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O pintor que descobriu a vocação desenhando em folhas de papel pardo

O pintor que descobriu a vocação desenhando em folhas de papel pardo

José Carlos Prudêncio dedica-se à arte por prazer e não pelo dinheiro

A pintura sem pessoas não faz sentido para José Carlos Prudêncio. O artista que se notabilizou na pintura da festa brava e das paisagens alentejanas raramente vai às inaugurações das exposições e não valoriza a crítica de arte porque há críticos que pedem obras aos pintores que depois elogiam. À beira dos 60 anos, quer lançar gritos de alerta a uma sociedade deprimida e vai iniciar-se na escultura porque a vida é uma aprendizagem permanente.

Quando é que despertou o gosto pelas artes?Tinha nove ou dez anos e sentava-me na minha terra (Vila Viçosa) frente à igreja a desenhar o que via naquele papel com que se embrulhava a manteiga na mercearia, papel pardo. Sempre tive a mania de desenhar o que achava interessante.Teve uma infância feliz?Era muito mais pobre que as crianças actuais, mas era uma criança feliz com o que tinha e gostava de viver no Alentejo. Os meus pais viviam dum pequeno comércio e trabalhavam muito para que eu pudesse ter uma vida melhor. Depois fui estudar para Évora e segui a minha vida.É nessa cidade que se descobre o artista?Sempre tive o gosto pela pintura e pela escultura. A primeira coisa que fazia quando chegava a uma terra nova era desenhar a estátua. Havia estátuas em todas as localidades e fascinavam-me aquelas esculturas. Questionava-me como se fazia o rosto ou o corpo duma pessoa com tanta perfeição. Hoje já não se fazem estátuas a ninguém, este país perdeu o sentido de homenagear os benfeitores.Chegou a fazer alguma escultura?Fiz umas coisas em barro e até tenho aqui material porque ainda quero fazer escultura antes de morrer porque tenho mesmo que fazer. Foi na pintura que cresceu como artista e atingiu notabilidade. Onde descobriu essa vocação?Estava numa aula de desenho aos 12 anos. Tinha saído dum meio pequeno para Évora e pensava que os rapazes da cidade eram melhores que eu. Havia um grande receio de falhar, uma insegurança. Era uma criança ingénua. Mas comecei a desenhar e quando acabei o desenho estavam todos os alunos de volta de mim a elogiar o desenho e a professora muito admirada. O que é que desenhou?Era um baixo-relevo dum busto só com a cabeça. Não me lembro quem era o senhor, mas estava muito perfeitinho.Hoje pinta mais paisagens do Alentejo e Ribatejo, mas as pessoas estão sempre presentes?Eu pinto por uma atracção interior e as minhas pinturas têm que ter vida. Muita gente, movimento e luz. Não gosto de pintar um paisagem sem pessoas. A presença humana é muito importante.O local onde nascemos influencia a nossa vida?Não tenho dúvidas. Nascer ou viver numa aldeia é diferente de nascer ou viver numa grande cidade. Costumo dizer à minha mulher que os nossos filhos foram influenciados por terem nascido e crescido numa terra pequena.A sua carreira profissional foi como bancário. Foi uma vocação ou uma oportunidade?Era um jovem com fracos recursos e não me podia dar ao luxo de desperdiçar uma oportunidade de ter um emprego que na altura era seguro e relativamente bem remunerado.Foi um bancário contrariado? Não viveu a profissão com intensidade?Nunca gostei de estar fechado horas seguidas. Nasci e cresci com a natureza e gosto de liberdade.Foi colocado em Vila Franca e veio viver para o Ribatejo que hoje retrata nas suas obras.Antes ainda vivi no Redondo porque a minha mulher era professora e estava lá colocada. Tive oportunidade de ser professor de ginástica, porque tinha jogado basquetebol em Évora e gostava de desporto, pedi a transferência no banco para ir para o Alentejo mas não se concretizou e fiquei em Vila Franca. Mais tarde fiz casa em Samora Correia e por aqui fiquei.A pintura foi também um escape para uma vida sedentária de bancário?Confesso que nunca quis ser pintor a sério, no sentido de ter fama e ganhar muito dinheiro. Pintava e pinto por gosto. Ainda hoje não tenho preocupações de metas nem de correntes. Sou um autodidacta que se procura aperfeiçoar com naturalidade e com grande dedicação ao que faz. Tem outra responsabilidade pelo nome que fez, pelas galerias onde está representado e pelo leque de clientes que tem?Não sinto isso. Não acuso responsabilidade e lido muito mal com a fama. O meu interesse é pintar o melhor possível e procuro estudar a pintura. Tenho centenas de livros e investigo muito porque quero continuar a aprender com os pintores que sabem mais que eu.A sua pintura revela uma evolução significativa nos últimos 20 anos…Tinha que crescer como pintor. Trabalho todos os dias, dediquei-me por inteiro à pintura e quanto mais pinto, naturalmente, melhor pinto. Qualquer pintor cresce. Ser pintor é talento, mas também é muito trabalho.É possível ser-se pintor sem uma vocação nata?Se calhar há muita gente com uma arte para descobrir. Há qualidades que nascem com a gente, mas mesmo essas desenvolvem-se e melhoram-se com a prática. Todos os dias aprendo e descubro pormenores que antes não via com a profundidade necessária.Na pintura, há pormenores que fazem a diferença?O que está por trás do que vemos no primeiro olhar é que dá força à obra. Hoje preocupo-me com pequenos nadas que fazem toda a diferença.Já lhe aconteceu pintar um quadro e não gostar do que viu?Tenho estragado muitos quadros porque depois de os pintar não gosto do que vejo. Um dia um pintor amigo viu-me destruir um quadro e disse:”isso é um crime, não faças isso”. Achei que não estava como queria, tentei remendar, mas não gostei. Só apurando a nossa exigência se pode evoluir.Ainda passa muitas horas a pintar?Já não consigo pintar uma noite inteira. Quando está a correr bem aproveito ao máximo, mas sinto que já não tenho condição física para fazer maratonas. A pintura é muito exigente para a vista para o cérebro e para o corpo. Já vou a caminho dos 60 anos.O local onde pinta é importante?O nosso local de trabalho tem pequenos nadas que nos definem como profissionais e como pessoas. É preciso estarmos familiarizados com a envolvente e sentirmos que o espaço é nosso. Quando estou a pintar, até mesmo a intrusão da minha mulher ou dos filhos perturba-me. Preciso estar só no meu cantinho, ouvir os passarinhos, o ladrar dos cães e ver estas plantas.Tem a companhia do rádio?Há alturas em que o rádio fica desligado.Quando retrata paisagens ou motivos do campo, costuma pintar no local?Já pintei ao vivo em vários locais, mas no campo não porque não tenho as condições de que preciso. Costumo fazer muitas fotografias e depois pinto no atelier.
O pintor que descobriu a vocação desenhando em folhas de papel pardo

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