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O contador de histórias

O contador de histórias

Filipe Lopes, de Tomar, tem uma profissão invulgar

Em pequeno queria ser pastor e, mais tarde, condutor de carros de bombeiros. Hoje Filipe Lopes exerce a profissão de contador de histórias, uma actividade rara, pelo menos em Portugal.

No final de uma sessão de leitura, num lar de idosos do concelho de Sintra, uma senhora veio ter com Filipe Lopes para dois dedos de conversa. Contou-lhe a história da vida dela, dos filhos e dos netos e no final despediu-se com uma frase lapidar – “desejo-lhe que tudo corra bem e que arranje um emprego bom”.A história real exemplifica bem como a maioria das pessoas vê a profissão do jovem de Tomar. Poucas acreditam que as histórias que Filipe Lopes conta de norte a sul do país sejam o seu único ganha-pão de há dois anos a esta parte. Pensam tratar-se apenas de um simples passatempo.“Quando digo que sou um contador de histórias as pessoas reagem com alguma incredulidade e com muito espanto porque não fazem ideia que possa haver contadores de histórias profissionais”, diz o jovem de 30 anos.E contar histórias é uma actividade rentável? Seria, responde Filipe, se a maior parte dos seus clientes (e da empresa da qual é sócio, o Contador de Histórias) pagassem a tempo e horas.“A maioria dos nossos clientes são câmaras municipais, que raramente pagam a horas. Em termos meramente contabilísticos a actividade não nos permitirá nunca enriquecer mas permite que por exemplo eu não tenho outro emprego”, refere o contador de histórias, adiantando que se todos pagassem a horas estaria numa situação “relativamente desafogada”.Para se ser um contador de histórias profissional não basta aparecer num dado local à hora marcada, levando um livro debaixo do braço. Exige muito trabalho de bastidores, visitas a bibliotecas e uma preparação antecipada de cada sessão. Porque os públicos são diferentes.“O trabalho que apresento, e neste momento tenho cerca de 20 espectáculos diferentes, desde contar histórias, a poesia, recitais e formação de pais para a leitura, implicam todas tempo de preparação”, refere o jovem.Muitas vezes, confessa, o tempo passado em viagens e em quartos de hotel serve exactamente para isso. É preciso ler bastante, estar suficientemente informado das coisas e fazer um estudo prévio do meio onde vai ser feita a actividade.Conhecer o local é importante porque contar histórias num anfiteatro não é a mesma coisa que contá-las numa sala de aulas, em termos de som e da projecção da voz, por exemplo.E depois há os ouvintes, a parte mais importante. Não se pode contar uma história da mesma forma para um grupo de crianças da pré-primária ou para uma audiência de idosos.“Antes de iniciar o espectáculo, seja qual for, olho para a plateia que tenho à minha frente e tento estudá-la da melhor maneira possível, o seu estado de espírito, a maior ou menor apetência para receberem o que lhes vou dar”. A seguir vêm os pequenos grandes truques para captar a atenção. “Ás vezes basta apenas elevar ou baixar o tom de voz”.Filipe socorre-se apenas da sua criatividade e “da força que vem de dentro” para fazer a dramatização das histórias, não recorrendo a quaisquer adereços ou cenários. “Tento trabalhar o mais possível a imaginação e a capacidade de pensar da criança”.O sucesso do trabalho de Filipe Lopes passa muito por não fazer da actividade um mero negócio. Ser “genuíno” e tentar tirar o máximo prazer do que faz é o seu lema e tem dado resultado, porque, diz o jovem, o feedback é cada vez maior.Quanto mais complicada for a situação, em termos de ouvintes, mais Filipe gosta. Porque a essência da actividade está exactamente no desafio de pôr a ouvir e a pensar pessoas que à partida não estarão predispostas para tal. São os chamados públicos difíceis.“Fazer um recital de poesia a alunos do secundário, especialmente se forem da área de ciências, que geralmente não gostam de ler, e conseguir que eles fiquem presos ao que estou a fazer dá-me um gozo tremendo”, diz, adiantando que as prisões são outro dos locais onde gosta de trabalhar. “Quem lá está dentro cometeu um erro mas está a regenerar-se e muitas vezes a poesia e a leitura são muito importantes como escape, funcionando como uma janela aberta ao exterior”.Apesar de tratar diferentes públicos com igual criatividade as crianças ocupam um lugar especial no coração do jovem contador de histórias. Particularmente aos, como lhe chama, “meus meninos dos hospitais”.“A resposta deles, a gratidão que manifestam e o facto de perceber que aquele bocadinho, o contar uma simples história, pode ser importante para a sua reabilitação é fenomenal”.Como a da criança de três anos internada na pediatria de cardiologia do Hospital de Santa Cruz , em Alfragide. Filipe contava a história da galinha e do crocodilo, fazendo de galinha e levantando as “asas”, quando a criança tirou a chupeta e perguntou à mãe “o quê?” por não ter percebido alguma coisa.Foi a primeira palavra que o menino, numa depressão profunda depois da sua operação ter corrido menos bem, deu após a cirurgia. “Nunca me esquecerei desse episódio”.Margarida Cabeleira
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