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“Venho de uma época onde se falava e escrevia baixinho”

Palavras de Baptista-Bastos na inauguração da sua exposição no museu do Neorealismo
Meus Amigos: Que fiz de extraordinário para merecer esta exposição que, honrando-me e emocionando-me, me faz reverter um pouco para o passado e para uma cumplicidade histórica e cultural, empenhada em, como disse Arquimedes da Silva Santos, sonhar para os outros? Pode-se procurar uma referência, explícita ou não, no trabalho de cada um de nós. No meu, talvez se exprima uma espécie de equilíbrio entre os universos por outros desbravados antes de mim, e a tentativa de significar, através da escrita, uma ética que rejeitasse as comodidades da indiferença e do silêncio. Devo um agradecimento muito especial àqueles que organizaram esta exposição (Luísa Duarte Santos e David Santos), manifestamente entusiasmados em proceder a uma tarefa de garimpeiros da vida de um homem comum, que outra coisa não tem feito senão obedecer a uma vocação, por vezes apocalíptica, e cumprir um destino, eivado de perigos e de ameaças. Creio, modestamente creio, que a Luísa e o David entenderam que o escritor que sempre fui e o jornalista que nunca deixei de ser percorreu um caminho pedregoso sem trair os testamentos legados. Até por isso lhes estou muito grato. Há compromissos a que o escritor não pode nem deve alhear-se porque, na realidade, o princípio da variedade social e política impede a «neutralidade» daqueles cuja razão e propósito decorrem da sua capacidade de incomodar, procurando uma verdade sempre fugidia.Esta Casa, este Museu, acolhe a memória de muitos dos que, no desajustamento entre a sociedade de então e o mundo ambicionado, estabeleceram, cada um à sua maneira, com os processos e os métodos que lhes eram próprios, uma teoria de conjunto da injustiça social. O Neo-Realismo procede dessa urgência ética que se transformou numa estética. Não vou, agora, reeditar essa polémica, por desnecessário. Mas lembro Maria Velho da Costa que, há anos, disse que todos nós devíamos alguma coisa aos neo-realistas e ao encontro fundamental que eles tinham estabelecido entre a Literatura e a História. Recordo, com emoção e orgulho, aqueles que ajudaram o rapaz que fui a ser o homem que sou. Alves Redol, Carlos de Oliveira, Joaquim Namorado, Manuel da Fonseca, Fernando Namora, José Gomes Ferreira, Mário Dionísio, Arquimedes da Silva Santos, Alexandre Pinheiro Torres, Alexandre O’Neill, João José Cochofel - uma lista imensa de portugueses proeminentes, que se caracterizava por não definir limites ao sonho, mas com imperiosas regras morais e de carácter, sem paliativos substitutivos. E nomeio, aqui, o maior de todos: Aquilino Ribeiro.De vez em quando vou relê-los, porque, se a leitura é uma amizade, representa, também e sobretudo, um diálogo ininterrupto e uma aspiração a outras formas de liberdade. E nas palavras deles, e nas de outros, bem entendido, que reencontro essa comunidade de consciências indomáveis, cuja tarefa, soberana entre as demais, foi a de construir uma literatura à altura dos sonhos dos homem.Palavras - eis. Com palavras procurava-se realizar a fraternidade, impor a igualdade e criar a liberdade. Contra uma História que era e continua a ser uma deusa cega, resistia-se à opressão como hoje alguns de nós, não todos, não todos, enfrentam uma época insana e um sistema que corrói a parte mais fecunda da condição humana, pondo-a seriamente em risco. Palavras, eis o que esta exposição revela. Palavras eis o que resta; eis o que não soçobra: eis o que pode, ainda, modificar o destino de milhões de homens. Palavras.Passei a vida a usar as palavras e, com elas, a lidar com os meus regozijos, as minhas dores e as minhas fúrias. Mas as palavras também me usaram: tomaram conta de mim, sem nunca me revelar os seus segredos, e induziram-me a crer que as coisas mais insignificantes devem tratar-se com a maior seriedade e com a máxima polidez. Quem escolheu, como modo de respirar, o ofício de escrever, está condenado a uma penitência de forçado, sem deixar de ter um numeroso encontro com um universo de sons, cores, imagens, bruxarias, seduções, paixões e cóleras - só possível com este rude, áspero, afectuoso, indomável idioma. Adianto: a palavra portuguesa deu-me sempre razões para viver e para esperar.Afinal, o que nos traz a este encontro de amigos é a palavra de um homem que assumiu um compromisso com o seu tempo. Todos os meus livros, os meus artigos, as minhas crónicas, as minhas reportagens obedecem a uma consciência moral, à altura daquilo que está em jogo, e correspondem a etapas da minha vida, nas quais fui confrontado, directa ou indirectamente, com a emergência de um dizer.Venho de uma época onde se falava e escrevia baixinho. A tirania, porém, nunca conseguiu nenhuma vitória real sobre as palavras. «Não há machado que corte a raiz ao pensamento», escreveu Carlos de Oliveira, meu camarada inesquecível. Na década em que nasci, a percentagem de analfabetos em Portugal ultrapassava os 80 por cento, e o fascismo estruturava a sua ofensiva terrorista. Nem por isso os escritores portugueses deixaram de escrever, e escreveram-se obras magnas, de autores que deram à pátria a fisionomia da esperança.No sombrio panorama actual, onde tudo é ambíguo e, simultaneamente, tudo parece convincente, continuo a acreditar do poder da palavra - e a defender a herança admirável que nos foi transmitida, esse bragal de uma civilização linguística que deu forma e conteúdo à nossa maneira de ser.A minha língua é mestiça. Foi caldeada no almofariz onde o godo se misturou com o galaico, o galaico com o latim, o latim com o fenício, o fenício com o sarraceno, o sarraceno com os falares misteriosos e místicos dos vales secretos e das montanhas isoladas, lá, onde se alevanta o Cantábrico e se erguem, majestosos e graves, os Picos da Europa. A minha língua foi um leito de nações: deitou-se com a preta, com a chinesa, com a núbia, com a japonesa, com a índia, e acendeu o lume do acampamento nas terras do Preste João, nas savanas de África, nas florestas de cardos do Baragã, na terra seca do Nordeste brasileiro e no chão sagrado do Alto Xingu.A minha língua foi até aonde a chamavam a aventura, o desejo, a curiosidade. No porão das caravelas ia pedra de Pêro Pinheiro, para demarcar terreno e fixar, no padrão, o símbolo do achamento e da conquista. Mas também iam a vontade do conhecimento, o império da paixão, a aspereza de uma força medular impelida pela intensidade de um destino a cumprir.Gente estranha, essa, que impôs rudemente o espigão da língua de berço nas sete partidas do mundo, e, na violenta amálgama do rigor e do afecto, fez disso a essência do seu desvelo. Foi essa língua que gritou nas ruas contra o déspota; foi essa língua que, nas masmorras dos vários fascismos, encarnou a liberdade; foi essa língua que esteve nas bocas dos combatentes das Linhas de Torres; que enfrentou o opressor, com a coragem dos bravos, no Campo dos Mártires da Pátria. Ouçam-na: é a arraia-miúda do Fernão Lopes, a protagonizar a História: «Acudam ao Mestre! Acudam ao Mestre!» São os sargentos das barricadas da Rotunda a erguer a República, são os Capitães de Abril no alvoroço da madrugada inicial.Antes de lhes pedir adeus e agradecer-lhes o terem a bondade de me escutar, digo-lhes, meus amigos, que escrever é um lugar de encontro e de procura do outro. Eis o que tenho feito. Eis o que fizemos agora.Até sempre!

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