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Famílias destruídas na estrada

Famílias destruídas na estrada

Testemunhos de dor de quem perdeu os que mais amava

“O Pedro morreu”. A notícia dada a seco fez com que o mundo desabasse sobre os pais. Dezenas de famílias da região foram destruídas em acidentes de viação. O MIRANTE deixa-lhe alguns testemunhos da dor de quem perdeu os que mais amava.

Carla Rego tinha acabado o curso e estava a preparar o casamento. No dia 9 de Janeiro de 2002, uma ultrapassagem mal calculada travou os sonhos da jovem assistente social e deixou o noivo com marcas profundas. Começou aqui a destruição de uma família unida e feliz. À hora do acidente, a mãe de Carla estava a experimentar um fato de rainha porque tinha sido nomeada a rainha do Carnaval de Samora 2002. “Para mim ainda é um pesadelo. Ainda não me mentalizei que a minha Carlinha morreu”, explica Ana Maria Rego. Nos arredores de Tomar, Pedro não chegou a conhecer o pai. O menino que tem agora seis anos perdeu o “melhor amigo” quando tinha sete meses e, segundo a mãe, só quando entrou no jardim-de-infância percebeu o significado desta “viagem sem regresso”.“Ele tem saudades apesar de não ter conhecido o pai”, explica a mãe que mantém expostas as fotografias do marido com o filho ao colo. O pai do Pedro morreu num despiste de automóvel em Julho de 1999 a poucos quilómetros de casa. A mãe já se conformou com a perda, mas “há uma saudade intensa” e uma revolta que o tempo não apagará.Em Samora Correia, Manuel Nunes e a esposa Doralice Alemão estavam habituados às noites perdidas pelo filho aos fins-de-semana em convívio com os amigos. Na manhã do primeiro sábado de Fevereiro de 2003, Manuel regressava a casa depois de tratar dos seus pássaros e tinha uma patrulha da GNR à porta. Pensou o pior. Foi informado de que o filho tinha tido um acidente. A confirmação da tragédia chegou uma hora depois com uma frase seca de um agente da GNR em Salvaterra de Magos: “O Pedro morreu”. O mundo desabou sobre uma família que se orgulhava da harmonia em que vivia. Pedro Nunes, 27 anos, morreu numa colisão na EN118, em Vale Queimado, Salvaterra, e o guarda não sabia que estava a falar com os pais.As estradas da região têm destruído centenas de famílias. Quatro delas aceitaram partilhar os seus sentimentos com os leitores de O MIRANTE. “Pode ajudar a alertar os condutores para terem mais cuidado. Não quero que ninguém passe pela minha dor”, refere Doralice Alemão. A mãe que perdeu um filho na força da vida confessa que perdeu a vontade de viver e só a ajuda da família e de um psiquiatra a consegue manter de pé. A família deu a roupa e alguns objectos pessoais do Pedro Nunes, mas no seu quarto permanece a fotografia do guarda-redes que foi campeão distrital em 1997 e a sua camisola preferida. “Era um rapaz educado, trabalhador e muito meu amigo”, comenta a mãe com a voz embargada pela dor.Um luto profundoAna Maria Rego, uma comerciante de Samora Correia, era uma mulher alegre, dinâmica e que adorava participar em actividades culturais e recreativas. A morte da filha levou-lhe a alegria de viver e o sorriso iluminado pelos olhos que estavam sempre cheios de brilho. Hoje, Ana carrega um luto profundo e tapa os olhos com uns óculos bem escuros. “Nunca irei tirar este luto. É desta cor que estou por dentro”, explica. Ana confessa que já pensou no suicídio, mas tem outra filha, tem uma neta e tem um marido que tem sabido suportar a barra e ajudá-la a vencer a mágoa e a revolta. “Porquê a minha filha?”, questiona.Esta é a pergunta que todos os pais enlutados fazem. Ana era católica, mas após a morte da filha desfez-se de todas as imagens de Cristo e de santos. “Não acredito em nada. Não tenho fé”, diz.A comerciante gosta de estar perto da campa da filha e confessa que já saiu de casa à meia-noite e foi ao portão do cemitério porque “a saudade apertou”. Todos os dias, mesmo quando chove, Ana visita a filha e senta-se no banco que tem junto do túmulo. “Isolei-me do mundo. Não quero ver ninguém. Só gosto de estar perto da minha menina”, explica.Ana Maria tem apoio psicológico e até já frequentou uma associação de pais que perderam os filhos. “Não gostei. Há mães e mães, a dor não é igual para todas”, diz.A quadra do Natal é mais dolorosa para as famílias desfeitas pela morte. “Não há vontade de comemorar nada. Há um vazio muito grande”. Apesar do vazio, a morte também contribui para a união da família e dos amigos. “É no momento de dor que sentimos quem são os verdadeiros amigos e a força da família”, explica Manuel Nunes.A viúva de Tomar explica que após a morte do marido esteve dois anos a viver em casa dos pais e os primeiros dois meses foram “muito dolorosos”. “Comia porque me punham o comer na boca e vestia-me porque me ajudavam a vestir. Era um vegetal”, explica. Maria (nome fictício) refere que depois do choque veio a revolta. Alguns meses mais tarde a consciencialização ganhou peso e com o tempo a aceitação da morte aconteceu com naturalidade. “As coisas más não acontecem só aos outros. A morte está reservada para todos. Tenho uma saudade imensa, mas estou conformada”, conclui. Nelson Silva LopesCarlos Gregório não esconde a revolta porque os pais não tiveram culpaUltrapassagem matou casalUma ultrapassagem mal calculada matou os pais de Carlos Gregório. O bancário, residente em Benavente, sente uma enorme revolta porque os pais viajavam tranquilamente na EN 118 e não tiveram culpa nenhuma do acidente. A colisão mortal foi na Ponte da Várzea, em Samora Correia, a 23 de Março de 2003. O irmão de Carlos, que é bombeiro, estava mobilizado para o socorro, mas foi desviado pelos colegas que se aperceberam que desta vez as vítimas eram os pais do bombeiro. António Júlio teve morte imediata e a esposa Iria Ventura faleceu 70 dias depois e após uma mistura de sofrimento e esperança da família. Os pais de Carlos tinham ambos 52 anos e uma vida saudável e sem problemas. Uma dor com dose dupla que abalou os filhos e principalmente um neto de quatro anos que estava a ser criado pelos avós. “Foi ele que sofreu mais com a perda dos meus pais. Eles eram muito importantes para ele”, explica o tio da criança.Carlos Gregório não gosta de partilhar a dor, prefere estar sozinho e recordar os bons momentos vividos com os pais. Com a partida do casal, partiu a alegria da família que nunca mais se juntou nos dias festivos. “Não há alegria para comemorações”, lamenta.
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