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O Cornetim que o coração não deixou ser Toureiro

José Henriques tem lugar cativo na praça de Vila Franca de Xira há 10 anos

É José Henriques que faz soar o cornetim nas corridas de toiros da Palha Blanco, em Vila Franca de Xira. Um profissional dos seguros que queria ser toureiro e que o coração não permitiu.

Quem nunca reparou no homem de luvas brancas que toca cornetim na praça de touros? Há dez anos que José Henriques brilha na Palha Blanco, em Vila Franca de Xira, mas no Campo Pequeno, em Lisboa, o público já o conhece há 38. É Cornetim. Assim ditou uma enorme paixão à festa brava desde tenra idade. O sonho inicial era ser toureiro, mas o coração de José Henriques não permitiu.A ambição não era ficar no lugar reservado, junto ao director de corrida, à espera de sinal para efectuar os toques tradicionais e assinalar as mudanças de tércio, mas ir para a arena. “O meu sonho era ser toureiro. Ainda tentei, mas reconheço que me faltava aquilo que eles têm: um grande coração, a coragem”, confessa. “O toureiro tem medo como os outros, mas consegue vencê-lo”.Quando percebeu que ser toureiro não era o seu destino agarrou-se com garra à possibilidade de aprender música com o pai – o seu mestre. “Era a única forma que tinha de estar na festa. Lá me mantenho e não me quero reformar”. José Henriques é cornetim efectivo na Palha Blanco há dez anos. Em Vila Franca de Xira veio substituir Jorge Pereira, conhecido como “Cavaladas” por alcunha, acometido de uma doença grave. “Uma vez encontrou-se comigo num corredor e disse-me que estava muito contente por ter sido eu a substitui-lo. Foram palavras bonitas de que nunca me hei-de esquecer”.Nos finais dos anos 60 chegou a fazer corridas esporádicas em Vila Franca de Xira como cornetim. Substituía o pai que trabalhava para a empresa Nuno Salvação Barreto que geria a Palha Blanco. Até que em 1971 ocupou a vaga de cornetim no Campo Pequeno.Gosta de todas as praças por onde passa, mas confessa ter uma predilecção por três. Vila Franca de Xira é uma delas. “A Palha Blanco é uma praça pequena em capacidade, mas grande em arquitectura. E depois tem tudo o que diz respeito a toiros. Três estátuas na cidade alusivas à festa, duas feiras, as melhores lezírias de Portugal, cavalos, toiros, campinos, toureiros e forcados”, enumera.Os tempos áureos de José Júlio, Mário Coelho e do malogrado José Falcão dão outro carisma a uma Vila Franca de Xira com história. “Até grandes toureiros que não são de cá adoptaram Vila Franca como sua terra adoptiva. O caso do maestro Victor Mendes e do saudoso José Mestre Baptista. Até os seus restos repousam no cemitério de Vila Franca de Xira”. José Henriques foi funcionário de uma empresa de seguros e durante 30 anos bombeiro voluntário em Lisboa, onde viveu. A reforma deixou-lhe mais tempo para participar nas corridas. Abdicou de muito pela paixão à festa. Durante anos não soube o que era ter férias, fins-de-semana e chegou a trabalhar de dia e acompanhar corridas à noite. “A minha mulher e os meus filhos foram as pessoas que sofreram mais com a minha paixão”.Já reformado, deixou Lisboa e foi para Vila Franca do Rosário. É remunerado pelas despesas, mas não fosse a paixão, não conseguiria viver da festa. Conhece toureiros, forcados, empresários e apoderados. Estar familiarizado com o ambiente tauromáquico também lhe alimenta a alma.Por norma usa casaco, gravata e luvas brancas. “Não devemos tocar em mangas de camisa por respeito ao público e ao espectáculo”. As luvas servem o cerimonial, mas são usadas também por questões práticas: “O instrumento é poupado ao suor das mãos e tira melhor som”.É um homem dos sete instrumentos – tem duas trompetes, um feliscorne, três cornetins e uma trompete de bolso – mas há três que têm lugar cativo. O cornetim, mais do que a trompete de sonoridade doce, é apropriado à corrida de toiros. O maior medo é a desafinação. “Temos sempre medo de falhar o lábio”, admite.A mágoa de ver uma praça meio cheiaO cornetim efectivo da Palha Blanco tem pena que a praça de Vila Franca de Xira não tenha a afluência que merece. José Henriques reconhece que o público da terra é entendido em toiros e por isso lamenta a fraca afluência. “Vejo às vezes pessoas de Vila Franca em praças de outras terras e não os vejo em Vila Franca. A praça não é assim tão grande que não encha com facilidade”, espanta-se. Os empresários que têm passado pela Palha Blanco empenham-se em realizar bons espectáculos. Caso de António Cardoso (Nené) e agora de Ricardo Levesinho que já deu provas daquilo que é capaz de fazer. “Um homem novo, dinâmico, vila-franquense e que não vive dos toiros, mas do gosto de engrandecer a terra. A moldura humana dentro da praça será o melhor reconhecimento que poderá sentir”, descreve. José Henriques deixa um apelo: “Vila Franca não se deixe ultrapassar por outras terras que são aficcionadas, mas não têm o carisma e a herança de Vila Franca”.Os toques tradicionaisO toque de cornetim que soa para o toureio à portuguesa é diferente do toque para o toureio à espanhola. “O toque à espanhola é específico para o toureio a pé. É um toque bonito, prolongado”. Depois há toques para mudanças de tércio. O matador muda de capote para bandarilhas e de bandarilhas para muleta. Para o toureio a cavalo os toques são outros. “Quando o toiro sai para ser lidado por um cavaleiro ouve-se um toque à portuguesa. Não há mudanças de tércio, há avisos para o toureiro controlar o tempo perante a lide. Aos 10 minutos leva o primeiro aviso, dois minutos depois o segundo e um minuto depois soa o toque de fim de lide”, exemplifica.Os toques do cornetim, indicados pelo director de corrida, servem para orientar o toureiro que perde a noção do tempo durante a lide. “Nós servimos de despertador”, ironiza.Para a pega ouve-se um toque diferente e mais conhecido do público. Os forcados saltam a trincheira para executar a pega de caras. No fim da lide, quer a pé quer a cavalo, surge a vez do toque para os cabrestos ajudarem na recolha do toiro. O que os olhos vêem o coração também senteA colhida de Pitó - o forcado que morreu na praça de Arruda dos Vinhos a defender as cores da cidade de Vila Franca de Xira - ficará para sempre na memória do cornetim José Henriques. “Eu estava lá. Possivelmente a última coisa que ele ouviu foi o meu toque. Saltou para a morte. Segundos depois o toiro deu cabo dele”, descreve.A carreira de cornetim de José Henriques, que começou há 43 anos na Praça de Toiros de Cascais, também conhece situações felizes. “Quando um forcado se despede é um momento de alegria. Especialmente quando a pega sai extraordinária. Triste é quando é colhido”.

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