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O filho de seareiros que se agarrou aos livros para fugir à agricultura

O filho de seareiros que se agarrou aos livros para fugir à agricultura

Sociólogo José Garrucho Martins diz que radicalismo político em Alpiarça “não vai trazer nada de bom”

Garrucho Martins, natural de Alpiarça, fala da sua infância numa terra onde a política se radicalizou, onde chegou a estar isolado socialmente por não gostarem que debatesse ideais e ideias políticas. Afastou-se do PCP, do qual nunca foi militante, integrou o PRD como coordenador distrital da juventude e diz que ainda se interessa pela política. Quanto ao seu exercício, só se fosse numa lista de independentes com bons técnicos. Nesta entrevista caracteriza a tensão política que se vive na sua terra e fala das bruxas e bruxarias que estudou e cujos resultados publicou em livro.

Que recordações tem de Alpiarça na sua infância?Na altura Alpiarça, tal como Almeirim, eram sociedades rurais, em que havia uma ligação à agricultura. Havia um grupo dos que não tinham terra, os seareiros, sobretudo ligados à produção do melão. Provenho desse grupo. Os seareiros eram pessoas com uma situação social mais favorecida que os trabalhadores rurais. Eram considerados os pequenos burgueses. Na altura era uma terra com uma população aguerrida?Alpiarça era uma zona de grandes tensões, de grandes conflitos sociais sobretudo ligados aos trabalhadores rurais nos confrontos deles com os grandes proprietários. Era uma zona de movimentações sociais muito fortes, de adesões muito fortes ao partido que na altura estava organizado na clandestinidade, o PCP.Era uma agricultura familiar.Os arrendamentos de terras estavam muito dependentes do tipo de vida familiar dos seareiros. Ou seja, do número de filhos e de quando estes podiam começar a trabalhar. Na altura os filhos começavam a trabalhar muito cedo com os pais e não havia a ideia nas pessoas de que houvesse uma exploração da mão-de-obra infantil. Começou a trabalhar cedo nos campos?Sim e isso manteve-se até aos primeiros anos da faculdade. Estudava, mas as férias eram passadas a trabalhar na agricultura. Havia a tradição dos filhos seguirem também a vida de seareiros. Como é que conseguiu convencer os seus pais a estudar?Sou o que se chama o trânsfuga social. Foram poucos da minha geração que conseguiram furar essa tradição. Sou o filho mais velho, do qual se esperava que continuasse a tradição familiar, mas recusei a herança. Foi à custa de quezílias e de um conjunto de circunstâncias que contribuíram para a ruptura e não ficar agarrado aos projectos dos pais. Que tipo de circunstâncias?A existência de uma biblioteca itinerante na zona, da Fundação Calouste Gulbenkian, que me deu a possibilidade de contactar com os livros e com as pessoas que trabalhavam na biblioteca e que tinham grandes vivências culturais. Os livros foram uma espécie de terapia e de ficcionar outra vida. Os seus pais não devem ter gostado muito, porque além de não poderem contar com o seu trabalho ainda tinham despesas com os estudos. O meu pai não era muito a favor mas a minha mãe era mesmo contra, porque alguns trabalhos agrícolas que me estavam destinados recaíam nela. Aos poucos lá foi levando a sua avante…Não foi fácil. É preciso não mitificar os grupos sociais populares, como os trabalhadores rurais, como a pequena burguesia rural, porque estes eram uma estrutura extremamente autoritária em que os filhos não tinham autonomia para fazer o que queriam. Mesmo na idade adulta, desde que estivessem em casa dos pais, estavam debaixo dessa autoridade. Lá consegui ir estudar para a escola industrial de Santarém, fazer o curso geral de administração. Ir estudar para Lisboa deve ter sido uma aventura… Antes de ir tirar o curso andei uns anos a trabalhar como empregado de escritório numa cooperativa em Alpiarça, sempre com a intenção de não ficar dependente da arbitrariedade dos pais. Fiz entretanto o 12º ano que me dava acesso ao ensino superior. Consegui ser um dos melhores alunos a nível nacional e tive direito a uma bolsa de estudo. Mas precisava sempre de mais algum dinheiro. O que os meus pais me davam era propositadamente pouco para me obrigar a vir de vez em quando a casa para me sujeitar à autoridade familiar e ajudar nos trabalhos agrícolas. O que é que aprendeu com o trabalho nos campos?Fiquei a perceber que as virtudes dos trabalhos agrícolas e das pessoas ligadas à actividade não são aquelas que se dizem. A relação com os filhos e com as mulheres são complexas e tensas. Hoje que se fala tanto da violência doméstica, em segmentos destes grupos sociais isso fazia parte da cultura. Os homens no trabalho eram desqualificados, desprestigiados pela entidade empregadora. Eram obrigados a colocar-se numa posição de submissão. Em casa era o inverso. Havia um mecanismo de compensação, em que o homem ia para casa mostrar a sua autoridade. No 25 de Abril era um jovem numa terra onde o PCP tinha um grande poder. Havia barreiras nas estradas, atitudes de vingança. De que forma é que isso o marcou?Não era militante partidário. Lembro-me que uma das primeiras sedes do Partido Comunista a serem abertas foi a de Alpiarça. Alguns da minha geração aderiram logo ao PCP, mas eu acabei por me afastar do partido. Não concordava com os ideais comunistas?Já tinha lido muita coisa e sentia-me à vontade para participar em discussões teóricas por exemplo sobre o marxismo. Mas o PCP não era muito aberto a este tipo de debates, porque a maioria dos seus militantes eram pessoas com recursos culturais muito reduzidos e que consideravam esta vontade de discutir as políticas como preocupações reformistas da pequena burguesia. E foi isso que me afastou.Teve problemas por causa disso?O PCP de Alpiarça explorou na altura algum mal-estar e algum ressentimento em relação a coisas que tinham acontecido antes do 25 de Abril. Como o partido se radicalizou e não via bem as questões colocadas pelos intelectuais, os jovens da minha idade começaram a afastar-se de mim, a isolar-me, a deixarem de me falar. Alguns aconselhados pelos pais e pelas estruturas do partido. Mas não tenho ressentimentos nenhuns nem antipatia em relação a esses tempos porque compreendo que o que se passou tem a racionalidade do contexto da altura. Foi um período negativo.Foi uma forma de me dar mais lucidez e de tentar perceber o que estava a acontecer. Na altura dá-se uma grande greve nos liceus nacionais que foram ocupados pelos estudantes durante 15 dias. Pertenço ao comité da greve que não era apoiada pelos comunistas. Dormíamos dentro da escola e não deixávamos ninguém entrar. Isso não me criou grandes amizades com as estruturas da juventude do PCP de Alpiarça. Por três vezes tive a integridade física ameaçada. Só não fui agredido pela “tropa de choque” do PCP porque consegui fugir. Essa má relação ainda continua?Hoje tenho uma relação cordial com o partido e com as pessoas que fazem parte dele. Às vezes até me convidam para algumas iniciativas, o que não acontece muito com o PS. Como é que entra para o PRD e logo para coordenador distrital da juventude?Estava a terminar o curso no ano lectivo de 1984/85. O partido pretendia quadros com nível superior. Fui convidado por amigos da Fundação Calouste Gulbenkian e pelo engenheiro Hermínio Martinho. Era dos poucos na coordenadora nacional da juventude com licenciatura.Depois de uma má experiência com o PCP, mesmo assim ainda arriscou meter-se na política.O PRD era um partido que estava a emergir e havia grande liberdade para discutirmos os temas do momento. Pensávamos pela nossa cabeça. Nunca senti que alguém me tentasse impor alguma coisa. Agora está afastado da política partidária. Não gostaria de voltar ao activo?Admito que possa ter tentações. Mas mais ao nível de listas de independentes. Ao nível autárquico, na região, não tem havido essa corrente de formação de listas de independentes, porquê?Os partidos foram ganhando um peso enorme após o 25 de Abril e foram capturando tudo o que eram movimentos sociais, tudo o que eram elementos da democracia participativa, desde movimentos de mulheres, ecologistas, etc... A nossa democracia assenta sobretudo nos partidos ao contrário do que acontece na maioria dos países europeus. Há um excesso de protagonismo dos partidos políticos.Filosofia ficou pelo caminhoJosé Garrucho Martins nasceu em Alpiarça em 1958. Começou por trabalhar com os pais nas searas de melão e andou a estudar a muito custo. Tira o curso de sociologia em Lisboa no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE). Na altura mais por influência dos amigos já que não tinha muito a ideia do que era ser sociólogo e estava inclinado para a filosofia, que lhe disseram não ter futuro em termos de trabalho. O sociólogo, que actualmente vive em Almeirim, casado e com duas filhas, é autor do livro “As bruxas e o transe”, com base num estudo sobre as práticas sobrenaturais. Neste momento está a preparar um outro livro que reúne várias intervenções que tem feito ao longo dos anos em seminários e artigos publicados em revistas. Está também a estudar as questões relacionadas com a doença bipolar: conhecer as experiências dos doentes, o seu dia-a-dia, as suas crises, as relações com as pessoas e as instituições… e que fazem parte do seu trabalho de doutoramento que gostava de ver publicado em livro. Garrucho Martins passa a semana em Almada onde é professor no Instituto Piaget há 19 anos. O fim-de-semana é dedicado à família e aos livros. Sai sempre de casa com pelo menos um livro na mão e aproveita para ler enquanto aguarda por uma bica no café, enquanto espera pela hora de um compromisso. Diz-se um homem de esquerda, afastado do partidarismo mas muito interessado nas questões políticas. Alpiarça ganhava muito se tivesse uma candidatura independente forteComo é que classifica a situação política actual em Alpiarça?Esta é uma terra pequena e consegue-se inventariar facilmente os problemas. Não percebo por que é que isso não se faz. Alpiarça radicalizou-se completamente. O que tinha acontecido logo a seguir à revolução de Abril, com o PCP a explorar os ressentimentos, está agora a acontecer também com a mudança de poder no concelho para o PS. Os socialistas e os seus aliados exploraram os ressentimentos em relação ao PCP.De quem é a culpa?Logo a seguir às eleições em que o PS ganha a Câmara de Alpiarça ao PCP, fizeram-se discursos a dizer que agora a terra tinha liberdade. É um erro esta ideia da vingança. Um bom dirigente partidário deve dizer que precisa de todos para trabalhar em prol da terra. Onde é que vai parar esta radicalização?Isto não vai dar nada de bom. Aos poucos entra-se numa escalada de violência cada vez mais violenta, num tom cada vez menos conciliador. Alpiarça ganhava muito se tivesse uma candidatura independente forte.Como classifica a actuação do presidente Joaquim Rosa do Céu?Tenho boas relações com ele. Mas o estilo dele não é aquele que acho que seja o melhor, com aquela crispação permanente. Não é só em Alpiarça, mas o poder autárquico aproveitou o anti-caciquismo que vem do século XIX e por motivos variados criou-se um novo caciquismo onde não havia. Alpiarça é uma terra onde as colectividades e grande parte da população dependem da câmara municipal?O associativismo por exemplo é muito fraco, tal como em outras localidades, devido à sua partidarização. Muitas vezes estas associações são antecâmaras para lutas políticas e outros objectivos político-partidários. Não vamos pensar que é nas associações que estão os indivíduos que querem fazer coisas e são autónomos.Esperava outro desenvolvimento da sua terra?Acredito que as pessoas estão nos cargos para fazerem o melhor que sabem. Mas podia-se fazer mais e melhor. A câmara tem um grande endividamento. Como cientista social sinto que há formas de intervenção baratas e não é preciso muito dinheiro para começarmos a trabalhar. Mas não se pode trabalhar em ruptura e em confronto com alguém. Têm-me contado histórias de grande agressividade e tensão entre as pessoas que não imaginava.O consumo desenfreado da bruxaria pode fazer muito malOs jornais estão cheios de anúncios a videntes, cartomantes, curandeiros. Isto é sintoma de quê?Há indicadores de que as pessoas não se sentem bem com elas próprias e também na relação com os outros. Isso leva muito as pessoas a procurarem estas práticas, porque muitas delas dão-nos um princípio de esperança e a ideia que apesar de tudo podemos controlar a nossa vida e que podemos controlar o nosso futuro. Há um grande negócio à volta das questões do sobrenatural?Este mercado desenvolve-se porque há consumidores, porque há muita procura. Havia a ideia que estas práticas eram consumidas pelas pessoas de mais baixos recursos culturais, o que não é verdade. As classes médias são o grupo de referência neste negócio.Não era melhor irem ao psicólogo?Alguns também vão. Mas a visão do mundo que o psicólogo dá às pessoas não é tão completa. A explicação que este profissional dá às pessoas é sempre redutora. Há também alguns grupos sociais que não fazem a distinção entre a prática do psicólogo e a prática do que chamamos bruxaria. O psicólogo para eles às vezes é uma espécie de bruxo urbano. O bruxo diz aquilo que as pessoas querem ouvir…Se um indivíduo acredita, se faz parte da sua visão do mundo que os mortos intervêm no dia-a-dia, ir à bruxa faz mais sentido que ir ao psicólogo, até porque este desqualifica esta cultura. Uma bruxa é uma terapeuta porque reorganiza, dá sentido àquilo em que a pessoa acredita. Ao contrário dos partidos políticos.O sentido que os políticos dão à realidade é a definição partidária. Que não é a realidade das pessoas. A maior parte da abstenção tem a ver com o facto de se sentir que os políticos não falam a mesma linguagem das pessoas. Os rituais de bruxaria são muito característicos da zona a sul do Tejo, sobretudo de Alpiarça, Almeirim, Salvaterra de Magos…Isso está a modificar-se, mas há uma explicação para isto. Estas eram zonas em que a actividade social das pessoas estava muito dependente de factores relacionados com a natureza, como a agricultura, que cria grandes imprevisibilidades. Isso leva a que apareça um conjunto de práticas de controlo da situação, um conjunto de crenças, que são coisas a que as pessoas se podem agarrar. Há práticas que podem prejudicar as pessoas?Os sistemas de crenças trabalham ao nível da nossa subjectividade e isso pode fazer muito mal. Pode matar. A carreira de consumidor provoca um fenómeno de cavalgamento que vai introduzindo necessidade de mais consumo. Criam-se quadros para se ler a realidade. Quando esses quadros dizem às pessoas que as coisas vão correr mal elas podem sentir mesmo as coisas a correrem mal. Até ao nível da saúde.Mas o que é que pode matar?Por exemplo em algumas crenças acredita-se que o ter relações sexuais com mulheres menstruadas provoca a impotência. Um homem que leve esta ideia à risca e que vai contra esta proibição começa a sentir que já não é homem, começa a definhar, começa a ficar deprimido, a ficar triste e a pensar no suicídio.
O filho de seareiros que se agarrou aos livros para fugir à agricultura

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