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Luís Sancha passa os dias em frente a um supermercado de Vila Franca de Xira

Luís Sancha passa os dias em frente a um supermercado de Vila Franca de Xira

O rapaz que escolheu a rua para enganar a solidão

Luís Sancha troca todos os dias a solidão das quatro paredes pela calçada da rua Serpa Pinto em Vila Franca de Xira. Conduz com a força de braços a cadeira de rodas que galga os passeios e enfrenta os obstáculos de uma cidade condenada à imobilidade.

É quase impossível passar no empedrado da Rua Serpa Pinto, no centro de Vila Franca de Xira, sem reparar no rapaz que atravessa a estrada com a cadeira de rodas à custa da força de braços. Para descer a rua enfrenta os carros, os passeios altos e vai acenando às pessoas que já se habituaram a vê-lo frente ao Mini-preço.Chama-se Luís Sancha. Tem 40 anos. Vive num quarto do lar antigo da Misericórdia da cidade. Durante o dia foge da solidão das quatro paredes da casa e refugia-se nos cantos da rua que conhece como a palma das mãos. E vai até às imediações do supermercado. É lá que almoça porque quer e que recebe os cumprimentos calorosos de miúdos e graúdos. Toda a gente conhece o Luís. De vez em quando entregam-lhe moedas que o ajudam a superar as dificuldades de quem vive com uma pensão que não atinge os cem euros mensais. Leva um boné ao colo. Não fica sentado a ver televisão. Prefere a movimentação da cidade. Viaja de comboio e choca-se com a pouca atenção que é dada a quem circula de cadeira de rodas. As rampas contam-se pelos dedos e os passeios demasiado altos só dificultam a vida a quem tem que movimentar-se sobre duas rodas. O pior são os inimigos de quatro rodas: os carros estacionados em cima do passeio. Em dias de jogos da selecção usa um lenço na cabeça com os tons da bandeira portuguesa. Fala com gestos desarticulados, mas quem o conhece não faz grande esforço para o perceber. Sai de casa a partir das nove da manhã para mergulhar na rua. Regressa quando a cidade já dorme, muito perto da meia noite. E já chegou a pernoitar nas ruas da cidade, diz quem o conhece. Perdeu a mãe cedo. Foi o pai, entretanto falecido, que cuidou do filho. Luís é o mais novo de seis irmãos. A deficiência acompanha-o desde a nascença. Desde a altura em que o colocaram de lado. Pensando que estaria morto por falta de sinais vitais. Mas o bebé mexeu. “Ainda aqui estou”, diz com dificuldade Luís que desenha ao mesmo tempo um sorriso largo a provar que as dificuldades de 40 anos de vida não fizeram perder o sentido de humor. Aprendeu a ler num colégio de Lisboa com a ajuda de uma associação, mas às letras liga pouco. Prefere as maratonas sobre rodas à sua maneira. Os braços são musculados. Adivinha-se um grande esforço físico diário. Enquanto percorre a rua pára de vez em quando para respirar profundamente. Depois volta a dobrar-se sobre a cadeira de rodas para ganhar balanço. As pernas, que mexem ligeiramente, servem-lhe para imprimir velocidade. “Já lhe disse que qualquer dia nos compra um táxi”, diz com carinho um taxista amigo que já se habituou a tê-lo de vez em quando no largo da estação. Dois primos emigrados na Suíça encontram-no à entrada do Mini-Preço. “Quando queremos encontrá-lo já sabemos onde. Vimos cá todos os anos”, descrevem. É a décima quinta cadeira de rodas que possui. As máquinas acusam o desgaste do tempo e o corpo de Luís não quer parar. Já andou de avião quando foi visitar um dos irmãos em Londres, na longínqua Inglaterra. Mas não trocava a sua rua por nenhum outro lugar do mundo. Nem a sua cadeira de rodas manual por uma eléctrica. O esforço que despende fá-lo sentir vivo. E não aceita ajudas. O sonho de Luís era ser motorista. Dobrar as curvas do asfalto. Correr o mundo. À falta de melhor corre a rua com a ajuda das mãos.
Luís Sancha passa os dias em frente a um supermercado de Vila Franca de Xira

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