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Escultor de cabelos há quase meio século

Escultor de cabelos há quase meio século

Aos 12 anos, recebeu o desafio de um vizinho que pagava dez tostões para lhe desfazer a barba

Serralheiro de dia, cabeleireiro ao final da tarde e à noite durante anos, José Cardoso só fez do corte de cabelos actividade exclusiva em 1991. O regresso do ex-Congo Belga em tempo de guerra fez-se para abrir negócio próprio, depois de quase cinco décadas a aparar barbas e cabelos a jovens e adultos.

“Cortar cabelos a homens é mais difícil que a senhoras”, diz sem hesitar José da Silva Cardoso. O cabeleireiro de homens, de 60 anos, garante que “num corte feminino, as falhas de quem compõe o cabelo passam despercebidas, enquanto no caso do homem, se os cabelos não estiverem certos pela mesma medida e em todo lado, pergunta-se logo onde foi cortar o cabelo tão mal”. José Cardoso trabalha em Vialonga, concelho de Vila Franca de Xira, desde 1996. O “escultor de cabelos”, como gosta de chamar aos cabeleireiros, começou a sua aventura profissional em Penajóia, concelho de Lamego, onde nasceu. Um vizinho, já idoso, pediu-lhe para desfazer a sua barba todas as semanas. Aos 12 anos, os dez tostões que recebia ao domingo por cortar a barba ao idoso, e mais tarde o cabelo, espalharam pela vila o rumor de que “o rapaz tinha jeito e devia ser ensinado a barbeiro”. Daí até passar a ir todos os dias para a cidade, aprender na barbearia central, com viagem de autocarro paga pelo pai e regresso em bicicleta, foi um ápice. Barbeiro de profissão aos 17 anos, resolve abrir um estabelecimento na freguesia Natal. O pai, Adriano, ajudou-o na tarefa de adquirir e transportar o recheio de uma antiga barbearia, cujo dono falecera, para uma nova casa no centro da freguesia e com uma taberna por vizinhança. Os clientes foram chegando. E das oito da manhã até de madrugada os cabelos e barbas não resistiam à tesoura e navalha de Cardoso, com jogo de cartas e conversas de clientes a sucederem-se no estabelecimento. Aos domingos, a tradição da barba feita de fresco levava os homens pontualmente ao estabelecimento de Cardoso, facto que irritava o padre da freguesia. “Não tenhas a casa aberta à hora da missa, se não chamo a GNR”, ameaçou por diversas vezes o pároco. E o jovem cabeleireiro decidiu fechar a porta enquanto as orações soavam na igreja, mas não parando de trabalhar. O serviço militar obrigou-o a sair da freguesia e levou-o a terras de Moçambique. Na tropa, os camaradas e superiores eram os novos “clientes”, num ambiente em que a boa apresentação mal consolava a sorte de ir para a guerra. De regresso a Portugal, José Cardoso atravessou a “crise dos barbeiros”, em plenos anos 70. “Ninguém cortava o cabelo e o trabalho dava pouco”, recorda. A decisão foi rumar a Lisboa, onde trabalhou durante o dia como serralheiro na UTIC, empresa de fabrico e manutenção de carros, e ao final da tarde e noite como barbeiro em Moscavide e mais tarde na Póvoa de Santa Iria. A namorada, que ficara na terra, acompanhou a “aventura lisboeta” seis meses depois, já como esposa e sempre acompanhou o cabeleireiro. África impôs-se de novo no caminho de Cardoso em 1982. A empresa queria gente para trabalhar na nova delegação da IPE, empresa de manutenção, no antigo Zaire. A aventura durou nove anos, a trabalhar nos autocarros e em cabelos portugueses, mas a instabilidade política e a antevisão de uma guerra civil naquele país precipitaram o regresso a Portugal. Depois de quatro anos a trabalhar numa barbearia como empregado, resolveu abrir negócio próprio e adquiriu, por trespasse, o salão que hoje dirige em Vialonga. “O trabalho é muito e acabei por implantar um sistema por marcações por telefone e acabei por ter de contratar um ajudante. Sozinho, já não tomo contra disto”, conta o cabeleireiro de homens. Das oito da manhã às nove da noite, Cardoso trabalha cabelos de homens, mas também de miúdos. “O mais novo tinha um mês, quando o pai o trouxe, com cabelo pelo ombros”, recorda. Com cuidado, “porque não sabemos quando é que ele vira cabeça para um lado ou outro”, o profissional cortou cada um dos cabelos da criança, ganhando um novo cliente que hoje é um jovem com opinião própria. “Gosto de um cabelo rebelde, que dê luta”, confessa. E nem um pedido de um corte com crista e cabelo muito rapado dos lados o assustou. O pedido veio de um motociclista, que compete em cross, e desde há 4 anos pede sempre um penteado diferente. “É bom trabalhar como escultor de cabelos”, remata.
Escultor de cabelos há quase meio século

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