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“O comércio de Vila Franca de Xira está falido”

Pedro Miguel Gil foi o rosto do restaurante da pensão “Flora” durante 52 anos

Um dia o menino órfão, que guardava ovelhas com um pedaço de broa seca no saco, tornou-se gerente de um restaurante e pensão em Vila Franca de Xira. Uma casa da obra assistencial do Padre Moniz, que o acolheu aos dez anos, e que Pedro Miguel Gil adquiriu mais tarde. Cinquenta e dois anos depois – após “derreter os últimos anéis” para resistir – o restaurante o “Recanto do Ti Pedro” fechou portas, mas não será o último espaço a fazer ecoar o canto do cisne. “O comércio de Vila Franca está falido”, sentencia.

O “Recanto do Ti Pedro” fechou portas no início de Maio. Era uma referência na cidade e há quem ache que o senhor deveria ter pedido ajuda para manter o espaço…O encerramento foi muito pensado. Não aconteceu de um dia para o outro. Nos últimos anos a rentabilidade do restaurante começou a enfraquecer, mas como a ocupação dos quartos era bastante razoável havia um certo equilíbrio. É muito agradável sair de casa e vir trabalhar para um local de que se gosta… Eu gosto muito da restauração. Mas de há uns meses para cá começámos a sentir esse decréscimo não só no restaurante, mas também nos quartos. O investimento parou. Não existem pessoas a circular. Facturava às empresas milhares de euros e agora não facturo nada. E como é que isso aconteceu?Tenho algumas respostas para isso. Não é barato e é um serviço personalizado. No restaurante o cliente não se cansava, nem sequer agarrava na carta. Eu era a pessoa que adaptava a comida ao vinho e as coisas funcionavam. Oitenta por cento dos clientes não escolhia absolutamente nada… Eu chegava para tirar o pedido e diziam-me: ‘fale’. E era assim.E era um serviço pouco comum.O cliente escolhia este restaurante para momentos com mais significado. Para um contacto com o representante, por exemplo, momentos de negócio. Fazia dez refeições por mês em restaurantes mais baratos, mas escolhia uma ou duas vezes para vir aqui. Tudo isso se modificou… Uma série de factores contribuiu para que a clientela diminuísse. Comuniquei aos órgãos de comunicação. E comuniquei a alguns clientes. A outros não tive coragem de dizer que ia fechar. Este era o momento em que me tiravam do meu corpo. Houve quem me perguntasse: ‘o que é que a câmara fez?’. Mas a câmara não pode fazer nada. A câmara não é a Santa Casa da Misericórdia. E que solução defende para alterar a situação?Vila Franca de Xira não é uma terra de alta gastronomia e cada vez está a cair mais. Veja as entradas e saídas do concelho. Faz ideia da quantidade de restaurantes que há em Alverca? Na urbanização Malva Rosa? E no Carregado? E porquê? ‘Pedro Miguel é uma maravilha vir aqui, mas a tarde está estragada. Levei 15 minutos de Lisboa a Vila Franca e desde a rotunda até aqui demorei quase uma hora’. Depois há a questão do estacionamento. Há muitos parques, mas ficam distantes. O cliente só vem se for amigo. Um silo para estacionamento resolveria muitos problemas. O comércio está falido. Hoje fui à procura de 24 parafusos e trouxe oito. Eu fechei para pensar. Para ver se aparecia alguém… Tenho áreas para explorar, mas é preciso gente séria que goste e com dinheiro. Eu tenho espaço e tenho um nome… Mas o espaço não seria a mesma coisa sem o senhor.Eu não abandonaria. Posso dar umas linhas de orientação. Não iria a 100 por cento pelo ‘gourmett’… Há clientes que não gostam dessa cozinha moderna, mas da tradicional. Ela é viável introduzindo pormenores nos acompanhamentos. O senhor veio gerir a pensão do Casi aos 23 anos.Vim para aqui em 1957. Em 1967 o Casi não podia ter esta exploração e através da direcção geral de assistência fiquei com a parte comercial por trespasse. Em troca paguei todas as dívidas que o Casi tinha a fornecedores. Havia dívidas de mercearias e carnes. Eram 120 rapazes na instituição… Os pagamentos das dívidas foram feitos através de letras. Mais tarde comprei o prédio.O negócio corria bem?Em 1967 deu-se o início das obras da Central Termoelétrica do Carregado. Havia uma grande movimentação. Empresas estrangeiras trabalharam no projecto. A pensão chegou a uma ocupação de 100 por cento. Havia na altura em Vila Franca, entre casais suíços e franceses e alemães, cem figuras. Foi uma obra que demorou muitos anos. Isto estava tudo cheio e eu ainda conseguia ajudá-los a alugar casas. Compravam as mobílias que eu mais tarde comprava. E fez muito investimento.A Flora abriu com 10 quartos no primeiro andar. Segundo e terceiro andar para alugar. Os quartos tinham água fria e duas casas de banho interiores com banheiras de marmorite. Actualmente tem 22 quartos com casa de banho privada, ar condicionado, telefone à rede e parabólica. Um espaço como este tem que ter 70 a 75 por cento de ocupação para ser rentável e não passamos dos 50. Quantas pessoas foi obrigado a dispensar?Tive que dispensar uma pessoa com muita pena minha que foi para o desemprego. Disse-lhe que fosse saber dos seus direitos, mas ele respondeu-me que fizesse eu as contas. Confiava mais em mim do que nele próprio. Como tinha ainda um valor avultado a pagar-lhe perguntei-lhe se poderia passar três cheques. Disse que sim e que ainda passaria cá a confirmar antes de ir ao banco.O menino órfão do Casi que foi gerir uma pensãoÉ natural da Torre, Batalha, e veio para uma casa assistencial em Vila Franca de Xira. Com que idade ficou órfão? Aos sete anos. Era o mais novo de 11 irmãos. A minha mãe morreu com 49 anos. O meu pai ficou viúvo. Nunca mais casou, está claro. Trabalhava de sol a sol. Eram tempos terríveis. Eu ia para a fila do pão na altura da segunda guerra mundial. Andava sete quilómetros a pé. Nunca levava pão para casa… Era enganado e ultrapassado. “Olha, já não há pão”, diziam-me. Depois o meu pai chegava a casa completamente destruído com aquela camisa preta de viúvo, cor de salitre do suor, agarrava no burro e ia por aqueles montes até à Batalha, portas e travessas, para ir buscar farinha de contrabando a casa de uma irmã. Lá vinha com os alqueires para fazermos broa… E porque veio para Vila Franca?Tinha uma irmã em Lisboa, dama de companhia de uma senhora riquíssima solteirona, Maria Benedita d’Oriol Pena, que tinha um palácio na Rua Monte Oliveira, e que tinha uma prima nas cortes de Leiria, que por sua vez era prima de D. Maria Palha Blanco.Era difícil entrar para o Casi?Estava cheio! E os seus irmãos?Os meus irmãos já trabalhavam. Um foi para aprendiz de pedreiro – pagava 30 escudos por mês para aprender de sol a sol – outro foi para o Brasil. Tinham idades diferentes. A minha mãe teve-me com 42 anos…Veio aos dez anos. Ainda esteve três anos com o seu pai.Sim, a guardar ovelhas. A minha irmã punha-me um bocado de broa seca dentro de um saco. E lá ia descalço. Andei descalço até aos sete anos. E a sede? Sabe como é que eu fazia? Antigamente os púcaros de resina eram de loiça. Eu procurava os novos. Tirava o leite aos animais e misturava-o com broa. Nem havia colher para comer. Quando chegou a Vila Franca já tinha a quarta-classe. O que veio fazer?Continuei a frequentar a escola. Era o braço direito do padre Vasco Moniz. E porquê eu? Às vezes pergunto-me. Porque vinha sem vícios. Era uma criança inocente. Ele viu isso e puxou por mim. Entrei na parte administrativa. Já controlava os materiais, as madeiras e as oficinas das artes gráficas… Criou-se a pensão e ele disse-me ‘vais para ali’. Eu não tinha conhecimento nenhum de restaurantes.Até aos 23 anos como foi viver numa casa assistencial, uma espécie de Casa do Gaiato?Esta questão dos crimes de que hoje se houve falar nem se sonhava… Quando começávamos a ser homens era-nos entregue a chave da porta principal. Havia quartos com quatro camas, mas eu tinha um quarto só para mim. Já pertencia à direcção. O meu quarto ficava encostado ao quarto do padre Moniz. Acompanhava-o para todo o lado. Comíamos marmelada e bolos secos à noite.Era uma pessoa que admirava?Acompanhei aquele homem durante a minha adolescência. Admirei-o. Foi um homem que sofreu muito. Passou por muitas dificuldades para dar de comer aos rapazes. Foi um homem que não nasceu para dirigir uma paróquia. Era um catedrático. Íamos à missa, metíamo-nos no carro para ir ao seminário e íamos buscar um cheque para depositar no banco. Andámos nesta corrida anos. Havia alguém no banco ultramarino que controlava a situação. Nunca se mandava nenhum cheque para trás. Passava uma semana e levava as mãos à cabeça. Voltava a repetir-se tudo na semana seguinte. Depois o Casi deixou de explorar o restaurante por já não ser considerado escola de formação e eu fiquei com a parte comercial.Um senhor chamado Pedro Miguel GilPedro Miguel Gil senta-se a uma mesa do “Recanto do Ti Pedro”, onde passou os últimos 52 anos da sua vida. As portas do restaurante da Pensão Flora, na Noel Perdigão, em Vila Franca de Xira, fecharam há mês e meio, mas as mesas e cadeiras – encomendadas há décadas em série com altura e robustez ideal para oferecer conforto – continuam intocáveis. Antes porém Pedro Miguel Gil, 76 anos, estende uma toalha fina amarela, bem vincada, desabafa sobre os incómodos do dia e pede gentilmente para fumar um cigarro. O esfumar suave escapa-lhe por entre os dedos, demoradamente, durante uma longa conversa de seis horas. Se o cliente da casa abdicava de escolher a ementa ao entrar no restaurante porque deveria uma jornalista ser tratada de maneira diferente? É Pedro Miguel Gil que toma o guião da entrevista e lhe imprime o ritmo. Demora-se uma hora a chegar ao final da resposta à pergunta inicial. Começa com a crise da primeira fiada do novo milénio para regressar por momentos aos difíceis anos trinta do século passado. Quando em 1939 o padre Vasco Moniz chegou a Vila Franca de Xira e só viu miséria no largo da estação. Em 1944 nasceu então o Centro de Assistência Social Infantil - Casi. Pedro Miguel Gil foi recebido aos dez anos na “casa” do padre Vasco Moniz e tornou-se no braço direito do pároco que recebia os jovens e os encaminhava para a escola ou para as oficinas para que aprendessem a trabalhar como estucadores, pedreiros ou serralheiros. Foi sacristão e acompanhou o padre numa luta diária para manter de pé a instituição. Nos últimos cinquenta anos Pedro Miguel Gil dedicou-se a trabalhar para honrar quem acreditou no seu valor. Começou a gerir a pensão do Casi em 1957. A instituição procurava rentabilidade própria para evitar peditórios – “cansa quem pede e cansa quem dá” – diz Pedro Miguel Gil, um homem do centro, desiludido com a política. Dez anos depois o negócio passou para as suas mãos. Em troca pagou as dívidas aos fornecedores da casa que o ajudou a crescer – facturas antigas de carne, peixe e mercearias. Mais tarde comprou o prédio. Todas as manhãs visitava o mercado diário da cidade para comprar os pescados mais frescos. Ao ‘dialogar o almoço’ o cliente poderia obter um vinho a acompanhar o sável ou o linguadinho à medida do rumo que os negócios iam levando. “Para cada cliente uma criatividade”, explica. “Se tem um amor por uma pessoa ligada à restauração ou à hotelaria considere muito antes de fazer o casamento. Muitos ficam pelo caminho”, aconselha meio a sério, meio a brincar. A um casamento que não resultou seguiu-se uma união feliz que hoje mantém. Pedro Miguel Gil, pai do pianista Vasco Gil, fruto do primeiro casamento, fala da actual companheira como uma senhora de enormes qualidades.Já não precisa levantar-se cedo para ir comprar peixe ao mercado, mas a força do hábito fá-lo sair da cama à mesma hora. As portas fecharam, mas a paixão pela restauração mantém-se tal qual os vinhos deitados na garrafeira mais profunda. Tão profunda que fica abaixo do leito do Tejo.

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