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A “história da minha vida”, as reguadas na Escola Primária e…

Os canhões bélicos, outrora ruidosos e letais, tornaram-se pacíficos e silenciosos testemunhos da história. Parece um paradoxo, mas há, actualmente, duas “guerras civis” em Portugal: uma mata-lhe o corpo e a outra fere-o no coração do seu próprio idioma.

Na quarta classe, a professora Maria Amália Carrilho Ralo mandou-me fazer uma redacção sobre a história da minha vida. Como, na altura, eu só tinha nove anos, escrevi assim: “Uma história pequenina precisaria de muitas palavras para ficar comprida. Uma história que não existe levaria semanas para ser inventada. Ainda não maneijo bem as palavras para inventar a história da minha vida. Escrever sobre Egas Moniz, Vasco da Gama ou Eusébio estaria bem. Falar da minha história não sei.” (sic).Perdi a oportunidade de escrever a história da minha vida, inventei o verbo “maneijar”, que a professora prontamente registou com umas valentes reguadas, e, para vergonha minha, tive de encher o quadro com a palavra “manejo”.A minha professora da quarta classe — para com quem tenho uma dívida impossível de compensar — manejava bem os castigos no corpo e na alma.Depois das reguadas, vinha o sermão. Eu e os meus colegas não precisávamos de escutar o fim da frase para saber a conclusão do raspanete — “Tudo isto é para que vocês, amanhã, não sejam umas bestas-quadradas!”.O método era duro, retrógrado e, pedagogicamente, inqualificável. Porém, não conheço um só colega da fornada da professora Maria Amália que hoje escreva parvoíces deste género: “A Câmara Municipal A, tem o prazer de convidar…”, “O presidente B interviu na assembleia”, “O boletim C só pesa duzentas gramas…” ou, ainda, “O défice é concerteza maior e a dívida do conselho D também”.Uma vírgula colocada entre o sujeito e o predicado seria o passaporte para castigos prolongados. Falhar na conjugação dos verbos implicava trabalhos de casa com horas extraordinárias. Escrever “duzentas gramas” (de peso), em vez de “duzentos gramas”, “concerteza” em lugar de “com certeza” ou confundir “conselho” com “concelho” dava direito a um alvará honorífico com o título de “besta-quadrada”.Poderei ficar isolado nesta minha opinião. Todavia, entre um “português limpo, enxuto, razoavelmente manejado”, ao som das reguadas escolares, e os frequentes atentados contra o idioma de Fernando Pessoa, de Jorge Amado e de Mia Couto, eu prefiro o método implacável para com os detractores do nosso melhor património — a Língua Portuguesa.Os canhões bélicos, outrora ruidosos e letais, tornaram-se pacíficos e silenciosos testemunhos da história. Parece um paradoxo, mas há, actualmente, duas “guerras civis” em Portugal: uma mata-lhe o corpo e a outra fere-o no coração do seu próprio idioma. Poderemos, assim, dizer que os históricos canhões portugueses foram substituídos pelo asfalto que ceifa a vida e pela “tele-asneira” que fere a “Alma da Língua Pátria”.Às acções de prevenção rodoviária e às sumptuosas multas para os infractores, importaria somar uma campanha nacional em prol da Língua Portuguesa… com recurso à reguada para aqueles que, como eu, não “maneijarem” bem as palavras!Póvoa da Isenta (Moinho de Vento), 1 de Abril, “dia das mentiras”. Neste caso, a “data das aldrabices” abriu uma excepção à regra para imensa tristeza “luso-falante”. Lamentavelmente, a “pequenina história” da minha “não história” é verdadeira e o ataque permanente à nossa Língua também!

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