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“Santarém sofre do mal de haver muita teoria e pouca prática”

“Santarém sofre do mal de haver muita teoria e pouca prática”

Historiador Martinho Vicente Rodrigues considera que a cidade tinha condições para ter uma universidade

Martinho Vicente Rodrigues é um historiador agarrado ao passado de Santarém, a terra que o acolheu e a que hoje chama sua. Mas também se deslumbra com as coisas novas que vão sendo feitas na cidade. Em décadas de ensino secundário e superior nunca se confrontou com problemas graves de indisciplina porque sempre soube cativar o respeito dos alunos. Nesta entrevista, o discípulo confesso de Veríssimo Serrão fala do turismo religioso da cidade, da Feira do Ribatejo, do sonho não concretizado da instalação de uma universidade em Santarém.

Com pouco mais de 20 anos decide instalar um colégio em Pernes. Como é que lhe surgiu essa oportunidade?Tudo começou porque a primeira aluna que tive quando dava explicações era de Pernes e comecei a ter contacto com pessoas da localidade que me convidaram depois a montar o colégio. Tenho a consciência de que sabia, para o tempo, fazer uma reflexão sobre o presente e levantar os pilares para a evolução num sistema de ensino que tardava no país.Esse posicionamento político não lhe trouxe engulhos?Assistiam às minhas aulas o senhor comandante do posto da Guarda Republicana de Pernes e, em Santarém, dois senhores da PIDE (polícia política do antigo regime). Tinha que ter cuidado com o que dizia…Era muito ponderado nessas alturas. Mas não deixava de explicar o que era a revolução chinesa, a vida do proletariado, nunca deixava de fazer o cruzamento de ideias do marxismo. Não os enganava sobre isso. O meu dever como professor era explicar, apresentar, mas sempre com a consciência de explicar mas nunca mentalizar. Por isso não tive problemas.Quando tinha o colégio em Pernes era também um conselheiro dos pais dos alunos?Cheguei a dar aulas de contabilidade aos empresários locais. Liguei também o colégio às belas artes, fazendo lá exposições. Organizava conferências em Santarém, mas estas às vezes não corriam bem porque de vez em quando prendiam um conferencista. Quais são as diferenças entre as gerações que ensinou?Antigamente tinha alunos naquele terceiro andar da praça velha de Pernes que iam a pé às onze e meia da noite para Alcanhões e no outro dia de manhã cedo iam para o trabalho. Isso hoje é impensável. Nessa altura lutavam por ter um segundo ano, um curso geral de comércio, que era muito importante. Já não há esse espírito de sacrifício para aprender?O aluno da noite ainda faz sacrifícios. Mas temos que ver que antigamente o ensino era diferente. O professor tinha autoridade e autonomia. Mas sempre tive a minha autonomia e liberdade de expressão para com os alunos e eles para comigo. Nunca se confrontou com problemas de indisciplina?Tive os melhores alunos do mundo, nunca tive nada. Houve sempre um respeito mútuo. Tratei os alunos sempre por senhores ou senhoras. Nunca meti um aluno na rua nem no ensino secundário nem no ensino superior e tive os maiores corrécios que se pode imaginar. Mas se me perguntar se nunca dei um estalo num aluno, digo que dei sim senhor. É um estudioso da história de Santarém. A cidade tem sabido merecer esse passado?A conquista de Santarém pelo rei D. Afonso Henriques em 1147 é o garante da defesa de Lisboa. D. João II quis fazer de Santarém a capital do reino. A cidade tem que se projectar para o futuro em solidariedade com esse passado... E existe essa solidariedade?As nossas torres provavelmente por vezes estremecem, mas a política é uma ciência evolutiva e como tal a cidade vai esperando o melhor. A cidade tinha condições para ser património mundial?Tinha. E só não o foi pelo modo como foram tratados os dados da candidatura. A força política tem que ser coadjuvada muitas vezes por outras forças. Tem que haver um envolvimento de partes para que se consiga o sucesso. Há duas coisas importantes na vida política: a vontade e o desejo. E quando o desejo não acompanha a vontade há grandes disparidades. Era precisa na altura uma vontade global e não houve o apoio de Lisboa. Por outro lado vale mais às vezes gramas de prática do que toneladas de teoria. E Santarém sofre do mal de haver muita teoria e pouca prática. E agora está a mudar alguma coisa?Temos uma cidade na tentativa de uma nova roupagem. Esse espírito de mudança é o natural que encontro em cidades como Castelo Branco, Guimarães ou Porto. Não é por acaso que a câmara está a usar em pórticos à entrada da cidade as palavras história e liberdade. Gosta desses pórticos?Não entendi o significado mais fundo desses pórticos, mas entendi a frase. Santarém está ligada à história do 25 de Abril. Como viveu esse momento?Vi cerca das duas da madrugada passarem os tanques, mas como já vinha sendo habitual as deslocações para a carreira de tiro deixei-me ficar. Mas tive o pensamento de que poderia ser a revolução porque havia em Santarém a sensibilidade que devia estar alguma coisa para acontecer. O que é que o 25 de Abril ainda não mudou?A nossa universidade tem pouca investigação. Os politécnicos continuam a ser os parentes pobres do ensino universitário. É preciso que os cursos superiores garantam a integração profissional.O distrito de Santarém tem dois politécnicos mas parece que o trabalho destes institutos não se reflecte na região… Santarém perdeu a grande oportunidade quando tinha uma escola agrícola cimeira em ciência e técnica que transbordou para o mundo e uma estação zootécnica no Vale de Santarém. Havia o potencial para caminhar para uma universidade de veterinária, de agronomia... O professor Veríssimo Serrão quis levantar uma universidade em Santarém, mas o poder político não se agarrou a isto. Santarém não teve força política. Não há massa crítica na região?Massa crítica de café, da noite, de bar há com fartura. Tive milhares de alunos e a todos dizia que ler um livro é tocar uma alma. E uma coisa que me chocou recentemente foi a notícia de despedimentos de jornalistas. Porquê?Os profissionais da comunicação são essenciais ao país. São um poder. Os historiadores por vezes estão demasiadamente agarrados ao passado…Neste momento estou a tratar um manuscrito de Évora sobre a história de Santarém, que me está a demorar mais de um ano só a transcrever. E vou publicar em Julho um livro sobre Azinhaga do Ribatejo (Golegã). Mas admiro tanto este ou aquele documento histórico sobre a cidade e a região como me deslumbro com uma coisa nova, um novo edifício, uma nova rua, um novo traçado de um jardim, uma rotunda. Ai daquele que arranha o ofício da história e não se encanta tanto com a obra da actualidade como a obra do passado.Como se define enquanto historiador?Digamos que vivi o sonho da história marcado por ilusões, frustrações, alegrias… mas escrevi sempre história por ciência e por coração. “O património escalabitano nunca teve muita sorte”Santarém tem aproveitado o seu património para o turismo? A cidade tem pontos altos extraordinários, como a Feira do Ribatejo, a festa que a câmara agora tem feito junto à praça de toiros, as largadas de toiros. E mesmo sendo um homem da Beira Baixa isso encanta-me. Agora nas festas de S. José vai haver largadas de toiros. Isso é o ex-libris do Ribatejo, mas a cidade ainda não criou o seu ex-libris tendo-o tão à mão. E qual é o ex-libris da cidade?A grandeza da cidade que tem o Tejo aos pés e das riquezas que isso acarreta. Não tenho visto uma valorização destes aspectos para efeitos turísticos. E a Feira do Ribatejo já não é o que era? Fui convidado, ainda era um miúdo, para reuniões com Celestino Graça porque ele gostava de ouvir os outros. Ele provavelmente não sonhou a vertente empresarial com a passagem do certame para o CNEMA. O turismo religioso ligado ao Santuário do Santíssimo Milagre deixa alguma coisa na cidade?Não houve nos últimos dez anos a atenção devida ao turismo religioso na cidade. O Santíssimo Milagre é o segundo santuário do país. E pode adquirir uma posição internacional. Entre 1983 e 2007 o santuário foi visitado por 270.853 peregrinos. Já pensou o que eles podiam ter deixado em Santarém? A indústria hoteleira não goza disto, não há outras actividades que possam capitalizar essas visitas.Escreveu um livro sobre o santuário para ajudar a promover a cidade?Dizia no santuário para oferecerem o livro, que tem edição em Inglês, aos peregrinos porque através dele ficam também a conhecer a cidade. Mas eles vendem-no. Afinal o que é que falta no meio disto tudo?Um entendimento devido com o poder político e depois com a entidade regional de turismo. Concertando as três posições é possível fazer mais porque o turismo dá um valor acrescentado à cidade. O dia em que Santarém resolver a chegada às Portas do Sol, a saída pela Atamarma de modo conveniente e se conquiste o turismo, a cidade vai ser muito visitada. E não é preciso virem dizer que agora é que Santarém está no mapa. Santarém nunca saiu do mapa.Mas houve épocas que esteve mais escondida no mapa. Acha que a nova gestão camarária tem dado mais visibilidade à cidade?Acho. Os tempos são outros, as oportunidades são outras e os meios ao dispor da câmara são outros. Espero que se esteja no bom caminho e se atinja um bom fim.Apoia a decisão de Moita Flores de ressuscitar a Feira do Ribatejo no Campo Infante da Câmara? Vejo isso como posições naturais de fazer o bem-estar ao povo de Santarém. Se calhar também é um contributo para a auto-estima dos escalabitanos. Não tem pena de ver o antigo campo da feira ao abandono?Um bom jogador político deve guardar qualquer coisa na manga. Estou à espera que seja jogada a carta do campo da feira, que deve ser jogada. O abandono de algum património edificado também não dignifica a cidade…O património escalabitano nunca teve muita sorte, porque o desejo e a vontade não andam de mãos dadas. Temos por exemplo os conventos de S. Francisco e de Santa Clara que são de uma riqueza extraordinária, são testemunhos ditados para o mundo e que pelo tempo e pelo homem sofrem o seu desidratado desgaste. Temos que unir mãos. É certo que o país não tem dinheiro, mas se outras cidades levaram por diante a recuperação do seu património, esta cidade também o pode fazer. Acredito que houve uma boa intenção dos últimos cinco presidentes de câmara para o património e para o povo. Mas só a intenção não chega.Não. Ser escalabitano não é fácil. Nunca faltou o interesse do homem pela nossa cidade. O que lhe faltou foi muitas vezes o apoio e solidariedade de Lisboa que cortou as asas ao sonho.De jovem mecânico a doutor em HistóriaUm acidente aos 16 anos, na oficina de automóveis onde trabalhava, deixou-lhe marcas para o resto da vida. A visão ficou afectada irreversivelmente e os óculos de lentes escuras passaram a fazer parte do seu visual. “Tive que aprender a arte de viver a ver mal”. Martinho Vicente Rodrigues contornou o azar entregando-se ao trabalho e aos estudos. Fez o curso geral de comércio, deu explicações de várias disciplinas. “Era de clínica geral”, brinca. Aos “vinte e poucos anos” fundou o Externato Florbela Espanca em Pernes, onde tem o nome numa rua. A carreira académica foi progredindo, desde a licenciatura em Coimbra até ao doutoramento com distinção e louvor. É um apaixonado da História e tem-se dedicado a investigar o passado de Santarém, a cidade que o acolheu e aos pais quando tinha apenas nove anos. Nasceu em Tinalhas, Castelo Branco, mas assimilou facilmente os valores e tradições ribatejanos, com a ajuda da rapaziada da Ribeira e de Alfange. “Depressa aprendi a atravessar o Tejo de margem a margem”. Hoje considera Santarém a sua cidade, embora de vez em quando mate saudades da Beira Baixa natal.Discípulo da escola do historiador escalabitano Veríssimo Serrão, como gosta de sublinhar, partilha com o mestre a paixão por Santarém. “Sou um professor que vive o sonho da História”. A sala do apartamento onde nos recebe está forrada de livros relacionados com a sua arte. Chama-lhe “a oficina”. Filho de pai polícia e mãe doméstica, entrou no mundo do trabalho aos 12 anos a acartar caixotes numa mercearia. Foi ainda mecânico de automóveis até se dedicar ao ensino. Aos 18 anos já dava aulas e explicações. É um defensor da instrução e da cultura como instrumentos de desenvolvimento e geradores de aptidão. “Onde não há cultura não pode haver progresso”, sentencia.Fala com eloquência e gestos largos de braços, características de quem está habituado à oração pública. É casado e tem um filho de 25 anos, advogado em Santarém. Pelas suas aulas passaram milhares de alunos e diz que nunca teve problemas graves na sala. “Nunca pus um aluno na rua nem tive grandes problemas”. Mas de vez em quando tinha de dar uma estalada num aluno para não deixar a indisciplina descambar. Membro da Academia Portuguesa de História, Martinho Vicente Rodrigues dedica o seu tempo ao ensino, à investigação e à escrita. Tem vários livros e inúmeros artigos publicados. Um estudo sobre Filipe II de Portugal é a obra mais recente, que vai em breve para a tipografia. Em Julho prevê publicar um livro sobre Azinhaga, a convite da Câmara da Golegã. E anda atarefado a transcrever um manuscrito sobre a história de Santarém, que deve ganhar depois forma de livro. Um trabalho feito em Évora que requer paciência e minúcia e que lhe levará pelo menos um ano até estar em condições de ser publicado.
“Santarém sofre do mal de haver muita teoria e pouca prática”

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