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Quanto custa um caixão para uma mulher assassinada

Quanto custa um caixão para uma mulher assassinada

Lúcia Sigalho inspirou-se numa notícia e levou o tema da violência doméstica ao palco

A notícia sobre uma mulher assassinada pelo ex-companheiro à porta do local de trabalho foi o ponto de partida para uma peça de teatro. Lúcia Sigalho, uma encenadora com raízes ribatejanas, chamou-lhe: “E a mulher teve morte quase instantânea”. Uma alusão aos comentários que surgem quanto a morte não tem justificação. Não são os polícias, as assistentes sociais ou juízes que resgatam as mulheres à tragédia, defende a encenadora. “Todos somos cúmplices destas mortes”.Ana Santiago

Leu no jornal O MIRANTE a notícia sobre uma mulher assassinada à porta do local de trabalho, no Vale de Santarém, em 2008, pelo ex-companheiro. E daí nasceu uma peça de teatro. Uma pessoa minimamente informada sabe que isto acontece. As organizações não governamentais divulgam dados com base nas notícias. A ideia surgiu-me quando estava a preparar um projecto novo. Encontrei um intérprete com um sentido trágico muito grande, que é o transformista Fernando Santos. Queria muito fazer um trabalho com ele sobre as questões do género. Pensei que isto não tivesse muito a ver, mas tem. Um homem quer transformar-se em mulher e nessa transformação transmite uma tragédia que é para lá daquilo que consigo perceber. Decidi falar sobre esta tragédia. A notícia foi o ponto de partida.Impressionou-me muito a maneira como aconteceu esta morte. O sítio, as circunstâncias. Ter o filho pela mão. Uma vida desfeita. Depois acabei por ouvir uma declaração do Francisco Moita Flores [presidente da Câmara de Santarém] que, para explicar que provavelmente ela não deveria ter sofrido, disse: ‘a mulher deve ter tido morte quase instantânea’. É uma linguagem de grande frieza, como a linguagem das autópsias. Pensei, pois, deve ter tido morte instantânea, mas quem era a mulher? De que cor eram os olhos dela? Este assunto faz-me imensa tristeza...E comove-se de cada vez que fala disso.Faz-me tristeza porque acho que é uma doença do nosso tempo. É um sítio de muita dor e sofrimento. Acho que nós todos – comunidade – estamos envolvidos. Resulta da nossa grande indiferença. Da tentação de acharmos que a dor do outro é para ser tratada por instituições especializadas e que quem sofre não é uma pessoa inteira. Quem está em aflição é tratado com um certo paternalismo para não dizer desprezo. Ninguém quer olhar para isto e perceber que isto acontece em todas as classes sociais. Também há mulheres que maltratam os seus namorados, mas a percentagem não nos deixa muita margem para a paridade. Porque é que isto continua a acontecer?Temos alguns dos melhores especialistas focados no assunto. Os estudos dizem que estes casos não caem do céu aos trambolhões. Normalmente correspondem a um historial de maus-tratos anterior que não é valorizado e que é tratado pela rede de suporte daquelas mulheres como um falhanço delas. Não é valorizado por elas que não querem dar-se por vítimas e não é valorizado pelas pessoas à volta porque acham que é falta de capacidade delas de gerir uma relação. Tem a ver também com padrões pré-estabelecidos sobre qual é o papel da mulher e do homem. Há tempos houve um assalto a uma ourivesaria no centro de Santarém. As pessoas ficam alarmadas. Veja agora a reacção quando um homem dá um tiro na mulher. A comunidade retrai-se. O que me faz muita confusão é que esse silêncio significa coisas muito más.O que significa?Significa que as pessoas vivem sozinhas. Significa um grande egoísmo. No limite significa: ‘morreu, devia ser estúpida. O quê? Era achincalhada e continuava em casa?’ Quando fiz este texto, que não se refere objectivamente a ninguém, perguntaram-me se me tinha pesquisado em aldeias. Não! Esse preconceito existe e é transversal. Da mesma maneira que a violência de género existe e é transversal. Ao contrário daquilo que gostaríamos de pensar não acontece só em meios desfavorecidos. São mulheres de todas as idades e de todas as profissões. Encontro preconceito em elites esclarecidas. Por vezes tão ou mais preconceituosas.E por parte de homens e mulheres.Para uma mulher talvez seja ainda mais difícil olhar para isto. Passaram 35 anos do 25 de Abril. As mulheres cresceram na ideia de que somos todos iguais, mas na morte não. Em 100 mortos, 97 são mulheres. É sinal de uma coisa perigosíssima. As mulheres estigmatizam com muita mais força que os homens outras mulheres que vivam esta situação. Tem a ver com a dificuldade em nos reconhecermos uns nos outros. Como é que este problema se pode resolver?Não sei… Há pessoas mais habilitadas do que eu para falar sobre este assunto. A única coisa que fiz com este espectáculo foi tentar ser séria. Não vampirizar um problema real. As mortas estão mortas. A família das mortas está cá. Tem a sua dor. As casas abrigo estão cheias. E depois não é só a violência que sofrem quando estão a ser ameaçadas. É o resto da violência. Têm elas que sair de casa e esconder-se.É um problema do sistema.O sistema somos nós. Se calhar não há uma avaliação do perigo. A mulher que morreu na pastelaria de Santarém já tinha apresentado queixa.O que os especialistas dizem é que as mortes, muitas vezes, sucedem-se a queixas. Quando a pessoa engole a vergonha e vai à polícia dizer que foi ameaçada de morte é porque acredita que a vão ajudar. Normalmente a única coisa que se faz é registar a queixa.Como é que isto se resolve? Não sei se se resolve de um dia para o outro porque implica com coisas profundas. Tem que ver com coisas que não estão tratadas, com a solidão em que as pessoas vivem. Os casais ficam sozinhos. Um suporte à volta faz muita falta.Defende que todos somos cúmplices da morte destas mulheres.Somos cúmplices da morte destas mulheres e somos cúmplices dos maus-tratos que mesmo agora estão a ser feitos. Não adianta culpar o sistema e a polícia. O que se sabe é que a maior parte das vítimas aguentam anos e anos de maus-tratos. Em silêncio. Desabafam de vez em quando com pessoas do seu círculo muito próximo. Pessoas essas que as mandam para trás. ‘Trata lá disso. Filha aguenta’. Às vezes são as mães, as irmãs e as melhores amigas. Tantas vezes que os familiares se põe do lado dos agressores. É mais confortável achar que a vítima é uma pervertida e maquiavélica. A mentira é uma fabricação. Uma coisa cheia de lógica. A verdade tem sempre elementos que nos apanham.Que solução existe?Devíamos levantar-nos e dizer: isto tem que parar. E na nossa vida, quando estivermos perante uma situação destas, não podemos ficar cheios de pudor e achar que as pessoas que são vítimas não são dignas de confiança. Não podemos estar à espera que venha a polícia, a segurança social e o juiz. Temos que ajudar. Os vizinhos e as pessoas no trabalho. Não é um batalhão de assistentes sociais que vai entrar pela casa. Não precisamos de ser médicos, nem assistentes sociais nem trabalhar em ONG’s. Temos de ser responsáveis. O silêncio é mais uma arma apontada às vítimas.O que mais a chocou nestas histórias?Que o lugar do amor seja o campo desta tragédia. E depois há uma tentação mortal de nos defendermos de tudo o que seja sofrimento atribuindo-lhes outras causas. ‘Que mulheres são estas?’, perguntamos. É cruel, ainda que inconsciente. É monstruoso olhar para uma morta e pensar: ‘devia ser parva’. É de uma monstruosidade maior do que lhe dar as 25 facadas.A secretária de Sophia de Mello BreynerE aos 12 anos a menina que nasceu em Moçambique veio morar para Santarém. Cruzou-se pela primeira vez com a luz da cidade, apaixonou-se pela lezíria e pela gente “de espinha direita”. O filho da encenadora também se deixou encantar e por isso, há três anos e meio, que Lúcia Sigalho se divide entre a Rua das Portas do Sol, “o sítio mais lindo para morar”, e o trabalho da companhia Sensurrond que dirige em Lisboa. Sorri quando ouve chamar centro histórico à cidade plantada lá no alto. Dos bairros que cresceram na encosta conhece pouco. Não sabe se os cafés estão abertos na sua rua. Interessa-lhe apenas a paisagem. A menina, estudante do Liceu Sá da Bandeira, foi completar o curso de Direito em Lisboa, mas não chegou a exercer. De Santarém levou memórias de tempos vividos numa cidade onde se andava a pé e a pé se chegava a todo o lado. Ia a correr para as Caneiras. Lúcia e as colegas de liceu. As mesmas a que se juntava para ir todas as semanas, mais do que uma vez, à biblioteca municipal. Um dos seus sítios preferidos no mundo. “Faz-me impressão que a biblioteca esteja hoje às moscas. Foi fundamental para o meu crescimento”, confidencia aos 45 anos Lúcia Sigalho, com uma acentuada pronúncia de lisboeta. O senhor Bertino ajudava as meninas com os livros naquele sítio cheio de magia e liberdade. Quando não podiam requisitá-los sentavam-se na sala de leitura a cheirar a casa-museu com pinturas e móveis de colecção. Nunca esquecerá o professor de português, de matemática e história. Mais tarde chegou de Paris a professora de jornalismo. “Trazia uma capa. Essa então foi a revolução”. Foi jornalista, fez teatro, cinema e foi secretária da Sophia de Mello Breyner Andresen. “A Sophia disse-me. ‘A menina agora que está a fazer teatro vai precisar de umas massas’. E foi maravilhoso”. Lúcia Sigalho adoraria trabalhar em Santarém, mas sente que a carência já é grande para os que cá estão. “A não ser que Santarém chame pelo meu trabalho”, ressalva.“É uma loucura deitar o Rosa Damasceno fora”Lúcia Sigalho diz que Santarém ficou mal servida de espaços culturaisA reposição da peça “E a mulher teve morte quase instantânea” não está ainda prevista, mas já deixou claro que o Teatro Sá da Bandeira, em Santarém, não é o espaço ideal. O espectáculo faz-se mais facilmente numa sala do que num teatro com um palco muito pequenino. O espectáculo convoca essa sensação de comunidade. Faz sentido gastar-se tanto dinheiro na recuperação de teatros e centros culturais para que depois não sirvam para a apresentação de espectáculos?Acho muito bem que se tenham recuperado teatros pelo país todo. No geral foi um esforço louvável e útil e há pessoas a trabalhar nesses teatros com imenso mérito, mas acho que em alguns casos não percebemos bem a dimensão das coisas. Não vale a pena recuperar um teatro se depois não tem condições. Acho um disparate o que aconteceu ao Teatro Rosa Damasceno. Um grande teatro. Uma sala grande com uma história incrível de apresentações de espectáculos ainda que as pessoas só se lembrem do cinema. Uma pérola da “Art déco” portuguesa. Oiço argumentos como o de não ter sítio para estacionar. Como se em algum teatro europeu no centro histórico de alguma cidade europeia, seja Lisboa, Bruxelas ou Milão, tivesse sítio para estacionar. Como se isso fosse impeditivo das pessoas lá irem. Não percebo o que vai na cabeça das pessoas quando entre o Sá da Bandeira e o Rosa Damasceno escolhem o primeiro.Defenderia o contrário?Se tivesse uma palavra a dizer sim. Não percebo porque é que tiveram que fazer uma opção. Os pólos de dinamização cultural mais importantes a nível europeu estão fora das capitais. Santarém tinha condições para ter uma companhia de teatro residente com as pessoas a trabalhar e a viver cá. Como acontece em Montemor-o-Novo. É falta de ter acesso à informação certa no momento certo. Um palco como o do Teatro Sá da Bandeira tem muitas limitações embora seja uma sala agradável. É uma falta de ambição muito grande. É achar que não há mais de 200 espectadores para ver determinado espectáculo quando há. Uma companhia de dança não cabe no palco. Para isso seria sempre o Rosa Damasceno. Mesmo trazer uma peça de uma companhia mais pequena é complicado. É falsa a ideia de que as pessoas agarram no carro e vão a Lisboa ver um espectáculo. Entretanto o Rosa Damasceno ardeu.Fiquei revoltada com a notícia. O Teatro Rosa Damasceno não tem preço. Não há dinheiro que pague um teatro daquela dimensão. É uma loucura deitar fora o teatro ou transformar aquilo num teatrinho de bolso com uns escritórios à volta e umas lojas. E depois pensar que aquilo foi feito com o dinheiro das pessoas da cidade. Custou 30 contos de réis e foram as pessoas de Santarém que quiseram ter aquele teatro. Apresentavam-se cá as companhias quando faziam tournées. Faz-me pena. Os bens culturais aumentam a auto-estima das pessoas. O teatro está numa zona da cidade tão nobre e tão bonita. Tudo se deixou partir. Faria sentido ter os dois espaços recuperados.Claro que sim. Veja a quantidade de actividade cultural que há nesta cidade. Há gente com um trabalho muito válido que deveria ter condições e reconhecimento. A cidade beneficiaria se viesse para cá uma companhia de teatro de âmbito nacional, mas compreendo que o sentimento das pessoas de cá não seja bem esse porque lidam com a sua própria dificuldade e com a falta de reconhecimento. Também não percebo porque é que Santarém não tem uma orquestra. Poderia ser dirigida por um Irlandês. O que faltou na recuperação do Sá da Bandeira?Acho que o Sá da Bandeira não tinha muito para salvaguardar. Do ponto de vista arquitectónico não tem interesse especial. Com um pouco mais de dinheiro tinham conseguido fazer bem os dois. Ou no caso de ter que sacrificar algum, escolher o Rosa Damasceno. Depois há quem ache o palco do Cnema muito giro…Não seria capaz de apresentar lá uma peça?Não digo que não fosse capaz, mas tinha que puxar imenso pela cabeça. Não consigo imaginar um espectáculo na sala do Cnema. Se calhar foi pensado para apresentar ranchos folclóricos. Numa sala pequena pode acontecer a coisa mais marcante. O teatro não tem que ser uma coisa luxuosa. Acho é que, até para se poder andar para a frente, é preciso preservar o que já temos.Não tem certezas sobre a forma como o seu espectáculo seria aqui recebido. Por causa da temática ou do público?Não é por causa do público de Santarém. Público é público. Em Santarém, Alpiarça ou Bruxelas. Não é um espectáculo que seja feito no palco com umas luzes e que seja evidente como é que se vai repor num outro espaço. Houve já quem dissesse que devia ser feito num campo de futebol. Gostava apresentá-lo em Santarém?Não particularmente. Gostava mais de sentir que o espectáculo serve para alguma coisa. É um espectáculo que sinto que é dos outros. Pode ser feito aqui como na Nigéria. Infelizmente este assunto não é local. Só o ponto de partida.“E a mulher teve morte quase instantânea”Uma volta de carro no quarteirão. O liceu Sá da Bandeira está em obras. Sentamo-nos na esplanada para a lezíria. Lúcia Sigalho pede o primeiro café. Eu acompanho-a. Conhece bem esta paisagem a perder de vista. Quatro trabalhadores da construção civil estão sentados na mesa do lado quanto Lúcia começa a ler um excerto da peça escrita em parceria com Mafalda Ivo Cruz. “E a mulher teve morte quase instantânea”, espectáculo apresentado em Novembro no Teatro Municipal Maria Matos, em Lisboa, inspirado na notícia sobre a mulher assassinada à porta do local de trabalho, no Vale de Santarém. Eu faço silêncio para a ouvir. Eles, pouco depois, também: “Morrem muitas mulheres. À razão de uma por semana. Morrem. Acabam-se. Encerram-se. Não desaparecem. Estão debaixo da terra (…)Um caixão custa 400 euros. Um funeral custa quanto? (…) E o não sei quantos? Vai ao enterro da mulher ou não? Dão-lhe os pêsames? Prendem-no?(…)”Acabam por deixar a mesa, incomodados, os quatro homens. Está frio em Santarém. Mais frio que em Lisboa. Porque aqui também se sentem as coisas de maneira diferente, a outro ritmo. Em Lisboa há uma certa trepidação. Não temos tempo para sentir, explicará mais tarde Lúcia Sigalho depois de acender o primeiro cigarro. Falamos da mulher que morreu à frente do local de trabalho, no Verão de 2008, falamos de uma outra que acaba de morrer numa pastelaria do centro histórico de Santarém, mas o texto evoca muitas mais. “(…)Houve uma pessoa que disse: está tão branquinha. Parece uma noiva. Não, parece uma santa. Acho que as maquilham e vestem, mas é muito difícil vestir uma morta. E põem-lhes um terço na mão, flores, que não servem para nada. Quando é que foi a última vez que o não sei quantos lhe deu um ramo de flores? Se calhar nunca chegou a acontecer essa coisa magnífica do não sei quantos a oferecer-lhe flores. Mas em compensação está para aí muita flor(…)”. O tom que Lúcia Sigalho dá às palavras torna o texto ainda mais cortante: “(…)Amo-te para sempre, disse o não sei quantos. Nunca te hei-de deixar. E matou-a. Ao fim de um dia inteiro de pancada (…)”. Para já não está prevista a reposição da peça. Poderia ser apresentada em Santarém como em qualquer lugar, explica Lúcia Sigalho. Afinal morrem mulheres em todo o mundo.
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