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As pessoas com valor que se afastaram da política têm a obrigação de regressar seja qual for o seu partido

Carlos Matias, o rosto da UDP e do BE no Entroncamento, chegou a um lugar no executivo municipal ao fim de trinta e quatro anos

Carlos Matias é, desde o 25 de Abril, o rosto da UDP (União Democrática Popular) no Entroncamento. Integra o executivo municipal daquele concelho, como vereador do BE, desde Outubro do ano passado, após a renúncia ao cargo de Henrique Leal. Ao longo dos últimos 34 anos anos mostrou sempre uma invulgar coerência de posições e um interesse inquebrantável pela actividade política. Apesar de militar num pequeno partido e ver sistematicamente as suas propostas recusadas pelas maiorias que se vão alternando no poder, nunca baixou os braços.

Há liberdade em Portugal?A liberdade é sempre relativa. É evidente que há muito mais liberdade do que já houve. Antes do 25 de Abril, por exemplo. Isso é incomparável. Rejeito qualquer comparação entre o clima que hoje se vive e o clima que se vivia antes do 25 de Abril. Há pessoas que, às vezes, no calor da discussão, são tentadas a fazer esse tipo de comparações simplistas e erradas. Mas também já se viveu com mais liberdade em Portugal. Há razões para as pessoas caírem na tentação de comparações com o que se passava antes do 25 de Abril?Hoje começa a haver um clima de medo. Há pessoas que receiam dar a cara para um jornal e que são filmadas de costas na televisão, para não serem reconhecidas, quando denunciam casos de corrupção. Os trabalhadores nos locais de trabalho renunciam aos seus direitos porque têm medo de perder o emprego. Este clima de intimidação cerceia a liberdade. A liberdade não se resume à existência de meros mecanismos formais consagrados na lei. A liberdade tem que ser real. Tem que ser efectiva. No pós-25 de Abril o discurso de esquerda incorporava conceitos como Luta de Classes, Ditadura do Proletariado. Como os vê a esta distância?Alguns fazem sentido e outros não. O mundo é diferente. Estamos a falar a 34 anos de distância. Basta recordarmo-nos que em 1974 existiam duas grandes super-potências - União Soviética e Estados Unidos - existia o chamado campo socialista. Existia uma Albânia. A China. É evidente que hoje, depois da ruína de todo o mundo dito do socialismo real, percebem-se melhor as consequências da operatividade de um conjunto de conceitos. Qual é a questão essencial dos dias de hoje?A questão essencial dos dias de hoje é a da defesa radical da democracia. O Bloco de Esquerda resulta de todas as mudanças que refere. Era impossível reunir, há trinta anos, as pessoas que estão hoje no BE.Era completamente impossível. O BE também é um instrumento para a acção, neste tempo. Resultou, na sua génese, da partilha de uma visão por um conjunto de pessoas com percursos diferentes e que nas circunstâncias concretas de hoje, percebe que tem que encontrar outro instrumento para a intervenção social e política. Quando se fala do 25 de Abril de 1974 há quem diga que os militares deviam ter ido mais longe. E que, se calhar, o Otelo Saraiva de Carvalho devia ter cumprido a promessa de meter todos os reaccionários no Campo Pequeno, como chegou a sugerir após uma visita a Cuba.Isso é história. É matéria para os historiadores. A História foi o que foi. Pessoalmente não tenho qualquer nostalgia. Como dizem os poetas só tenho nostalgia do futuro e do que há-de vir. O passado foi passado. O mais difícil da acção política é saber o que passa e o que fica. Perceber o que vale a pena trazer do passado. E essa é uma discussão que não vale a pena trazer para o presente. É um caso arrumado.“Foi uma injustiça exercida sobre terceiros que me fez interessar pela política”Quando nasceu o seu gosto pela política? Foi em Lisboa. A Associação de Estudantes da Escola que eu frequentava foi proibida. Isto passa-se em 1972. Eu nem sequer estava inscrito na Associação mas no dia a seguir a ela ter sido proibida fui-me inscrever. Aquilo revoltou-me. A partir daí comecei a tentar perceber como funcionavam os mecanismos da sociedade. E comecei progressivamente a interessar-me pela política.Esteve ligado a organizações políticas antes do 25 de Abril de 1974? Comecei a participar na CDE (Comissão Democrática Eleitoral fundada por elementos da oposição ao Regime para disputar as eleições legislativas em 1969) ainda em 1972 e fui ao congresso da oposição de Aveiro em 1973. Ainda antes do 25 de Abril, aqui na zona, constituímos um grupo, dentro da CDE, não alinhado com o PCP. E foi por aí, naturalmente, que fui . Por sentido de dever cívico. Assumo essa vertente da minha dimensão pessoal.O que atraía? Era a discussão de ideias? Era a possibilidade de resolver problemas. E chega o 25 de Abril.Eu estava na tropa na altura do 25 de Abril. Em Santa Margarida. Entrei para a tropa em Julho de 1973. Para Mafra. Na altura já havia qualquer coisa no ar. O juramento de bandeira da minha incorporação foi em Setembro de 1973. No meu pelotão só houve um que jurou bandeira. Os outros recusaram-se. Havia um processo de contestação.Como passou o tempo de tropa nesses tempos conturbados? Durante o dia era militar. À noite despia a farda e ía fazer sessões de esclarecimento para o Tramagal.Quando acabou o serviço militar? Em Outubro de 1975, pouco tempo antes do 25 de Novembro, o que fez com que não tivesse sido expulso da tropa como aconteceu a todos os milicianos que, como eu, tinham pertencido à Assembleia do MFA (Movimento das Forças Armadas). Livrei-me dessa mancha no meu bravo currículo militar (Risos).Significa que aderiu à UDP (União Democrática Popular) quando estava na tropa.A UDP foi constituída no princípio de 1975. No Entroncamento, o tal grupo que vinha da CDE fundou, a seguir ao 25 de Abril, um jornal chamado “O Ribatejo na Luta”, que chegou a ter alguma dimensão e constituiu uma organização que, no princípio se incorporou na UDP a quando da sua fundação. A partir daí desenvolvi actividade política na UDP, nesse processo riquíssimo e de boa memória que foi o PREC (Processo Revolucionário em Curso).Viciado na leitura de jornaisNasceu no Entroncamento e foi ali que estudou até ao antigo 5º ano, no externato Mouzinho de Albuquerque. Completou o liceu em Santarém e concluiu os estudos em Lisboa, no antigo Instituto Industrial de Lisboa, actual ISEL. No ano lectivo 1975/76 iniciou a sua actividade profissional como professor, na Escola Secundária do Entroncamento, onde esteve cinco anos. Depois esteve quatro anos na Escola de Alcanena, dois dos quais como elemento do conselho directivo.Deixou o ensino e entrou para os CTT/Telecomunicações em 1981. Começou por trabalhar em redes telefónicas. Trabalhou em diversas funções ligadas à Área Técnica e na parte final do seu percurso profissional, na Área Comercial da PT. Reformou-se em 2006.Está ligado à UDP desde a sua fundação em 1975 e ao Bloco de Esquerda. É vereador na câmara municipal do Entroncamento desde Outubro de 2008 altura em que o vereador eleito, Henrique Leal, renunciou ao cargo, alegando razões pessoais.Diz que o seu maior vício é a leitura de jornais. Tem múltiplos interesses culturais. “Sigo muito aquela perspectiva do António Pinho Vargas (músico de jazz). Ele tem um álbum chamado Selos e Borboletas. Perguntaram-lhe porquê. Ele disse que, quem só vê selos, não sabe o que perde da beleza das borboletas. E quem só vê borboletas não sabe o que perde da beleza dos selos. Quem só vê política não sabe o que perde em não se interessar por outras coisas”, defende.Os seus interesses vão variando. “Vou por ondas. Li tudo do Aquilino Ribeiro. Tudo, ou quase tudo sobre o José Cardoso Pires. Tive a fase do Carlos Oliveira, do Mário de Carvalho. Tive a minha fase do Saramago, que já passou, embora tenha lido o último livro “A viagem do elefante” que acho um livro bastante curioso. Vou pelos conselhos de amigos, pelas críticas dos jornais. Uns gosto, outros não. Alguns livros ponho-os de parte a meio. De vez em quando releio. O Delfim já li umas três ou quatro vezes. O Pequeno-Burguês do Carlos Oliveira também. Acho que é uma coisa extraordinária no domínio da linguagem. Acho que todos os jornalistas deviam ler o Carlos de Oliveira. Confessa que não gosta do cinema do realizador português Manoel de Oliveira e que admira Clint Eastwood. “Estou com grande curiosidade em ver o último filme dele, A Troca. Acho o percurso do Clint Eastwood interessante. Sendo uma pessoa conservadora tem uma visão profundamente humana. E faz filmes fascinantes”. Gosta de música, de fotografia e de conhecer pessoas e culturas. “Gosto de viajar de forma errante. De saborear os locais. Não me satisfaz a visão superficial e o postal ilustrado. Gosto de estar. De sentir a respiração das coisas. A apreensão da essência dos lugares e das pessoas dificilmente se faz no primeiro olhar que é, normalmente, um olhar de perplexidade e de estranheza. Gosto de descobrir um outro lado das coisas, das pessoas, das realidades para além do que é óbvio”.“As pessoas têm obrigação de se disponibilizar para a vida política”Que significado tem para si estar num órgão executivo como a câmara municipal?É a possibilidade de intervirmos de uma forma mais directa na vida quotidiana das pessoas embora tenhamos direitos limitados uma vez que existe uma maioria absoluta que limita muito o espaço de iniciativa e de proposta dos partidos da oposição. Notava-se que, por vezes, quando integrava a Assembleia Municipal, algum desencanto com a qualidade da discussão política.Sim, é verdade. Não tanto desencanto mas alguma frustração. Eu compreendo que as pessoas que não estão na política a tempo inteiro, como é o caso dos eleitos das Assembleias Municipais, têm muita dificuldade em acompanhar os processos e em aprofundar as questões políticas, o que faz com que, por vezes, a discussão seja francamente limitada. Mas é a discussão possível. Às vezes seria justo esperar mais da discussão mas também compreendo que as pessoas – e falo em geral – é com muito sacrifício que dão o seu melhor para ao fim de um dia da sua actividade profissional, estarem ali a analisar documentos extensos, complexos. É difícil fazer mais.Há cidadãos que abandonaram a actividade política por considerarem que a discussão era pobre. Que era uma perda de tempo e de energia.Acho que fizeram mal. Há muitas pessoas com valor, com capacidades e com conhecimentos, que fazem falta. Acho que essas pessoas têm obrigação de se disponibilizar para a vida política e para a vida cívica. Se a discussão é fraca, se o nível é baixo, há que trabalhar para que o nível seja mais elevado e contribuir para melhorar. Somos contra a atitude demissionista de ficar de fora a criticar o baixo nível dos órgãos autárquicos.A nível autárquico é normal haver acordos entre eleitos de partidos diferentes em questões pontuais, desde que não envolvam censura ao partido que está no poder. Os autarcas do PS e do PSD têm um problema. É que os respectivos governos dos seus partidos, geralmente governam mal. E eles ficam com o papel muito ingrato de, normalmente, terem que defender o indefensável.O que se passa na câmara do Entroncamento? O PSD tem uma visão muito sectária da actividade política.É curioso dizer isso porque tem tido a possibilidade de concertar algumas posições suas com o PSD.O PSD, por princípio, rejeita todas as propostas da oposição. As que aceita são as excepções que confirmam a regra. Em princípio rejeita e depois vai ver se vale a pena aceitar ou não. E é pena porque, por vezes, podem ser apresentadas boas propostas pela oposição. E as pessoas quando as fazem é com o objectivo de serem construtivas e positivas. Mas não existe muita abertura a propostas que venham da oposição. A recente proposta do BE relativa a algumas isenções às taxas do comércio foi bem acolhida.Foi, vamos ver qual é a versão final. O BE vai continuar a fazer as nossas propostas e o PSD continua a decidir o que faz com elas. É tão simples quanto isto.Qual é o principal problema do Entroncamento? A questão fundamental é o planeamento. O PDM foi aprovado em 1995. Tinha um prazo de vigência de 10 anos mas não foi ainda revisto e mantém-se em vigor. Está ultrapassadíssimo. A maioria PSD disse que o PDM iria ser revisto e ele está a ser revisto, salvo erro, desde 2001 ou 2002 mas não há notícias dessa revisão. Por causa disso o Entroncamento está a ser, urbanisticamente, gerido à vista. Quando não há a lei, vale a lei do mais forte. Este é o maior problema desta cidade. Não há linhas mestras de orientação. Nem PDM, nem Planos de Pormenor…não há. O Entroncamento está a ser gerido casuisticamente, é a palavra mais adequada. E isso permite as decisões mais absurdas.Pode dar um exemplo?Basta ver o que se passa com as áreas de cedência dos loteamentos. O que se passa? Sempre que há um loteamento têm que ser entregues ao domínio público áreas de cedência nas quais, para o futuro, serão feitos os jardins, escolas, lares de terceira idade, etc. A lei permite que, excepcionalmente – é a palavra usada – os promotores possam pagar, em vez de entregar essas áreas de cedência. O que se está a passar no Entroncamento é que todas as áreas de cedência estão sistematicamente a ser substituídas por dinheiro. Daqui por uns anos não há terrenos para a construção de equipamentos colectivos. Vamos ter grandes problemas no futuro ao nível do planeamento.

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