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O maestro autodidacta que não gosta de compor para os outros

O maestro autodidacta que não gosta de compor para os outros

José Santos Rosa nasceu em Pernes, começou a trabalhar como carpinteiro e fez carreira em várias orquestras

José Santos Rosa foi músico, dirigiu orquestras, criou bandas, escreveu inúmeras músicas. É conhecido pela Orquestra Santos Rosa, hoje dirigida pelo seu filho Pedro, mas marcou uma época a dirigir a orquestra do Casino da Figueira onde tem uma fotografia sua na galeria dos grandes artistas que passaram pelo espaço. Aos 78 anos diz que continua a não conseguir viver sem música. Diz que sente vaidade em ser músico pelo carinho que recebe das gentes da Figueira da Foz, de Lisboa, ou de outras terras. Mas na sua Pernes natal confessa que não tem nenhum estatuto especial.

Como nasceu a sua ligação à música?Há pouco até fiz um verso sobre isso: “Em jovem fui carpinteiro/mais tarde professor de música/hoje para mal dos meus pecados/sou por amor moço de recados”. Moço de recados?Tem a ver com a situação da minha mulher. Há três meses adoeceu e sou eu que vou buscar o almoço e o jantar, lavo a loiça...Foi carpinteiro até que idade?Fui carpinteiro com o meu pai até ir para a banda da GNR, aos 19 anos. Mas aos 12 anos já era músico na Banda da Música Nova em Pernes. O meu professor foi um grande músico que tinha vindo da banda da Marinha, o Sabino Flor. Como é que descobriu esse talento para a música?Já vinha de família. O meu pai era da Música Velha de Pernes. Quando chegou o Sabino Flor à terra muitos dos músicos consideravam que devia ser ele a dirigir a banda porque percebia de música. Na altura os mestres da música eram curiosos que pouco sabiam de música. Mas havia outros que não queriam. Então saíram os 18 melhores músicos e juntaram-se com o Sabino para fazerem uma banda (Música Nova) e passados oito dias foram logo fazer a inauguração da luz eléctrica em Santarém.É nessa altura que começa a aprender música?O Sabino começou logo a ensinar música. Os primeiros eram quase todos filhos dos músicos da banda. Andava a trabalhar com o meu pai e ele é que me mandou ir aprender com o maestro. Andou a estudar até que altura?Fui a Santarém fazer o exame da quarta classe e cheguei a Pernes ao meio-dia. Quando era uma da tarde o meu pai pôs-me a trabalhar com ele na área da carpintaria. Esteve à espera que eu chegasse para me dar trabalho para ganhar algum dinheiro para os copos… dele, claro. Comecei a trabalhar com dez anos. Nesse mesmo dia mandou-me também aprender música. Em jovem já era considerado um bom músico…Com 15 anos já tocava em várias bandas filarmónicas, como no Cartaxo e Minde. Tocava clarinete que é dos instrumentos mais difíceis. Também comecei logo a fazer conjuntos com outro rapaz e a fazer bailaricos. Não tínhamos cantor. Era música para dançar e pronto. Sendo o seu pai uma pessoa rude e que precisava do seu trabalho, não deve ter sido fácil chegar a músico profissional.Posso agradecer a um padre. Andava a namoriscar uma rapariga que participava no coro da igreja e eu ia cantar à missa só para a ver. Depois disso nunca mais fui à missa (risos). O padre Adriano um dia quis ensaiar uma canção a quatro vozes e aquilo era um pesadelo porque ninguém sabia música. A generalidade das pessoas só consegue cantar a uma voz. Mas limpei aquilo à primeira e ele ficou tão maravilhado que foi falar com o meu pai para que eu seguisse uma carreira de músico. Nesse tempo as pessoas tinham muito respeito pelos padres. E foi para onde?O padre escreveu para um sobrinho que era oficial do Exército e fui fazer exames na Infantaria 1 na Calçada da Ajuda, em Lisboa. Nesse dia fiz a tinta, e sem borrar, uma marcha de concerto para a banda de Infantaria que tinha o dobro dos elementos da banda de Pernes. Mostrei-a ao chefe da banda e ele perguntou-me em que conservatório tinha andado. Disse a brincar que tinha sido no conservatório de Pernes. No dia seguinte colocou-me a tocar os vários instrumentos diferentes dos outros músicos e toquei-os todos. Tinha tido formação para compor?Era um autodidacta. Escrevia por impulso. Nunca tinha aprendido harmonia, direcção, composição…Tem ideia de quantas composições fez ao longo da vida?Não! Fiz muito menos do que devia. Muitos milhares ficaram por fazer por rebeldia. Escrevi muita coisa nos anos 60 e 70, mas a partir de certa altura só fazia o que era essencial para as minhas orquestras, para as minhas bandas. O trabalho não era recompensado?Muita gente queria aproveitar-se do meu trabalho como fizeram com outros. Há pessoas que querem ser os donos das coisas e mandam fazer aos outros. Fiz 36 arranjos para um maestro que foi considerado o melhor compositor do ano em determinada altura. Ele ficou com as obras que escrevi e aproveitou-se por omissão. Não dizia que tinha sido ele o autor mas também não referia quem é que tinha feito os arranjos. Houve outro que queria que eu escrevesse para ele vender em nome dele. Nessa altura arrumei os papéis, meti o instrumento debaixo da cama e estive quatro anos sem tocar.Concorreu também a festivais de música…Uma vez, quando fui tocar ao Casino de Espinho, um dos locutores de rádio da altura, o Vitorino de Sousa, tinha acabado de escrever uma letra, com o título “O meu rio Douro”, e pediu-me para fazer a música para concorrer ao festival de Aranda Del Duero (Espanha). Era o último dia para entregar as músicas. Levei um minuto a escrevê-la, fui a correr ao correio e mandei-a. Ganhámos o primeiro prémio. E foi um êxito em Portugal.Passou também pela banda da GNR…Estive lá oito anos. Foi quando vi o que era música, quando comecei a tocar Mozart, Beethoven e outros.Na altura não era fácil viver só da música. Quando saiu da banda da GNR o que é que fez para ganhar a vida?Para ganharmos alguma coisa tínhamos que tocar nos cabarés. Já na altura o meu desejo era a música ligeira e fui tocar para o Maxime, em Lisboa. Descobriram-me num baile numa esplanada em Algés. Tinha uns 26 anos. Tocava uma música em que imitava com os instrumentos os galos a cantar, os cães a ladrar… A dada altura, lembro-me, o dono da esplanada tinha um cão e já era ele que ladrava quando chegava a vez de o imitar.Também teve umas aventuras no estrangeiro.Isso foi quando formei o quinteto “Zé Rosa”. Andámos pela Suécia, Noruega, Bélgica e Holanda. Era seis meses num sítio, três no outro, até me fartar e chegar à conclusão que Portugal é o melhor país e jurar que nunca mais tocava no estrangeiro, nem sequer em Espanha.E cumpriu a promessa?Cumpri. Porque fomos explorados como nunca tínhamos sido em Portugal, onde tocávamos e também descansávamos. Nestes países diziam-nos que tínhamos de tocar das oito da noite às cinco da manhã sem parar. Mas deve ter arranjado um bom pé-de-meia.Dez dólares por dia, que eram cerca de 200 escudos, a cada um. Uma boa miséria. Para conseguir cumprir o que eles queriam tive que fazer um esquema. Tocavam quatro e um descansava, depois vinha este e ia outro descansar. Eu não sabia tocar piano e tinha que substituir o pianista no quarto de hora que ele ia descansar. Fez parte também da orquestra de jazz de Costa Pinto. Deve ter sido uma experiência interessante…Era saxofonista tenor e era conhecido por improvisador e por ter uma maneira de tocar especial. Mas em terra de cegos quem tem um olho é rei. Nessa altura Portugal era uma miséria em termos de música. Naquele tempo era fácil dizer que Santos Rosa era o melhor saxofonista português, porque havia pouca gente a tocar. Hoje há mais de cem todos bons, ao mesmo nível uns dos outros. Uma das alturas que mais produziu foi quando esteve na Orquestra da Emissora Nacional.Havia dois que faziam as orquestrações para os “Serões para Trabalhadores”. Eles começaram a ficar saturados e a dada altura tocou-me a mim. Fiz mais de 500 arranjos para a emissora. Andava sempre com o bolso cheio de papéis. Passei a ser orquestrador e músico da Emissora Nacional. Lembro-me que só havia um ensaio no próprio dia, enfiavam-nos numa camioneta e lá íamos actuar nos “Serões”.Escrevia música por prazer?Só tinha prazer em escrever se fosse para eu dirigir ou tocar. Estar a escrever para outros não me interessava. E quando é que surge o convite para ir para o casino da Figueira da Foz?Estava ainda na Emissora e aparece-me um colega a perguntar se estava interessado em ir fazer o Verão no casino. Era um trabalho muito difícil. Não havia música gravada e era tudo tocado por nós. Acabei por lá ficar 15 anos como chefe da orquestra, até 1979. Todos os anos tinha que convidar músicos, pianistas, para lá irem. Mas voltou ao casino anos mais tarde…Sim, nos anos 90. Foi onde fiz a peça “Um dia na Figueira”. E disse que só lá ficava se me deixassem fazer uma orquestra à Glenn Miller com 15 elementos, com uma hora de baile às sextas e sábados. Mas vim-me embora porque um dos músicos, desses parvos sem preparação, foi pedir mais dinheiro à administração sem eu saber. Acabou de um dia para o outro. Por isso é que dizem que sou mau. Mas deve ter ficado com boas recordações…A Figueira da Foz tornou-se a minha segunda terra e foi onde fui mais acarinhado em toda a minha vida. Teve muitos convites?Quando estava no casino liga-me uma rapariga que tinha arranjado um tacho na Emissora Nacional a dizer que os músicos tinham votado em mim para ir dirigir a orquestra da Emissora e meter o maestro Tavares Belo na rua. Não aceitei. Não fazia uma coisa dessas ao homem. Curiosamente, o Tavares uma vez telefonou-me a dizer que eu era dos poucos músicos que se podiam gabar de ter músicas no arquivo histórico da Emissora Nacional. Quando aparecem as gravações de áudio, as orquestras ficaram com os dias contados?Estávamos no casino da Figueira da Foz e não fazíamos nada. Às vezes lá acompanhava uma fadista. Saturei-me de não trabalhar e disse à administração que me ia embora por seis meses. Fizeram um jantar e deram-me uma medalha, mas já lá não apareci ao fim dos tais seis meses. Vim para Pernes e montei uma escola de música. Só voltei nos anos 90. Como é que funcionava a escola?Não havia prazos. Demorasse o tempo que demorasse, tinham que sair a saber música. Passaram pelas minhas mãos mais de 400 alunos. Uma aluna que tive foi fazer exame ao conservatório e teve 19 valores, numa escala de zero a 20. Não era pessoa de estar sempre a fazer o mesmo…Pois. Nunca gostei de estar sempre a fazer o mesmo. Também me cansei da escola. Os meninos chegavam a casa e diziam aos pais que eu ralhava muito. Para aquelas pessoas que eram musicalmente analfabetas eu era uma besta. Mas só era um bocadinho exigente e era amigo deles. E quem fazia as queixinhas eram os que não prestavam ou não queriam aprender e faziam isso para ver se os pais os tiravam da escola. Então e o que foi fazer?Formei uma filarmónica que não tinha presidente nem tesoureiro nem nada. Era só eu. Chamava-se Banda do Centro de Iniciação Musical Pernense. Existiu durante três anos. Fiz também uma orquestra juvenil e outra infantil que correram o país. Foi dos trabalhos mais importantes que fiz. Mas acabou porque os alunos mais velhos foram para a universidade e não vinham aos ensaios.“Ninguém é profeta na sua terra”Quando se reformou acabou com a música na sua vida?Não! Depois dos 65 anos dediquei-me a escrever músicas. Algumas para a banda da GNR. Ainda há pouco tempo escrevi um concerto de clarinete que estreou no Casino da Figueira. Agora acho que não faço mais nada. Mas já dizia isso no ano passado. Tudo depende da cabeça e da disposição. Continuam a surgir-lhe músicas na cabeça?Não sei bem o que é a inspiração. Às vezes sento-me à secretária, agarro da caneta e a música sai. Onde estão as suas composições…Estão dentro de uma caixa de cartão e atingem quase um metro de altura. Quando é que surge a Orquestra Santos Rosa?Foi em 1992. Tinham-me convidado para ir dirigir a banda do Cartaxo e tive a ideia de fazer a mesma orquestra que tinha no Casino da Figueira, mas só com músicos ribatejanos. A estreia foi no primeiro encontro dos pernenses no Mouchão Parque. Uns anos depois comecei a sentir vertigens, tinha que me apoiar e já só dirigia com uma mão. Por isso abandonei. Não tive pena porque a orquestra continua, com a mesma ou mais força, dirigida pelo meu filho Pedro. Para se fazer o que o senhor fez ao longo da vida é preciso muita vocação ou muito trabalho?Essencialmente muita vocação. Porque sem vocação pode-se trabalhar muito que acaba por se ser toda a vida mau músico. Imagina-se a viver sem música?Não! A primeira coisa que faço quando me deito à noite é ligar o rádio, mesmo que esteja com dores de cabeça, e adormeço com ele a tocar.O que acha da música moderna?Melodicamente estão a aproveitar aquilo que noutros tempos os compositores deitavam para o lixo. A música devia ser sempre bonita e às vezes não é. Às vezes são coisas em que não chegamos a perceber a ideia de quem as faz. Embora existam alguns que mantêm a qualidade.Como por exemplo?O Rui Veloso. É uma pessoa coerente.Viveu no tempo do surgimento do rock and roll e de grupos como os Beatles e os Rolling Stones. Nessa altura o que pensava deles?Quando apareceram os Beatles andávamos na era dos acordes dissonantes, trompetadas horríveis. Eles recuaram no tempo musical 300 anos. A princípio achei que eles representavam a demagogia. Mas depois percebi que eles tinham razão, que eles é que eram espertos. Comecei a adorá-los.Ser músico dava-lhe um estatuto social diferente?Ninguém é profeta na sua terra. Na Figueira da Foz sou uma pessoa querida. No casino fizeram uma galeria onde colocaram as fotografias dos maiores artistas que por lá passaram. Meteram-me ao lado da Amália Rodrigues. Veja bem a consideração. Na Assembleia Figueirense, uma casa da fina-flor, existe uma placa de homenagem a Santos Rosa. Na Figueira ou em Lisboa sinto-me vaidoso em ser músico.E em Pernes?Sou igual ao varredor das ruas. Talvez esse até tenha mais importância para as pessoas, porque limpa o que elas sujam. Quando morrer se calhar até dizem bem de mim. Mas em Santarém não é assim…Porque não sou de lá. A câmara já me atribuiu a distinção de escalabitano ilustre e no Cartaxo também já me fizeram uma homenagem. Nota-se uma mágoa em relação à sua terra.Também não gosto que me façam alguma coisa em Pernes. É uma terra dividida, politizada. Continua a haver uma separação entre quem era da banda da Música Velha e quem era da Música Nova. Sente orgulho em ouvir músicas suas tocadas por outros?Fico sempre triste a ouvir uma orquestra dirigida por outra pessoa a tocar uma música minha. Ninguém é capaz de interpretar a música que outro fez. Há sempre um pormenor que escapa, uma maneira diferente de fazer as coisas. Cada um sente à sua maneira.
O maestro autodidacta que não gosta de compor para os outros

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