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O império dos medicamentos erguido a pulso

O império dos medicamentos erguido a pulso

Comendador Sebastião Alves, administrador da Atral-Cipan

Aos seis anos guardava gado na aldeia de Amoreira (Proença-a-nova.) Anos depois liderava um dos maiores grupos da indústria farmacêutica. Foi pintor de construção civil, seminarista, estudante de medicina, deputado e empresário de um império construído a pulso. Aos 86 anos Sebastião Alves ainda é o rosto de uma das maiores multinacionais na produção de medicamentos.

Pegou numa farmácia em situação de falência e transformou-a num império da indústria farmacêutica. Como foi possível dar esse passo de gigante?Era uma farmácia na Rua Luís de Camões, em Lisboa. Ainda por cima em estado de falência. Eu estudava e trabalhava na propaganda médica de uns produtos que a farmácia tinha conseguido produzir durante a guerra com todas as dificuldades que se podem imaginar. Era trabalhador-estudante?Sim. Eu sou autodidacta. Vim de Proença-a-Nova para cumprir o serviço militar, em Lisboa, com a instrução primária. Fizera dois anos de seminário sete anos antes, que aliás, não foram reconhecidos oficialmente. Tinha 21 anos. Deram-me um curso de enfermagem. Isto em Agosto de 1941. No ano seguinte fui promovido a sargento miliciano enfermeiro. Inscrevi-me numa escola nocturna e em dois anos fiz os sete anos de liceu. Fui fazer o exame do sexto ano ainda fardado de magala. Não tinha, aliás, outra roupa. Aos 24 anos estava na Universidade. No curso de medicina.Foi convidado a dirigir a farmácia. O que fez para ultrapassar a situação de falência?Percorri o país, analisei o mercado, coloquei gente a trabalhar no Porto, no Algarve, em Coimbra. Ainda em 1948 comecei a escrever para fora do país através das câmaras de comércio. Logo de Maio a Junho fui a Tanger. Era na altura uma cidade livre. Começou ai a internacionalização. Poucos meses depois de ter entrado como gerente. Nesse ano as vendas triplicaram. Sempre se posicionou em nichos de mercado que não interessavam tanto às outras empresas. Porquê?Quando pensei fazer antibióticos em Portugal ninguém acreditava. Só quando a fábrica começou a trabalhar e a exportar para os Estados Unidos é que acreditaram. Escolhi um sector que em Portugal não tinha competição e cuja tecnologia parecia a todos inacessível. Porque partiu tão depressa para a internacionalização?Porque pressenti que a Europa estava de cócoras, a Espanha estava limitadíssima por causa de uma guerra civil tremenda, a França chorava a sua derrota, a Inglaterra estava partida e a Alemanha destruída e a Itália também. Espreitei África e quando vi as respostas que vinham das Câmaras de Comércio descobri um caminho.Diz-se que as farmácias são um negócio da china. É apetecível?Só se se fizer asneiras é que não setem lucro. Por outro lado há realmente um monopólio dos farmacêuticos. Conheço mal o problema. Sei que a Espanha liberalizou o sector e há farmácias a mais e clientes a menos. Nos Estados Unidos está liberalizado, mas a farmácia vive muito mais do bar que está ao lado.O preço que os portugueses pagam pelos medicamentos é demasiado?Portugal tem um dos preços mais baixos da Europa. Mas é evidente que os produtos novos chegam ao mercado a preços cada dia mais altos. Justifica os custos de desenvolvimento, mas também justifica a riqueza das empresas multinacionais que, cada dia, são maiores. Prestam um serviço à humanidade. Mas não têm na cabeça a saúde do mundo. Têm na cabeça os seus interesses. Que façam bem feito. Ao menos, já é um benefício para a humanidade.Em que tipo de produtos está o grupo a trabalhar?Estamos a trabalhar em muitas direcções, mas o segredo é a alma do negócio (risos)…Actualmente quantos trabalhadores tem?Trabalhadores temos demais. Aqui são 850. Tem trabalhadores a mais e não os dispensa?Pois, tenho inibições. O meu calcanhar de Aquiles é, neste ponto, não pensar como empresário. Ninguém tem o emprego em risco. Se fosse uma empresa fora da família provavelmente dispensaria ai umas duzentas pessoas. Nos próximos anos reformam-se bastantes por atingirem a idade aceite oficialmente. De certa forma tem sido também um missionário pela sua postura no mundo dos negócios…Pode interpretá-lo assim… Cada um traça o seu caminho na vida. Respeitando ou não os outros. Preocupei-me também com todos os que vieram comigo. Não há nenhuma fábrica no Ribatejo que tenha um bairro social e vários outros serviços sociais.Quantas casas construiu para os seus funcionários?Tenho cento e cinquenta casas. Quando viemos para aqui, ainda eu estava a construir a fábrica, as rendas dispararam nos arredores. E eu respondi com um bairro. São 150 casas entre as duas e as cinco assoalhadas. Muito grandes. Tivemos creche aqui. Temo-la hoje no bairro, além de um asilo da terceira idade, jardim infantil e capelinha. Na sua carreira de sucesso, há também alguns pontos negativos. Construiu uma fábrica em Proença-a-Nova de madeira aglomerada, mas o negócio não correu muito bem. Porquê?Devido a um concorrente demasiado ambicioso, que tinha muito dinheiro e que fez uma concorrência desenfreada durante dez anos. A fábrica trabalhou de 1983 a 1993. O país, no sector, consome 10 por cento do que produz. Fazendo concorrência na Inglaterra que era para onde iam os barcos com o produto rebentava com o mercado. Era difícil. Recorri a um programa de recuperação de empresas. Mas paguei os salários a todos os trabalhadores. Quem lá ficou de 1993 a 2002 é que deixou problemas. Eu não. Hoje uma fábrica idêntica labora com eficiência no Fundão e é pertença da família. Como é a sua postura na empresa no seu dia a dia?Estas fábricas foram feitas por administração directa. E não é metido num gabinete que se constroem fábricas por administração directa. As tecnologias aqui usadas são demasiado complexas. É tecnologia delicada. Quem no país conseguiu vender uma fábrica à Finlândia, à Espanha ao Brasil? Fomos nós. Três anos e meio de enfermagem na tropa permitiram que visse muita coisa. Visitei os países todos. Para fabricar antibióticos bati à porta de todas as fábricas conhecidas no mundo. E vi algumas e consegui localizar técnicos para virem trabalhar comigo. Também passei de raspão pela Universidade.Teve que ir buscar profissionais lá fora?Hoje, dez por cento do pessoal é estrangeiro. Mas não são os técnicos. Os estrangeiros são ucranianos, romenos, brasileiros e africanos. Temos é avenças com universidades nacionais e estrangeiras. Os técnicos são todos portugueses.O grupo tem ajudado a financiar muitos doutoramentos. Encara isso como um investimento?Temos três em calha, actualmente. Desenvolvem um trabalho e aprofundam-no e nós em regra aproveitamos. O custo na maior parte das vezes é maior que a receita. Mas sempre se retira dai algum resultado.As suas origens humildes determinaram a preocupação social?Na aldeia a vida era apertada. A maioria eram assalariados que iam para o Ribatejo para as mondas e para o Alentejo para as ceifas. A competição ali não era fácil. Apesar de tudo na minha casa havia tranquilidade. Os meus pais apesar de analfabetos fizeram questão que fossemos estudar. A preocupação social veio depois com a vida. E com a responsabilidade que cada um assume perante a vida. Tive algumas polémicas, sempre civilizadas. Tinha uma posição firme sob o ponto de vista ideológico, mas tanto editei direita como esquerda. Sou compreensivo.E qual é?Não é fácil de definir. Não compreendo a Europa de hoje. A população desce todos os anos. A média de filhos por casal é de 1,6. Estamos a importar 18 a 20 milhões de trabalhadores por ano, na Europa. Quando se esgotar a mão de obra de leste vamos importar 30 milhões de trabalhadores por ano. Evidentemente daqui a três gerações quem está mandar? São os filhos dos imigrantes afro-asiáticos e afro-ameríndios.A Europa acaba como a maioria dos impérios, atolada, nas suas disputas, satisfações, vícios, etc.Nos dias que correm não existem muitas condições para ter muitos filhos…Na minha aldeia, quando tinha seis anos, havia uma casa com treze filhos. Outra com oito. Nós éramos seis. Eram famílias paupérrimas. O pai trabalhava e a mãe tomava conta dos filhos, da horta e do porco. Não havia água. Era preciso ir à fonte todos os dias. O que eu vi sempre foi gente muito mais sã que a de agora, apesar de tudo.O ambiente do campo era mais saudável... Recebi a primeira vacina já estava na escola. Foi a primeira e única. Essa gente criada nessas condições e com dificuldades tinha muito mais defesas para a vida e na vida que a gente amodorrada e amesendada e auto-suficiente a gozar de todos os seus apetites instalada nas gaiolas das cidades.Os valores de hoje estão trocados?Não há valores. Há cada um a viver com os seus apetites. A maioria esmagadora é assim que vive e em toda a parte do mundo. Vai assumir a liderança do grupo até não poder mais ou vai passar o testemunho?Retirar-me, só quando já não puder sentar-me. Rejuvenescer o conselho de administração, sim. Quero ir passando as coisas aos filhos. Mas parar é morrer.
O império dos medicamentos erguido a pulso

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