, há cinco anos, achava que era uma mulher cheia de sorte. Hoje vai engolindo o seu desespero na meia dúzia de comprimidos que toma. “Trabalhar como uma máquina deu-me cabo dos neurónios”, confessa. Por alturas do Natal começou a ter insónias, a protelar a ida para o trabalho, a “esconder-se” das colegas na hora do almoço. Sabia que não estava a atingir os objectivos que a empresa pretendia e começou a sentir a “mania da perseguição”.Fez-se forte e tentou escamotear o seu desgaste físico e psicológico. Até ao dia em que teve de parar o automóvel na Ponte Vasco da Gama para vomitar. “Depressão nervosa” foi o diagnóstico do psiquiatra que tem acompanhado Telma Soares nos últimos seis meses. Hoje a jovem, que nunca deixou de trabalhar, tenta olhar para o seu trabalho de uma forma mais humana. “Tento interiorizar que é um ser humano que vai utilizar o rádio que estou a fazer”.Mas há quem depois de ter um problema destes não consiga regressar à vida normal. O mais comum, segundo alguns psiquiatras e psicólogos contactados pelo nosso jornal, é ter recaídas de tempos a tempos. Só assim se explica o comportamento de um arquitecto e professor residente em Ourém. No início do mês de Agosto apareceu nu nas ruas da cidade. Sem mais nem menos. E dias depois agrediu um agente da polícia no Entroncamento, sem este ter sequer aberto a boca. “Saiu do carro aos berros, deu-me dois socos no peito e destruiu o ciclomotor em que eu circulava”, refere o agente.O homem acabou por ser detido, enviado para o hospital de Santarém e posteriormente transferido para o hospital psiquiátrico Júlio de Matos, em Lisboa. De acordo com o que familiares relataram à polícia, o arquitecto sofre de anomalia psíquica pontual. Devido ao excesso de trabalho.O dilema dos professoresNão há estatísticas mas os professores estão certamente no cimo da lista das profissões de maior desgaste psicológico. Antes da abertura do ano lectivo é a incerteza da colocação e/ou em que zona é que vão dar aulas. Depois é o desgaste diário de horas ao volante para chegar à escola que lhes calhou em sorte.Há dois anos Sandra Marques residia em Montalvo, no concelho de Constância, e dava aulas em Benavente. Todos os dias atravessava a região e fazia cerca de duzentos quilómetros para dar cinco horas de aulas. Era um stress diário, compensado em parte pelo facto de ir acompanhada por mais colegas que também ficaram “retidas” no sul do Ribatejo.Houve uma fase em que Sandra sentiu que não iria aguentar a situação por muito mais tempo. Valeu-lhe uma gravidez não planeada mas desejada. Pediu autorização para dar aulas mais perto e a meio do ano foi transferida para Constância.Menos sorte teve Célia Neves, de Tomar, que nem o estágio conseguiu terminar. No terceiro ano do curso de línguas e literaturas modernas optou pela via do ensino e, chegada a hora do estágio, foi dar aulas para Oliveira do Hospital. Desistiu três meses depois, com um esgotamento.Aquele escasso período em que deu aulas deu para perceber que não conseguia motivar os alunos, mantê-los atentos à lição. E, como diz, “sem ter alunos para nos ouvir não faz sentido continuar”.De início foi aguentando a pressão até que adormecia e acordava a chorar convulsivamente. Tentou ser forte mas a depressão venceu. E teve de recorrer a ajuda psiquiátrica. Mais comprimidos para aliviar o stress e mantê-la estável e equilibrada. Mas o trauma nunca foi esquecido.Já lá vão quatro anos e hoje Célia Neves está desempregada. Mas, por estranho que pareça, diz sentir-se feliz. Por não ter que falar para quem não a quer ouvir.Margarida Cabeleira
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