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O lado humano das falências

Trabalhadores de fábricas falidas da zona de Vila Franca continuam à espera de justiça

Mais de 600 trabalhadores de empresas que faliram na última década na região de Vila Franca de Xira continuam à espera do pagamento de indemnizações. Alguns já faleceram, outros já perderam a esperança de reaver a recompensa de uma vida de trabalho.

António Beirolas, 74 anos, acaba um cigarro à mesa do Centro de Trabalho do Partido Comunista, no coração da Póvoa de Santa Iria. Ao seu lado amontoam-se dezenas de pendões azuis que dali a algumas horas serão espalhados pela cidade. É o “trabalho pelo partido” que nos últimos tempos tem ocupado o ex-chefe de secção mecânica da Argibay, uma das cinco empresas da região de Vila Franca de Xira que entraram em processo de falência na última década, deixando centenas no desemprego.À semelhança de outros 650 trabalhadores que integravam os quadros das cinco empresas, António Beirolas continua à espera do pagamento dos créditos que lhe são devidos pelo encerramento da firma, que chegou a ser considerada uma das maiores empresas de construção e reparação naval.Depois de reduzir gradualmente o quadro de funcionários de 600 para 159, a Argibay, que laborava há mais de três décadas em Alverca, faliu em 1993, deixando aos trabalhadores uma dívida de mais de um milhão de euros. António Beirolas já perdeu a conta ao dinheiro que lhe cabe. Depois de 33 anos de trabalho saiu com três meses de salário em atraso e indemnização por receber. Nunca compreendeu a estratégia da empresa que tinha trabalhos em carteira para os dois anos seguintes. Os trabalhadores conheciam as falhas de gestão, mas a esperança de que a empresa conseguisse ultrapassar as dificuldades superou os piores receios. “Chegámos a tirar combustíveis de outros barcos para manter as máquinas a funcionar”.Os 63 anos que tinha quando saiu da empresa já pesavam e António Beirolas acabou por reformar-se. Tal como os ex-trabalhadores da Argibay, também as centenas de antigos operários das empresas Mevil, Metaltento (metalúrgica), DCP (componentes eléctricos) e Icesa (construção) esperam receber as indemnizações, mas os processos arrastam-se há anos em tribunal (ver caixa). “Isto implica enormes prejuízos para os trabalhadores e familiares, quer pela desvalorização do dinheiro, quer pelo desgaste psicológico”, sublinha a coordenadora da delegação sindical de Vila Franca de Xira, Rosa da Saúde Coelho. A dívida total das cinco empresas, que entraram em processo de falência entre 1990 e 1995, ultrapassa os oito milhões de euros. Rosa Saúde não compreende porque razão não foram ainda pagas as indemnizações, já que algumas empresas foram vendidas por quantias que chegariam para saldar as dívidas. Uma refeição por diaApesar de ter vários ordenados em falta a Argibay foi garantindo sempre a refeição diária aos funcionários. Muitos trabalhadores almoçavam na empresa, mas já não jantavam em casa.Maria do Amparo Castanheira, 55 anos, despenseira na Argibay, era uma das poucas mulheres da empresa. Tinha a seu cargo a responsabilidade de garantir a única refeição de muitos trabalhadores. O marido era também operário na empresa. O casal, que tinha a seu cargo um filho menor e uma jovem, chegou a trabalhar na empresa durante 100 dias sem receber qualquer vencimento. “O meu filho andava na primária e ficou muito traumatizado. Hoje preocupa-se muito com essas coisas”.O marido acabou por deixar a empresa antes da falência, mas Maria do Amparo ficou. Por causa das refeições. Depois da sua saída os trabalhadores só almoçaram na empresa mais dois dias. Quando as dificuldades se tornaram demasiado explícitas os funcionários começaram a sair em grupos de 10 todos os dias. Em 1993 Maria do Amparo, residente no Sobralinho, deixou para trás 13 anos de trabalho e dois meses de salário em atraso e foi para casa. Com 45 anos, a despenseira era uma das trabalhadoras mais jovens da empresa e por isso a integração foi mais fácil. Continua a trabalhar nos bastidores da cozinha, mas em vez de operários “serve” as crianças da Escola Soeiro Pereira Gomes, em Alhandra. Às vezes, quando se levanta para ir para o trabalho, a gerente de refeitório ainda tem a sensação de que vai trabalhar para o estaleiro.Ana Santiago

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