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O Espírito e a Matéria

O santo é do povo e o povo defende-o contra todos aqueles que, na sua óptica, o pretendem roubar, adulterar ou substituir!Mesmo que seja o pároco! Mesmo que fosse o Papa! Quanto mais o Município!

Numa situação que está longe de ser inédita, tem levantado ultimamente alguma polémica o processo de restauração da imagem de Santa Iria na Ribeira de Santarém.Os especialistas municipais em património e restauro (equipa, aliás, de inegável prestígio), advogam a retirada da imagem original e a colocação de uma réplica no pedestal ribeirinho. Defendem ainda, entre outras coisas, a retirada do resplendor que o mesma tem ostentado nos últimos tempos.Tudo em nome da necessidade “de devolver à imagem o seu estado original (...) de acordo com os critérios contemporâneos de conservação e restauro a nível nacional e internacional”.Postas as coisas nestes termos, poder-se-á então perguntar: porque diabo os devotos ribeirenses continuam a gritar “para não lhes tirarem a santa?” E porque continuam a exigir a recolocação do resplendor?Será tudo uma questão de embirração? Histerismo? Mania da contradição?Ou será, eventualmente, uma qualquer outra coisa?Na verdade, existem alguns aspectos relacionados com esta temática que, tanto os mais operativos técnicos de restauro como os mais teóricos historiadores, historiógrafos e afins, têm, normalmente, dificuldade em perceber: os conceitos populares de religiosidade.É que, para um devoto, a “imagem” não é apenas (como se poderia pensar) um referencial de devoção mas, sim, um verdadeiro foco de adoração.Aquele é o seu santo: o santo da comunidade!Não uma versão mais dos “santos antónios”, “senhoras da saúde” ou “santas irias” que proliferam por todo o país. Mas aquele Santo António precisamente, aquela Senhora da Saúde ou aquela Santa Iria em particular.Dito de outra maneira: a “imagem” não é apenas uma representação do santo ou da santa! É, sim, a corporização dos mesmos, possuindo, deste modo, intrínsecas qualidades divinatórias.A “imagem” é o santo (poder-se-á dizer) e, enquanto tal, vista como fonte inesgotável de hierofanias, inclusive taumatúrgicas!Independentemente da sua qualidade artística, relevância patrimonial, degeneração material, alterações estilísticas e quejandos!O santo é do povo e o povo defende-o contra todos aqueles que, na sua óptica, o pretendem roubar, adulterar ou substituir!Mesmo que seja o pároco! Mesmo que fosse o Papa! Quanto mais o Município!E mesmo numa situação de culto residual (como acontece neste caso) um processo destes é sempre susceptível de, como se viu, provocar (até certo ponto) uma indignada reacção popular!De facto, a questão essencial que persiste é que estas “imagens”, sujeitos que são, ainda hoje, de devoções vivas, constituem bem mais que meras peças escultóricas. E, como tal, devem ser encaradas.São, de alguma forma, a “alma mater” da comunidade; símbolo da sua identidade, foco das sua expectativas e ansiedades, resguardo e protecção nas suas dificuldades. Relatam a origem mítica da povoação e explicam as causas e as configurações da própria aldeia; eventualmente da urbe citadina.No caso presente, a razão de ser (e não apenas toponímica) de Santarém. Cidade hoje, contudo, virada para outras “divindades”!Mas, apesar de tudo, subsistindo na Ribeira de Santarém pela proximidade cultual e persistência comunitária.Façamos então um exercício de síntese conclusiva: se a continuidade da imagem original de Santa Iria sobre o tradicional pedestal é, de alguma forma, um crime patrimonial e, a sua substituição, vista pela comunidade como um crime cultual, faça-se o possível por se encontrar uma solução de compromisso. Porque não, por exemplo, manter-se a imagem (tanto quanto possível com a configuração com que ela é comunitariamente aceite) no seu lugar habitual e encontrar-se maneira de a proteger das intempéries?Será que é assim um desiderato tão difícil de alcançar? Ou será que o respeito pelas crenças alheias (independentemente das opiniões que possamos ter sobre elas) o não justifica?Aurélio Lopes

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