uma parceria com o Jornal Expresso

Edição Diária >

Edição Semanal >

Assine O Mirante e receba o jornal em casa
31 anos do jornal o Mirante

O menino guardador de gado que foi a tribunal porque o bebedouro transbordou

Sebastião Mateus Arenque, poeta popular de Azambuja, amante das tradições

Em menino guardava gado e escrevia poemas em papel de merceeiro para enganar a solidão na lezíria. Sebastião Mateus Arenque. Electricista de profissão, etnógrafo e poeta de coração. Correu atrás da tradição oral para dar nova alma ao Rancho Folclórico Ceifeiras e Campinos de Azambuja e na sua casa nasceu o primeiro núcleo do museu que evoca as tradições de um povo que viveu da agricultura ali à beira Tejo.

Como foi a sua infância? Foi um menino feliz? A minha infância não foi infeliz, mas também não foi muito boa. Comecei logo de pequeno, com sete ou oito anos, a trabalhar no campo. Até aos 24 anos. A guardar gado e a trabalhar na lavoura. Fazia-se de tudo um pouco. Trabalhei na lezíria de Azambuja e no Norte. Os meus pais eram trabalhadores rurais e comecei a aprender com eles desde pequeno. O meu princípio foi esse…Ainda conseguiu ir à escola.Fui à escola, fiz a segunda classe e fiquei por ali. Até aos 27 anos. Voltei para concluir a quarta classe. Para ir trabalhar para a câmara como electricista. Mas não avancei mais. Tinha o casamento, os filhos e essas coisas que a vida tem.E como eram esses tempos de juventude?Uma vez fui dar água às éguas ao chafariz, onde está hoje o busto do senhor Boavida Canada [em Azambuja]. Abri a torneira e os animais iam bebendo. Às duas por três já estavam satisfeitos. A água começou a crescer e a deitar para fora da pia. Apareceu lá o presidente da câmara e espetou comigo no Tribunal do Cartaxo.E chegou a sentar-se mesmo no bando dos réus?Sim. Era rapaz. Tinha 13 anos. O juiz disse-me: “Oh rapazinho, vai lá para a tua terra e tem cautela com a água que pode fazer falta às pessoas”. (Risos)Teve muito receio por ter que apresentar-se em tribunal?A minha família andou de roda de mim muito tempo só para me dar indicações sobre o que haveria de dizer em tribunal. A bem dizer não foi preciso dizer nada… O senhor doutor juiz lá resolveu aquilo da melhor forma…Era um tempo muito rígido.Era o tempo do Salazar... Naquele tempo havia um bebedouro à entrada e outro à saída da vila. Havia muito gado, sabe. E vinham ficar aos aposentos aqui à Azambuja. Foi nessa altura que começou a escrever poesia.Foi sim. Nos papéis que se levavam no farnel para embrulhar o bacalhau. Aí é que escrevia os versos para mandar para a minha mãe. Lembra-se da primeira coisa que o levou a escrever a poesia?Uma vez estava no campo. Andava com uma manada de ovelhas e uma morreu. Eu não vinha a casa. Ficava ao pé do gado de noite e de dia. Mas por um rapaz mandei um papelinho escrito à minha mãe. E um pedaço de carne da ovelha enrolada num papel: “Minha mãe, coma essa carne e não fique enojada/ É de uma ovelha que morreu esventrada”. Já nessa altura com doze anos escrevia assim estas coisas. Só para a minha mãe… Aquilo não tinha importância nenhuma…E quando estava na lezíria onde dormia?Dormia ao pé do gado. Nos aposentos. Enroscado na palha. Naquele tempo era assim. Na lezíria, perto do Tejo. Trabalhava por conta dos lavradores. A guardar éguas, cavalos, bois, carneiros e ovelhas. Comecei logo de pequeno a aprender. Quando tinha já uma certa idade tinha a música toda de ouvido. E costumava ver os gaibéus?Sim, ranchos que vinham do Norte. Vinham trabalhar para a lezíria. Eram grandes grupos. Os caramelos, os gaibéus e os ratinhos…Aprendeu alguma coisa com eles?Não se falava muito. Era o trabalho. À noite faziam-se as ceias. Cozinhava sopa de massa ou sopa de arroz. Conversávamos um pouquinho uns com os outros e depois era deitar. Costumava pensar que gostava de estar a fazer outra coisa?Lá pensar pensava, mas não havia hipótese… Em vez de ir guardar gado preferia ter ido dar serventia a pedreiros. Trabalhava-se só oito horas. E guardar o gado era de noite e de dia. Toda a semana. Sábados e domingos. Entretanto deixou o campo e foi aprender o ofício de electricista.Foi aos 24 anos. Um senhor que era electricista na Câmara Municipal de Azambuja precisava de um ajudante. Lá comecei a aprender o ofício. E foi assim o resto da minha vida. Mas era uma actividade completamente diferente…Ah pois era. Fui aprendendo. Porque foi aquilo que apareceu e foi a isso que me agarrei. Tive que fazer exame da quarta classe para poder ser empregado da câmara. Ainda fui umas semanas para uma escola nocturna até receber o diploma. E o que fazia um electricista na altura trabalhando para a câmara?Tomava conta da rede eléctrica do concelho. Foi por essa altura que as pessoas começaram a pôr electricidade em casa.

Mais Notícias

    A carregar...