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Pertenças e Diferenças

“A penetração de pessoas com formação superior nos grupos folclóricos vai ser, assim, inevitável. Afinal, o Folclore corresponde à área mais prolífera de pesquisa e divulgação da cultura tradicional portuguesa. Cultura vista como estritamente rural, é certo, mas consistindo, apesar de tudo, num elemento crucial para a compreensão das vivências de um povo, que o 25 de Abril fez paradigma, quase modelar, da alma nacional.”

Fazendo parte dos famigerados “três Fs” com que o Estado Novo anestesiou durante décadas o povo português, o Folclore enfrentará os novos rumos que “Abril abriu”, suportando o estigma de um conservadorismo latente, visto como retrógrado e reaccionário.Foram, todavia, as novas condições aí criadas, com a universalização do ensino e a vulgarização do academismo em todos os estratos sociais, que permitiram transmudar uma actividade até aí essencialmente lúdico-política, numa área de intervenção cultural e patrimonial.A penetração de pessoas com formação superior nos grupos folclóricos vai ser, assim, inevitável. Afinal, o Folclore corresponde à área mais prolífera de pesquisa e divulgação da cultura tradicional portuguesa. Cultura vista como estritamente rural, é certo, mas consistindo, apesar de tudo, num elemento crucial para a compreensão das vivências de um povo, que o 25 de Abril fez paradigma, quase modelar, da alma nacional.Alguns pertenciam já a agrupamentos (quantas vezes desde crianças), e aí permanecerão. Outros darão origem a novos projectos de estudo e preservação da matriz tradicional, criados de raiz e dotados de novas perspectivas e rigor conceptual. Uns poucos, vão herdar alguns agrupamentos em crise directiva, e terão oportunidade de inflectir percursos e objectivos, procedendo a reformas organizativas e reciclagens temáticas mais ou menos aprofundadas.As noções de representatividade cultural, os conceitos de tradicional e de usualidade sistemática (essenciais para a introdução dos necessários pressupostos epistemológicos nesta área da cultura tradicional) contribuirão para impregnar de racionalidade uma actividade até aqui mítica, de objectividade uma área em grande subjectiva, de cientificidade uma actividade até aqui maioritariamente empírica.Contudo o resultado final, expresso hoje na imagem global pública do “movimento folclórico nacional”, não é, na verdade, brilhante!Apesar do incremento de notoriedade (e respectiva mais valia) das muitas pessoas, ora envolvidas nesta área (professores, médicos, advogados, empresários, etc.,..) não foi dado o passo em frente que se impunha e, admitamo-lo, de alguma forma se esperava.Razões diversas concorreram para tal.Não só porque a natureza da formação académica nem sempre é de molde a facilitar a compreensão da essência da representação folclórica mas, ainda, porque a natureza de grupos sociais primários (mesmo que eventualmente institucionalizados) da maior parte dos agrupamentos folclóricos, torna particularmente difícil proceder a alterações internas de mentalidade e procedimento.A obtenção de uma formação superior por parte, essencialmente, de elementos mais jovens (ou a inclusão de elementos jovens com formação superior), nem sempre acarreta, só por si, uma alteração significava da estrutura interna de poder. A existência de líderes carismáticos, muitas vezes fundadores dos grupos, (cuja palavra frequentemente é lei, e a lei, frequentemente, é dogma), possuindo idiossincrasias muito peculiares e exercendo grande ascendência sobre os restantes membros, não permite aos recém-licenciados substanciais condições de afirmação e liderança.E é, neste contexto, que as mudanças apesar de tudo verificadas, devem ser encaradas. Aproveitando, como dissemos, conjunturas favoráveis (ou criando-as), os novos etnógrafos e dirigentes folclóricos, dotados de metodologias científicas, têm lançado mão à direcção de alguns agrupamentos, introduzindo nas respectivas representações novas perspectivas e exigências conceptuais, alargando âmbitos, aliando ao factor divulgação a vertente preservação e, até, nalguns casos especiais, a própria reanimação fenomenológica.Porém, tais esforços pontuais, não têm sido acompanhados de um correspondente enquadramento institucional, a nível nacional, que os generalize e sistematize.Nem o INATEL, entendendo o movimento folclórico como coisa menor que interessa manter em letargia, nem a Federação do Folclore Português, emanação dos grupos que temos (rústica e conservadora; sem grande consciência do mundo em mutação que a rodeia), podem, e principalmente querem, assumir-se como agentes ou motores da mudança.Isto, apesar das tais personalidades que, não obstante, um pouco por todo o Ribatejo (como, aliás, por todo país), vão prestando a esta área da cultura tradicional a sua colaboração, naturalmente voluntária, com certeza bem intencionada e, mais ou menos esclarecida.Na verdade, a melhoria global da representatividade no Folclore nacional (bem como a sua notoriedade, visibilidade e correspondente capacidade reivindicativa) é ainda hoje insuficiente e inconsequente.Insuficiente para proceder à urgente clarificação, que permitisse obstar, duma vez por todas, à lesiva promiscuidade entre, por um lado, representações folclóricas (que pretendem reconstituir vivências tradicionais de uma forma coerente e rigorosa) e, por outro, espectáculos populares de dança e canto, assentes noutros pressupostos e perseguindo outros objectivos. Estes últimos, igualmente dignos, tão importantes aliás como os anteriores, mas que, sejamos claros, não constituem (nem pretendem constituir) grupos de Folclore! Na verdade, apresentando-se como igual o que diferente é (e que apenas situações históricas muito peculiares, tornaram possível confundir), permite-se a continuação da imagem pública do Folclore, como coisa rústica, campónia e pitoresca. Dando-se azo a que o mesmo continue a ser menosprezado e ostracizado pelos poderes públicos, com óbvio prejuízo da criação de condições para uma compreensão mais plena das nossas raízes tradicionais.O que, convenhamos, é lamentável!

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