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A cardiologista com coração de escritora que nasceu numa casa onde vivia um fantasma

A cardiologista com coração de escritora que nasceu numa casa onde vivia um fantasma

Maria João Carvalho foi viver para uma aldeia quando viu o projecto de requalificação de Torres Novas

é cardiologista mas o seu coração bate ao ritmo da literatura. Maria João Carvalho escreveu três romances e tem outros tantos “a soro” à espera que os dias voltem a ter 48 horas. Nasceu numa casa cheia de livros e habitada por um fantasma brincalhão. Aprendeu a ler sozinha utilizando um método que o avô paterno criou para ensinar surdos-mudos. Teve uma filha antes de entrar para a faculdade e quatro maridos ao longo da vida. Defende que as asneiras se devem começar a fazer bem cedo. Fugiu de Torres Novas para a aldeia de Parceiros de S. João quando viu o projecto de requalificação da cidade.

Médica ou escritora?Primeiro escritora. O que eu sempre quis ser foi escritora. Escrevi o meu primeiro livro com 11 anos.Ainda existe esse livro?Já apareceu. Quem o tinha guardado era a minha mãe. Ela disse-me que eu não podia escrever romances aos 11 anos. Que tinha que viver. Ganhar experiência. Depois da minha mãe falecer encontrei o livro nas coisas dela.Teve curiosidade em ler o que tinha escrito?Não tenho coragem de o abrir. Não sei, acho que me ia emocionar muito. A ligação com a minha mãe era muito forte. Nós não tínhamos essa noção. A morte da minha mãe desequilibrou a família toda. Conhece aquele prego com que as espanholas seguram o cabelo que parece não ter importância nenhuma? A minha mãe era esse prego. Chamava-se Maria Guilhermina mas ela não gostava. Era Mira. Acho que foi o meu pai que criou o diminutivo. Também tenho na mesma arca algo que o meu pai me deu mas que só posso abrir depois dele desaparecer. São as cartas do namoro deles.Lembra-se do enredo desse livro tão precoce?Lembro-me perfeitamente. Era um romance de caobóis. A sua mãe chegou a ler o primeiro romance que escreveu depois de viver e ganhar experiência? O meu pai é que lho leu. Ela já não estava bem. Foi o romance “Nero o Cão”. Ganhou o prémio revelação da Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos. Em 1995. Ela foi à entrega do prémio no ano seguinte. A minha mãe foi das primeiras mulheres a usar calças, a fumar em público. Acreditava na emancipação da mulher e sempre nos incentivou a estudar, a ir em frente. Era uma pessoa muito moderna, muito elegante. Nunca me lembro de a ver de robe e chinelos. Ela saía do quarto já arranjada, pintada e de saltos altos. É a heroína dos seus livros?Não. Acho que não. Em todos eles há uma mulher forte, efectivamente, mas penso que não é a minha mãe. Na minha família há mulheres muito fortes e determinadas.Entre o tal romance de caobóis e o primeiro romance editado passam muitos anos. E aparece a medicina.Fui para Lisboa, para a Faculdade, com 24 anos. Fiz o curso de uma assentada. Com 30 anos estava formada. Faço o internato geral e sou convidada para Assistente da Faculdade de ciências médicas. E foi assistente de bioquímica. Não gostou da experiência?A investigação era naquela altura, como ainda é hoje em Portugal, uma coisa muito difícil. Não havia dinheiro, não havia nada. Eu fiz um estágio em França. Tínhamos que fazer os doseamentos numa câmara frigorífica, utilizando gelo moído. Quando cheguei raspávamos as paredes de uma arca frigorífica que havia no departamento para ter gelo moído. Uma máquina de moer gelo era uma coisa baratíssima mas nós não tínhamos. Estávamos em 80. Aborreceu-se com a investigação?O meu chefe da altura que era o professor Júdice Alperne, só me deixava fazer a especialidade de patologia clínica, não sei porquê. Com aquela especialidade ficava enfiada outra vez num laboratório sem contacto com os doentes. E eu comecei a sentir a falta do contacto com os doentes. Resolvi vir para a província. Respondi a um anúncio que vinha no jornal e fui para Castelo Branco, onde fiz a especialidade de cardiologia. Tinha feito o mestrado em bioquímica. Com o tempo que tinha em Castelo Banco decidi preparar o doutoramento. Em vez do doutoramento escrevi três romances. Os dias lá tinham 48 horas.Todos distinguidos pela Associação de Escritores Médicos. Nero o Cão é prémio revelação. Edgar o Canário vence o prémio Fialho de Almeida e Uma borboleta Quase Branca recebe uma menção honrosa. Depois disso não concluiu mais nenhum romance?Não. Tenho alguns a meio mas não acabei nenhum. Estão a soro (risos). Ou é crise de inspiração ou preciso de voltar a ter dias com 48 horas como os de Castelo Branco. Tentou outros géneros?Queria escrever um conto para crianças e não consigo. As histórias infantis são de terror. O lobo mau come a avozinha. A branca de Neve é envenenada. Penso que os meus sobrinhos iam gostar de uma história minha. Não sei. Se calhar não. Eles já não acreditam em fadas, bruxas…eu quando era pequena sabia que havia um fantasma em casa do meu avô materno, em Alcobaça. Um fantasma?Sim. Era um fantasma de estimação mas não era da família. Não era conhecido. O meu avô dizia que ele era muito aborrecido. Que lhe estava sempre a puxar o casaco. O meu avô era um brincalhão. Chamava-se Manuel dos Santos Calçada. Tinha uma moldura com uma imagem de Cristo. Do outro lado da mesma moldura tinha uma fotografia do Estaline. Quando havia visitas via quem vinha a entrar e dizia ao criado – era no tempo em que havia criados: “Carlos vira o retrato”. E ele voltava a moldura consoante a pessoa era ou não de confiança.É na infância e juventude que se forma a matriz de um futuro escritor? Sempre lidei com livros e palavras. Um dos melhores brinquedos que tive foi um dicionário Lello ilustrado. A parte de baixo da casa do meu avô, onde eu nasci, estava cheia de estantes com livros. Como é que África aparece em todos os seus livros? Fui a Angola pela primeira vez em 1992. O meu segundo marido era angolano. Mais tarde voltei lá. Essas visitas marcaram-na?A primeira vez desesperei. Não havia água, não havia luz. Nada funcionava. As casas não tinham corrimão nem degraus. Houve um dia em que tive uma crise de histeria como nunca me acontecera na minha vida. Estive lá um mês. Eu na altura era casada com um angolano. Andávamos com guarda-costas e motorista.Era assim tão mau? Tive uma experiência terrível. Nunca vi tantas próteses esquisitas. Próteses de pernas feitas com pedaços de cana; bocados de madeira; tripés de máquinas fotográficas. Eu sei lá. Tudo servia para fazer próteses. Angola era o reino das próteses. E no entanto…Depois de regressar, passado algum tempo, comecei a sentir aquele cheiro intenso a terra, invadiu-me uma inexplicável nostalgia. Voltei lá e hei-de voltar de novo. Nem que seja noutra encarnação.
A cardiologista com coração de escritora que nasceu numa casa onde vivia um fantasma

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