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“Acabaram com a sopa dos pobres, mas há muita pobreza encoberta”

“Acabaram com a sopa dos pobres, mas há muita pobreza encoberta”

Armando Aparício, provedor da Santa Casa da Misericórdia de Azambuja

Chegou à Azambuja para dirigir o serviço de finanças e acabou como administrador delegado de uma fábrica de tomate. O provedor da Santa Casa da Misericórdia de Azambuja, Armando Aparício, falhou o seminário mas guia-se por princípios cristãos. Mais que um gestor dividido entre o coração e a razão considera-se homem de bom senso.

Nasceu na Barquinha. Como veio parar à Azambuja?Já cá estou há 44 anos. Sou mais azambujense que de outra terra qualquer. Nasci em Atalaia, Vila Nova da Barquinha. Vivi lá até aos 11 anos. Depois fui para o Seminário de Santarém. Estive três anos em Santarém, três em Almada e três nos Olivais. Até ao terceiro ano fui um cábula refinado. A partir do quarto ano fui o primeiro do curso. Lembro-me quando um professor me pediu que levasse a agenda ao gabinete. Nunca me passaria abrir a agenda e ver a nota do exame que tínhamos acabado de fazer. É um princípio cristão de fé e respeito. Se tinham confiança em mim tinha que demonstrar a mim mesmo que era digno do respeito que os outros tinham e que devia ter por mim. O que recorda desses tempos?Uma das coisas que me ensinaram no Seminário foi o hábito do trabalho. Aquilo que o meu pai me ensinou, sendo homem de poucas letras, foi que através do trabalho honesto poderíamos fazer qualquer coisa. O meu pai, que era um simples ferroviário, dizia-me muitas vezes: “Armando, nunca me envergonhes a cara”. Eu envergonhava-lhe a cara se passasse por um velho e não o cumprimentasse. As pessoas às vezes chamam-me intransigente. Mas às vezes é preciso. Os pais não são muitas vezes intransigentes com os filhos? E são-no pouco hoje em dia?Sou muito negativo em relação à sociedade que criámos. Matámos a família, matámos determinados sentimentos. O sentimento da honradez. Onde é que isso existe? O sentimento da palavra dada. Lembro-me que o meu pai dizia que era uma escritura. Uma conversa ou um aperto de mão… Onde é que isso está hoje? Hoje atropelam-se uns aos outros. É uma selva. Veio para Azambuja como funcionário das finanças.Também tenho orgulho de dizer que durante três anos e meio fui o chefe de finanças mais novo do país. Aos 27 anos. Mas estudei. Na altura os chefes de finanças eram quase todos homens com cabelos brancos. Não é que tivesse cunhas, mas fui a dois concursos que correram bem. Gerir uma empresa como a Sugal é muito diferente de gerir uma instituição como a Santa Casa?Tenho muito orgulho daquilo que fiz na empresa. Mas foram tempos maus. Os juros eram 30 e tantos por cento. Aqui, graças a Deus, desde o primeiro mês temos planos financeiros. E no fim do mês fazemos apuramento dos desvios, das receitas e das despesas. Estou descansado. Passei uma vida inteira a viver com falta de dinheiro, aos saltos. Quando chegava o dia 20 andava sempre aflito a pensar onde iria buscar dinheiro para pagar salários.Mas era uma empresa forte…Quando fui para a indústria havia 35 fábricas de tomate. Hoje há nove. Esta era a realidade. Não havia produtividade, pagava-se mal. Hoje a Sugal estará no grupo das mais fortes do sector e também tenho orgulho nisso. Foi um gestor guiado mais pelo coração ou pela razão?O que é a razão? E o que é o coração? Nós confundimos essas coisas. Para mim a qualidade mais importante de quem gere e governa é o bom senso. Há aquela história da mãe e da criança que viajam na carruagem ao pé de um senhor de idade. A viagem era grande e a criança almoçou. Quando estava a fazer a digestão pararam numa estação e a criança fez chinfrineira que queria um gelado. A mãe ia para lhe dar um gelado e o senhor disse-lhe: ‘é melhor que o seu filho chore hoje porque a senhora não lhe dá o gelado do que chore a senhora amanhã porque deu o gelado ao filho’. Isto é falta de coração, é falta de amor? Não, é bom senso. Geriu da melhor maneira que soube.A Sugal chegou a ter 454 trabalhadores. Não tinha o grau de sofisticação que tem hoje, mas não tenho dúvidas de que com 150 trabalhadores chegava, mas era uma filosofia… Qualquer pessoa ao domingo ia à porta da igreja pedir trabalho ao patrão. Era quase um asilo. Mas é injusto pagar pouco a todos, para que haja lugar para mais, quando é aconselhável que haja menos e se pague mais numa óptica de justiça. Chegou a ser preso…Foi em Julho de 1975. Na minha ausência houve um plenário para me sanear. Não sei porquê, não me sanearam. Mas fui ao plenário seguinte e falei. Durou cinco horas e meia. No fim desse plenário a comissão de trabalhadores demitiu-se. Sou psicólogo e mal - nunca exerci - mas é muito difícil gerir sentimentos de multidões. Duas pessoas convencem-se, quatro talvez, cinquenta pessoas não. Não tenho qualquer orgulho em dizer que fiz dois despedimentos colectivos. Mas tenho um enorme orgulho em dizer que tive a coragem de fazer aquilo que se impunha. Em determinada altura precisou de fazer…Era impossível de outra forma. Mas sentei-me e perdi muitas horas. Pegava numa lista e dizia: nesta casa está o marido está a mulher e estão dois filhos. Nós não vamos mandar os quatro para casa. Então reduzimos dois. Fazia esse cruzamento.Às vezes oiço, ‘ele é um malandro porque despediu pessoal’. Digo-lhe, havia pessoas a quem a empresa despediu filhos, que atravessavam a rua e o passeio para me dar um beijo. Quando fiz o despedimento colectivo eram 165 pessoas e falei com elas uma a uma. Só dois foram incorrectos. Num meio pequeno como este sou malandro. Estive numa empresa 35 anos e só ao fim de 31 é que tive um automóvel distribuído. Logo a seguir todos os directores passaram a ter automóvel. E era administrador delegado. Na empresa mandei comprar aparelhos de ar condicionado para todas as salas e só tive para o meu gabinete no ano seguinte. Já não sei bem se porque fui estúpido ou honesto. Azambuja era uma terra pobre?Azambuja era uma terra pequena. Não havia empregos. Só a Ford e a GM. Havia muita fome, mas hoje continua a existir fome e ninguém reconhece. Onde é que está a sopa dos pobres? Há pobreza encoberta. Damos apoio a 97 famílias carenciadas. Como é que um idoso pode viver com 200 euros? Se ainda por cima é doente e se não tem filhos nem ninguém que o ajude? Há sempre o perigo de cairmos numa análise política, mas é incontornável. Basta pensamos que há polícias que fazem parte de gangs aproveitando os conhecimentos que têm… Porquê? Toda a gente quer ter um bom automóvel. Uma boa vivenda. Ter os filhos nisto e naquilo. Nós não produzimos neste país. E voltamos sempre à Sugal. Nós não podíamos pagar se efectivamente nem sequer produzíamos.As pessoas não produziam?Não havia trabalho para dar. Falei com todos os trabalhadores e disse-lhes: ‘você está na lista porque não tenho trabalho para lhe dar nem dinheiro para lhe pagar’. A quase totalidade das pessoas disse: ‘você tem razão, nem percebo como nos conseguiu pagar até agora’. As pessoas passavam o dia inteiro sem fazer nada. Discute-se muito o ordenado mínimo, mas isto é um ciclo vicioso.
“Acabaram com a sopa dos pobres, mas há muita pobreza encoberta”

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