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“Do ponto de vista cultural Vila Franca de Xira é completamente inexistente”

“Do ponto de vista cultural Vila Franca de Xira é completamente inexistente”

João Santos Lopes é actor, encenador, dramaturgo e já venceu prémios nacionais

No ano em que o grupo de teatro “Esteiros”, de Alhandra, comemora 35 anos, João Santos Lopes prepara-se para receber pela terceira vez o prémio do concurso nacional INATEL/Teatro Novos Textos. Em entrevista a O MIRANTE o actor, encenador e dramaturgo faz duras criticas à política cultural do concelho de Vila Franca de Xira e acusa a autarquia de querer “asfixiar” os grupos amadores. Considera o museu do neo-realismo um “elefante branco” e lamenta a falta de visibilidade dos dramaturgos portugueses, recusando “vender-se”.

Qual é a situação dos grupos de teatro amadores?O teatro sempre passou por dificuldades. Vive de subsídios, de mecenas ou de entidades que o podem financiar porque é uma arte que não dá lucro e muitas vezes dá prejuízo. Hoje vivemos no mundo da imagem rápida e fragmentada. Apesar das transformações e de já haver projectos teatrais de multimédia o teatro continua agarrado às suas fórmulas mais tradicionais e clássicas. Vai sendo uma arte resistente.Que tem vindo a perder apoios gradualmente…Na minha opinião pessoal – não a do grupo de teatro “Esteiros” – torna-se óbvio que o projecto de fundo da autarquia de Vila Franca de Xira é o de progressivamente conduzir à asfixia os grupos amadores ou de pelo menos libertar-se da responsabilidade de os subsidiar, canalizando todo o investimento para um projecto profissional do senhor Lyra Leite e da companhia Inestética.Como é que os grupos podem responder?Só com trabalho. Produzindo e apresentando mais espectáculos para provarem que estão vivos e não ficarem numa postura de lamentação permanente, encostados à espera que a autarquia lhes garanta tudo. Tirando a tauromaquia, do ponto de vista cultural, Vila Franca de Xira é completamente inexistente. Esta câmara tem uma visão acéfala da cultura. Não é importante para eles e sempre foi o parente pobre.Porque diz isso?O concelho regrediu ao nível cultural. Acabaram com os festivais de teatro que se realizavam com alguma regularidade, organizados pela autarquia e com o apoio dos grupos. Os intercâmbios internacionais desportivos que punham a cidade no mapa internacional também deixaram de se fazer. Os grupos de teatro não estão sob a tutela da cultura, mas sim do associativismo, onde cabe tudo. Desde associações de caçadores e pescadores passando pela columbofilia até aos grupos de teatro.Já expôs o seu ponto de vista?Em várias reuniões. Remetem sempre para a questão da crise e o facto de atravessarmos um período de contenção. Mas as verbas canalizadas para o teatro amador são gotas de água no orçamento da autarquia. Isto tem tudo a ver com a falta de uma política cultural e efectivaO que acha que a autarquia podia fazer?Dizer claramente se tem ou não um projecto para a cultura. Se é ou não importante. A autarquia tem a legitimidade de definir prioridades mas também tem de ter a coragem de as assumir. Se há outras prioridades e se não se pode investir na cultura, tudo bem. Mas então que assumam isso de uma forma séria, frontal e clara. A cultura vive das conjunturas de abundância e dificilmente o novo elenco camarário irá mudar de política. Mas exigem mais dinheiro?O grupo de teatro “Esteiros” não precisa de mais dinheiro directamente. Precisa é de fazer mais espectáculos solicitados pela câmara, que não pede nenhuns. Limita-se a receber pedidos das colectividades.Não incentiva?Não há um estímulo da parte da autarquia de tentar dinamizar projectos de cariz cultural. São apenas receptores de pedidos externos. Quando estreiamos uma peça nova somos nós que fazemos os contactos com as colectividades que normalmente já nos conhecem e pedem sempre espectáculos. Se estivéssemos à espera que o pelouro que tutela o teatro nos arranjasse espectáculos não fazíamos um.Perante esse cenário onde vai buscar a motivação?O teatro é das formas de arte que trata das grandes questões da condição humana. Se juntarmos a isso o manancial literário riquíssimo que existe em termos teatrais, a capacidade de podermos representar personagens que não somos nós próprios e a possibilidade de partilharmos a relação única que há entre actor e público, o teatro torna-se uma arte mágica e única. É isso que faz com que muita gente que passa pelo teatro e que muitas das vezes tem problemas na vida pessoal não consiga viver sem ele. Provavelmente só lhe vai trazer problemas e angústias e, nos amadores, ainda mais. É um vício?Os vícios são todos negativos. Acima de tudo é uma necessidade extrema. Como comer, beber ou respirar. Precisamos de fazer teatro para nos sentirmos vivos.E abdicam da vida pessoal?Tem que se gerir com muito cuidado a vida pessoal e familiar. Os grupos de amadores são para solitários, divorciados, gente com dificuldade de relacionamento social e de conciliação na sua vida familiar. Quem anda no teatro há muitos anos e se dedica de uma forma apaixonada tem de descurar algumas áreas da sua vida pessoal.Considera-se um solitário?Sim. Não tenho relacionamentos sentimentais porque desapareciam rapidamente. Ninguém tem muita disposição para aturar alguém que passa a vida, os dias e as horas a pensar em textos de teatro, encenações, assistir a peças e a procurar soluções técnicas para problemas numa montagem. Isto é incompatível, na maior parte das vezes, com uma vida familiar estável. Tive de abdicar de outras coisas para me dedicar ao teatro.Seria impossível viver só do teatro?No teatro profissional não conheço ninguém que viva só do teatro. Nos amadores nem vale a pena falar nisso. É impossível. Recebo 240 euros mensais por ser o encenador do grupo de teatro pago pela Sociedade Euterpe Alhandrense que sempre nos apoiou. Não dá para viver só daquilo e tenho de ter sempre outros trabalhos. Qual é o maior desafio de um encenador?É pegar nas partes de um puzzle que é uma peça de teatro e conseguir conciliar todas as personagens dentro de uma visão global e de conjunto conseguindo criar um espectáculo em todas as suas vertentes. Tirando o máximo dos actores dando-lhes a liberdade de mostrarem as suas capacidades, respeitando-os, para depois ir esculpindo o seu talento. O encenador é um escultor que também tem de saber gerir alguns egos pois há jovens que chegam com tiques de vedeta e nada fizeram até essa altura.“Não vou para a cama com ninguém nem me vendo”Há muita gente a escrever para teatro?Sim. Nos concursos nacionais de textos para teatro, como o INATEL/Teatro Novos Textos, Sociedade Portuguesa de Autores/Novo Grupo ou o Bernardo Santareno participam centenas de obras. O problema é que em Portugal não se representam dramaturgos portugueses. Não há visibilidade nenhuma. A não ser aqueles, que designo de dramaturgos do “regime vigente” que são o Vieira Mendes e o Jacinto Lucas Pires. Têm muito talento, respeito-os mas são eles que fazem as peças quase todas.Quer dizer que há lobbies?O dramaturgo vê as suas peças levadas à cena se tiver próximo de um grupo, de alguém conhecido ou amigo, que tenha essa capacidade de produzir uma peça. Escrevemos para concursos, para guardar, dar aos amigos ou para pequenos grupos amadores representarem. Em Espanha faz-se muito teatro espanhol. Cá desprezamos o teatro português. Não é rentável, mediático e não dá prestígio. Espero que quando for receber o terceiro prémio do INATEL, o actual presidente da fundação não me diga `vamos fazer a sua peça´. Se o disser sei que não vai ser feito. Porquê?Das outras duas vezes foram presidentes diferentes, ambos disseram o mesmo e não cumpriram. O que me deixa mais tocado é que uma vez um texto que ficou em terceiro esteve em cena no teatro do INATEL e o meu que ganhou não teve esse direito. O encenador era amigo de quem ficou em terceiro lugar. É preciso estar encostado a alguém influente. Não é só o nosso talento que garante a abertura de portas. Recusa-se a fazer esse papel?Não é o meu temperamento nem a minha forma de estar. Acredito que se ganhei alguns prémios parto do princípio que tenho algum talento e que alguém é capaz de pegar nos meus textos. Não me colo nem vou para a cama com ninguém. Não me vendo nesse aspecto.Essa é uma crítica um pouco forte…É a realidade. Não podemos ser ingénuos. Muitas coisas que se conseguem é porque se conhece patronos, amigos poderosos, pessoas que estão nos sítios certos e temos que andar colados a eles. Não faço isso. Não tenho que andar a insinuar-me, a vender-me ou a oferecer-me como muita gente faz, só para ter oportunidades. Não julgo ninguém mas prefiro fazer o meu trabalho e espero que as pessoas estejam atentas. Vivo mais tranquilo com a minha consciência assim. Sente-se injustiçado?Não. Já tive a felicidade de ver um texto meu no Teatro Aberto que foi um sucesso. Também já tive peças minhas na Alemanha, França, Polónia, Luxemburgo e Espanha. Muitos que andam a escrever e amam o teatro não conseguem ter essa pequena visibilidade. Obviamente que gostava que mais textos meus fossem levados à cena em bons espaços e boas companhias.Há bons dramaturgos portugueses? Há muita gente boa a escrever para teatro. Diz-se que temos bons poetas mas que parece que não sabemos escrever para teatro. Não concordo. Só se diz isso porque não se mostram os seus trabalhos e não se dá visibilidade aos dramaturgos portugueses.“Os políticos são analfabetos”Costuma ir ao museu do neo-realismo?Nunca lá entrei. Recebemos semanalmente informação sobre a programação. São essencialmente exposições pictóricas, artes plásticas e alguns colóquios que se fazem num pequeno palco. Nem sequer tem um auditório e eu sou um homem do espectáculo e não de museus. Ver obras que representam autores mortos não me cativa. Esses espaços têm de ser vivos, vividos e fruídos senão tornam-se mortos. É mais um elefante branco que está ali.Não tem curiosidade em visitar?Enquanto estiver assim não. Uma vez telefonei para lá a oferecer um espectáculo e a resposta é que não se podia fazer pois não tem condições. O neo-realismo tem muita obra teatral. Desde Bernardo Santareno, Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Raul Brandão ou Luís Francisco Rebelo. Acho um absurdo, inaceitável e até vergonhoso um espaço daqueles não ter condições para se fazerem espectáculos de autores neo-realistas, tendo em conta o legado teatral, literário e musical que o neo-realismo deixou nesta região. Como é que se investe milhões num museu e depois ignora-se esse lado? É um contra-senso absoluto mas não me surpreende.Como assim?Os investimentos nas infra-estruturas são feitos pela metade. A parte da realização de espectáculos é sempre esquecida. Acho mais grave por ser o museu neo-realismo. Pelo peso institucional que o nome acarreta. Comemoram-se efemérides de gente morta quando se deviam fazer espectáculos de gente morta, mostrando que as suas obras estão vivas e são importantes. Não me identifico nem bebo da corrente neo-realista, mas é incontornável enquanto referência literária, cultural e artística do nosso concelho.Mas concorda com a construção do museu do neo-realismo?Estes equipamentos são todos importantes e fazem todo o sentido se forem devidamente dinamizados. Se assim não for é que é uma pura perda de dinheiro. Outro caso é o Centro Cultural do Bom Sucesso (Alverca). Fez-se uma obra daquelas, com um palco daquela dimensão mas não tem teias, panejamento nem nenhum equipamento para se fazer um espectáculo. A não ser que se leve lá um rancho folclórico.O que tem falhado então?Os políticos são analfabetos do ponto de vista cultural. É um drama. Não têm nenhuma percepção das necessidades dos espectáculos culturais. Os arquitectos pensam no espaço apenas num sentido estético e funcional mas descuram as infra-estruturas básicas que na realização de espectáculos são fundamentais. Quem pensa num edifício para espectáculos tem de saber o que está a fazer e criar as condições necessárias.Justifica-se um investimento de mais de dois milhões de euros à porta de Lisboa?Esta é uma zona profundamente carenciada de iniciativas culturais. A pessoa que está à frente do Centro Cultural do Bom Sucesso tem limitações e tenta dinamizar o melhor que pode o espaço. Foi inaugurado em Abril e está a dar os primeiros passos. Entramos e vemos um palco magnífico. Depois é o vazio. Não tem mais nada. Falta acabar as infra-estruturas necessárias para que se produzam espectáculos com qualidade. Mas enquanto isso não for feito o retorno é pouco para a lógica do investimento feito.Mas até agora não foi feito…Nem será tão cedo. Se for através das verbas que o centro, por iniciativa própria consiga gerar através de iniciativas que vá fazendo, será muito difícil garantir meios financeiros para investir na construção das infra-estruturas. Tem de haver um investimento complementar da autarquia já que aceitou aquele projecto arquitectónico daquela forma.Um homem do teatro que começou nos “Esteiros”João Santos Lopes tem 49 anos, é de Alhandra e há 27 que faz parte do grupo de teatro amador “Esteiros” da Sociedade Euterpe Alhandrense (SEA). Desde muito novo que se sentiu atraído pela arte de representar, influenciado pelas noites de teatro que passavam na televisão. Começou por fazer pequenas figurações em peças juvenis e foi evoluindo como actor. Diz-se um homem do teatro e há seis anos que é encenador do grupo, sucedendo a Mário Rui Gonçalves e assumindo uma linha de continuidade. Nunca teve formação teatral e no ano passado resolveu fazer um curso de iniciação teatral livre. Defende que o teatro amador tem de procurar a formação para poder dar um salto em frente.Fundado em 1974, o grupo de teatro “Esteiros” comemora este ano 35 anos de existência. Ao longo de três décadas e meia já foram muitos os actores que passaram pelo grupo. João Santos Lopes destaca Albano Jerónimo com quem contracenou na peça “O corvo”, escrita por si. “É um talento inato que espero que não se cristalize com os registos televisivos das novelas pois é um grande actor de teatro”, garante o encenador. Maria João Luís, há décadas, e mais recentemente Gonçalo Portela passaram também pelos palcos do grupo de Alhandra. Actualmente o grupo “Esteiros” tem doze actores e a peça “O pai” em exibição desde Abril. Em cima foto alusiva à peça.Vencedor de quatro prémios nacionais de dramaturgiaPara além de actor e encenador, João Santos Lopes escreve textos para teatro. A inspiração diz que a vai buscar às vivências do quotidiano. O dramaturgo irá receber em Dezembro, pela terceira vez, o grande prémio do concurso INATEL/Teatro Novos Textos que visa estimular novos autores para a escrita de textos originais em língua portuguesa promovendo e divulgando novos valores literários na área do teatro.“Ordem” é o nome da obra vencedora que remete para uma reflexão sobre o estado da justiça dos nossos dias. “É um texto actual mas comecei a escrevê-lo em 1999”, conta o dramaturgo que não esperava vencer o concurso deste ano.Mas foi em 1997 que João Santos Lopes venceu o seu primeiro prémio no concurso da Sociedade Portuguesa de Autores/Novo Grupo com a obra “Às vezes neva em Abril”. Um texto sobre o efeito da descolonização nos filhos dos que fizeram a guerra.Em 2002 ganhou pela primeira vez o prémio do INATEL com o texto “Natureza Morta” que trata de vários monólogos entre quatro personagens dentro de uma galeria de arte. Três tinham Sida mas não sabiam.O segundo prémio do INATEL arrecadou-o em 2005 com “Insónia”. Uma reflexão sobre a ganância e a fama a todo o custo. Para o dramaturgo escrever é uma necessidade e já tem mais duas peças em perspectiva. O dinheiro dos prémios “dá jeito” mas o que João Santos Lopes mais desejava era ver os seus textos em cena.
“Do ponto de vista cultural Vila Franca de Xira é completamente inexistente”

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