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Plano de erradicação de barracas não chegou a todos

Plano de erradicação de barracas não chegou a todos

As vidas de famílias esquecidas em “casas” inventadas e sem condições

Quase um ano depois da conclusão do Plano Especial de Realojamento muitas famílias continuam a viver em barracas em Vila Franca de Xira. Debaixo das pontes, no meio de pinhais, ao lado das auto-estradas. Sem água nem luz.

Na recta do cabo, debaixo da ponte Marechal Carmona, em Vila Franca de Xira, vive José Júlio. Não se consegue lembrar da idade. Tão pouco do dia da semana que corre. O bilhete de identidade dá uma ajuda: 55 anos. A luz do dia fere-lhe a vista quando entramos dentro da barraca, onde reina a escuridão. O cheiro é intenso com um odor a mata-ratos. Uma bicicleta velha, a foto de um menino chorão, alguns pratos de porcelana encardidos e uma bandeira de Portugal ornamentam aquilo que parece ser a sala da improvisada habitação. Não tem televisão porque não há electricidade. Não tem casa de banho porque também não tem água. “Eu não tenho luxos”, diz-nos. Só há pouco tempo um amigo lhe ofereceu um telemóvel para poder ligar aos bombeiros em caso de emergência. Mesmo assim não sabe onde está, tal é a confusão dentro da barraca.Volvido quase um ano desde a conclusão do Plano Especial de Realojamento (PER) no concelho de Vila Franca de Xira, que segundo a autarquia foi responsável pelo realojamento de quase 600 famílias em dez anos. O MIRANTE entrou nas casas improvisadas de famílias do concelho que continuam a viver em barracas. Para eles a ideia de uma casa nova não passou de uma miragem. A Câmara Municipal de Vila Franca de Xira possui neste momento 1023 fogos ocupados por famílias que viviam em barracas. Um número que admite que é “insuficiente” para atender todas as solicitações (ver caixa).Os que ainda vivem em barracas um pouco por todo o concelho estão carentes de tudo o que a vida sempre lhes negou. Para José Júlio a vida foi madrasta desde cedo. Enquanto aquece um pouco de leite no fogão conta como tudo deu uma reviravolta logo na infância. “A minha vida dava para encher todas as páginas do jornal”, ironiza.”Comecei a trabalhar novo no campo e parti uma clavícula uns anos depois. Vivi muito tempo no bairro do bolhão mas depois mudei-me para aqui quando esta barraca ficou livre”, conta Júlio com a voz rouca. “Há quantos anos vive aqui?”, perguntamos. Júlio olha para o leite e responde: “demasiados”. Continua a aguardar uma casa cedida pela autarquia e lamenta que o PER lhe tenha passado ao lado. Diz que é “rijo” e que, por esse motivo, “não pede esmola”. A dignidade que ainda preserva impede-o de o fazer. O vento que entra pelas brechas da barraca atormenta-lhe ainda mais a saúde. Na rua ouvem-se os sons dos carros de gama alta a passarem na ponte. Esquecido na sua pacatez, Júlio olha para cima, tentando confirmar se a bandeira de Portugal que tem à porta continua erguida. Vive numa barraca, mas acredita no país e nos seus governantes. Um dos seus cães chama-se “boa vida”. A barraca não tem nome.Não muito longe da sua barraca encontramos Alberto Martins. Vive junto ao rio há 14 anos. Era operário, ficou desempregado e acabou numa barraca, a viver do que lhe atiram por caridade. A “casa” é estreita, com garrafas de plástico a servirem de vasos. As paredes são forradas com restos de produtos que outras pessoas deitaram fora. Estão tão tortas que dão a ilusão de que a barraca se vai desmoronar a qualquer momento. Uma puxada eléctrica permite-lhe ter luz, mas não tem água. “Vou a um tanque que está ali em baixo buscar água duas vezes por dia, com dois baldes”, conta-nos. A higiene corporal é pouca. Raramente cozinha. “Eu só estou à espera de morrer”. Não quer suicidar-se, mas diz odiar a vida que tem. Está revoltado com as injustiças. E confessa arrumar carros de vez em quando para ganhar uns trocos. “A câmara municipal abandonou-me, deu casas a algumas pessoas e a mim nada…”.Na barraca até à morteA grande maioria das pessoas que vive em barracas quer abandonar os espaços. Mas também há casos em que sair é a última hipótese admitida. É esse o caso de Emília e Manuel, um casal de idosos que insiste em não abandonar a sua barraca, no Cabo, Vila Franca de Xira. “Esta é a nossa casa, temos aqui todos os nossos pertences, sentimo-nos bem e não queremos sair. Vamos ficar até à morte do último”, garantem.Sem água para banhos ou coragem para uma entrevistaA barraca que fica um pouco depois do Sobralinho, junto à A1, não aparenta ser maior que um modesto contentor de carga. Aqui existem persianas, um lavatório (de onde não sai água) e um sofá roto, no corredor. Madalena não limpa a casa “porque não vale a pena”. Tem medo de fotografias e o marido, toxicodependente, deixou-a há quatro anos. Madalena foi forçada a abandonar o apartamento e, sem meios para arranjar um sítio onde dormir, ocupou uma barraca que estava vazia. O marido acabou por morrer com uma overdose e Madalena foi-se acostumando ao sítio. Ali ficou até hoje.“A padeira quando passa dá-me algum pão. O mesmo acontece com o peixe. Tenho algumas lojas e pessoas que me ajudam”, conta. “Eu quero ser útil, quero trabalhar, mas não consigo. Nem sequer tenho um sítio onde tomar banho para ir limpa a uma entrevista de emprego”, lamenta.Joaquim Gomes vive numa barraca em Vila Franca de Xira há oito anos. Gostava de mudar de vida. “Só quero que apareça um trabalho para que eu possa saltar daqui”, garante. Tem a ajuda da família para poder sobreviver. Mil famílias à espera de casaO município de Vila Franca de Xira foi o segundo da área metropolitana de Lisboa a assinar um protocolo com o Governo para o desenvolvimento do Plano Especial de Realojamento em 1993. Os 12 últimos fogos do plano foram entregues pela autarquia vila-franquense em Dezembro de 2007. A edilidade garantiu a O MIRANTE que tem em sua posse cerca de mil pedidos pendentes de agregados familiares de composições diversas para realojamento.Segundo a câmara não existem de momento novos programas governamentais que permitam a construção de habitações novas. Encontra-se em preparação o Plano Nacional da Habitação e, nesse quadro, pode surgir um novo programa, não se sabendo uma data concreta para a sua implementação. Ainda assim para a autarquia uma certeza existe: os municípios, por si só, não têm condições para promover novas habitações sociais sem que haja “uma forte intervenção financeira estatal”.
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