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O senhor engenhocas

Manuel Luís Gonçalves, 83 anos, mestre de muitas artes

A veia engenhocas de Manuel Luís Gonçalves começou cedo a pulsar. Aos 14 anos inventou uma máquina a vapor que acabou por explodir. Mais tarde foi mestre a consertar relógios e rádios, ganhou fama mas nunca enriqueceu à custa da arte.

Aos 14 anos construiu uma máquina a vapor pelo que ia lendo nos livros. Tornou-se relojoeiro por ver como um colega consertava os relógios à janela, quando vinha do trabalho. Com o andar do tempo foi ganhando fama e pelas mãos de Manuel Luís Gonçalves, residente no Entroncamento, passaram mais de 150 mil relógios.Reinadio e bem disposto, apesar das agruras que a vida já lhe pregou, Manuel Luís Gonçalves diz que tem passado a vida a “pedir aos ricos para dar aos pobres”. É membro da Conferência de São Vicente Paulo, ostiário da igreja de Nossa Senhora de Fátima e católico praticante e convicto.Manuel Luís, como é conhecido, nasceu em Valhascos, concelho do Sardoal. Começou a trabalhar na oficina de ferreiro e serralharia do pai logo que saiu da escola. “Era uma grande oficina, tinha duas forjas e havia aprendizes. Era por isso que chamavam ao meu pai mestre José Luís”, conta recordando que uma vez numa feira em Santarém ganharam o prémio nacional no fabrico de balanças romanas.Interessado em tudo o que via, construiu uma máquina de vapor quando tinha 13 ou 14 anos, mas houve qualquer coisa que não funcionou bem: “Falhou a válvula de segurança, que já não sei se tinha ou não. O certo é que uma noite quando estava à lareira a máquina explodiu e houve uma brasa que me entrou para a bota. Foi um problema, não era capaz de descalçar-me e a brasa ia-me queimando o pé”.Do rol de engenhocas conta-se também a quase invenção de espingardas de pressão de ar, com que assustava as raparigas. “Sempre fui brincalhão”, conta.Com vinte e poucos anos saiu de Valhascos e foi trabalhar para a Fábrica de Material de Guerra, em Braço de Prata. Ficou lá quase dois anos: “Não era vida para mim, era muito perigoso. Uma vez andei para morrer com uma granada. Caiu do canhão que íamos experimentar, foi uma sorte a espoleta não ter tocado no chão”, diz expressando o medo que sentiu já lá vão quase 60 anos.Desistiu e mudou para as oficinas da CP no Entroncamento, onde trabalhou até à idade da reforma. Foi aí que começou a história dos relógios. O ordenado era baixo, 14$40 por dia, demasiado pouco para quem queria casar e constituir família. Pensou em fazer arranjos eléctricos depois de sair das oficinas, mas os relógios vingaram.De electricidade pouco ou nada sabia, mas tinha o engenho suficiente para aprender com rapidez. “Arranjei os primeiro rádios que foram para o Sardoal, um para a câmara municipal, outro para casa de uma lavrador abastado. Por esse trabalho, ganhei um saco de laranjas. Não estou a gabar-me, mas tinha jeito”, confessa com timidez.O parco salário tinha de ser aumentado e esse era um problema que Manuel Luís precisava de resolver. Na vinda da oficina para casa, parava junto a um revisor da CP que consertava relógios. Ia vendo o desventrar dos mecanismo e aprendendo só de olhar. “Meti-me a fazer arranjos também”.No início, houve algumas máquinas que nunca mais voltaram a funcionar. Foi aprendendo, conta que comprou um manual, escrito em espanhol, mas não era grande coisa. Do nada que sabia, passou a especialista. Construiu para a CP um relógio que durante dezenas de anos marcou a entrada e a saída dos operários. Havia pessoas que o vinham buscar para ir a casa consertar os relógios. “Uma vez fui à noite para Oeiras a casa de um doutor da CP. Bem lhe disse que havia gente bem mais entendida do que eu, pessoas que tinham estudado, mas ele quis que fosse eu”, continua.Com tanto engenho, Manuel Luís confessa que podia ter feito fortuna, mas, embora não tenha perdido dinheiro, nunca quis explorar ninguém. “Sou católico, ostiário da igreja e pertenço à conferência de São Vicente Paulo. A minha vida tem sido pedir aos ricos para dar aos pobres”, conclui.Margarida Trincão

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