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“Pertenço ao estuário do Tejo”

“Pertenço ao estuário do Tejo”

A musicóloga Filipa Taipina correu mundo mas é em Vila Franca de Xira que se sente em casa

É musicóloga e especialista em música medieval. Filipa Taipina percorreu mundo atrás de um sonho e sonhando foi fazendo da música a sua forma de vida. Findas todas as viagens volta ao sítio onde prendeu amarras: Vila Franca de Xira.

Foi em Vila Franca de Xira que a musicóloga Filipa Taipina cresceu. Foi aqui que leu pela primeira vez “Gaibéus” de Alves Redol e que assistiu ao seu primeiro concerto. Foi no coreto do jardim Palha Blanco. Tocava a banda de música do Ateneu. Actualmente não sabe como funciona a instituição, mas acredita que o aproveitamento do espaço não é o melhor. “Em Portugal as instituições têm alguns problemas em realizar projectos. Quando estão terminados já estão desactualizados”.O “bichinho pela música” começou em tenra idade. Foi em criança que pediu aos pais para estudar música. No 10º ano frequentou a Escola Vitorino Nemésio, em Lisboa. Desses tempos recorda as viagens de comboio. Lia e jogava à batalha naval com os amigos de viagem. Apanhava sempre o regional que vinha de Tomar. “Eram sempre as mesmas caras e formávamos uma espécie de família”. Nesse ano começou a interessar-se por canto gregoriano através de um conhecido. Foi assistir a uma aula, gostou, fez os testes e entrou às escondidas do pai. Filipa tinha 15 anos. Foram tempos agitados: conciliava a escola com as disciplinas do Instituto Gregoriano de Lisboa. No 11º ano chegou a acumular 23 cadeiras. Concluiu todas. Nesta altura assistia todas as semanas a dezenas de concertos. Era a altura em que os alunos de música tinham direito a bilhetes grátis na Gulbenkian e no São Carlos. “Quando se é novo, aguenta-se tudo. Lembro-me de apanhar o comboio no Rossio à meia-noite e meia e no outro dia estar às sete e meia na estação de Vila Franca para apanhar outro comboio”. Entrou para a Escola Superior de Música de Lisboa aos 19 anos e concluiu a licenciatura em Canto Gregoriano. Começou a dar aulas de história da música no Conservatório Regional de Tomar e em Évora. “Era uma vida um pouco louca.” Fez a pós graduação na Universidade de Triste, em Itália e em 2002 entrou no doutoramento do Pontifício Istituto di Musica Sacra no Vaticano. Aguarda a defesa da tese consagrada aos “Fragmentos de manuscritos de música portuguesa até ao século XIV”. No Ribatejo diz que não há muitos arquivos de relevo. “Houve muitos conventos, mas foram destruídos e os espólios devem estar espalhados por outros arquivos”. Mas Filipa tem curiosidade em explorar a região. Uma filha da terraA musicóloga é uma filha da terra. “Pertenço ao estuário do Tejo, entre a ponte Marechal Carmona e a 25 de Abril, o meu coração nunca poderá estar muito longe daí”. Diz que tem uma paixão incondicional pela cidade que a viu crescer. Desde o mercado municipal às igrejas que se erguem na cidade da lezíria. É o Tejo que a inspira. Sempre que se sente mais triste, basta-lhe olhar para a luz do rio, para que o humor se altere. “Quando chego a Lisboa de avião e vejo o Tejo, tenho uma visão maravilhosa”. Já andou no novo passeio ribeirinho que liga Vila Franca a Alhandra e fê-lo “com um gozo enorme”. Já com a tauromaquia tem uma relação difícil. “A primeira tourada que assisti foi na Palha Blanco, devia ter uns sete anos. Mas mal vi meterem a bandarilha no animal, comecei logo a chorar”. Filipa acha bonita a dança entre o toureiro e o toiro, mas diz que não aceita as farpas. “Os jogos romanos também eram uma tradição. A tradição não pode ser desculpa”. Mas adora uma boa pega ou uma boa largada. “Existe um equilíbrio, não existem artefactos é uma 'conversa' entre homem e touro”, argumenta. Em Itália, deixava todos os colegas boquiabertos quando lhes contava que duas vezes por ano, tinha toiros bravos à entrada da porta. Um dos sítios que mais gosta da cidade é a zona dos moinhos do Monte Gordo. “Hoje já está habitada demais, mas quando era criança era uma zona em estado puro com ninhadas de raposinhos, coelhos bravos e lebres”. Filipa refere que uma grande mais valia de ter crescido em Vila Franca foi precisamente a ligação à natureza. Recorda-se de brincar no Jardim com os meninos da comunidade piscatória dos Avieiros. Diz que devem ter sido eles a despoletarem-lhe um outro sonho: ter uma casa-barco! Se não fosse música, Filipa, seria certamente bióloga.A vontade de cantar na igreja da terraHá quatro anos que Filipa Taipina dirige o grupo Mediae Vox Ensemble, um dos poucos grupos de música medieval em Portugal. “É uma música muito ligada às entranhas humanas e de raiz popular. Muito pura e colorida”. Diz que tem um público fiel e muito diversificado que a acompanha estrada fora. Já percorreu o país de uma ponta à outra, actuou em Espanha, Itália, Suíça e França, mas como “santos da casa não fazem milagres” ainda espera actuar na cidade que a viu crescer. “ É curioso e nada intencional, mas no Ribatejo é onde dou menos concertos. Adorava, um dia poder actuar na igreja de Nossa Senhora da Misericórdia, aqui em Vila Franca”. Memórias dos tempos da revoluçãoFilipa Taipina viveu o 25 de Abril em Vila Franca de Xira. Lembra-se de não ter ido à escola no dia da revolução. “O movimento marcou-me muito, havia uma pessoa da família que tinha estado no Tarrafal e na escola os meninos diziam-me que o meu pai era comunista por usar barba e fascista por ter uma ourivesaria!”.Filipa diz que se na altura tivesse mais dez anos se tinha metido em Sarilhos. “Andava na escola com os sobrinhos do Octávio Pato, que me contavam as histórias do tio e aquilo mexia muito comigo”. O episódio que mais gosta de recordar é o do dia 25 de Novembro de 1975. O pai, Manuel Taipina, tinha acabado de adquirir uns moinhos no Monte Gordo e nesse dia levou as filhas de carro para um passeio naquela zona. Quando lá chegaram estava um arsenal bélico montado no miradouro. O pai parou o carro, saiu e perguntou o que se estava ali a passar, ao que um militar lhe responde “ tenho ordens para mandar a ponte e auto-estrada a baixo se for preciso”. Filipa ouviu e a irmã, mais nova, perguntou-lhe, “o que se está a passar”. Filipa berrou: “É a guerra! É a guerra!” “Os conservatórios regionais têm muitas vantagens”Filipa Taipina tem um carinho especial pelo Conservatório Regional de Música Silva Marques de Alhandra, onde foi directora pedagógica de 1999 até 2002. Os conservatórios regionais têm muitas vantagens, afirma. “Estão mais perto dos alunos que não vivem na capital, os cursos tem paralelismo pedagógico com os do Conservatório Nacional e até ao ano passado eram financiados pelo Estado”. Condena a atitude da ministra da educação por deixar de financiar as artes: “a actual ministra é está a matar o ensino artístico em Portugal”.
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