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Os bombeiros não devem fazer serviço de táxi

Os bombeiros não devem fazer serviço de táxi

Comandante de Vila Franca de Xira viu reconhecidos 33 anos de entrega à causa

O comandante dos Bombeiros Voluntários de Vila Franca de Xira, António Pedro, defende que as corporações têm que adaptar-se às novas realidades. Depois de ter sido homenageado pelos “Bombeiros da Amizade” o operacional revela que há cada vez menos voluntários e acredita que o futuro dos bombeiros passa pela semi-profissionalização. Os soldados da paz só deveriam fazer emergências e não “serviço de táxi”. Confessa que há crispação entre a administração do hospital e as corporações do concelho e uma “guerra surda” nos quartéis.Jorge Afonso da Silva

Qual é a sua posição sobre o transporte de doentes efectuado pelos bombeiros?Não me debruço muito sobre isso nem me imiscuo nesse tipo de negociações. Está a ser tratado a nível da direcção com as entidades competentes. Mas a minha opinião é a de que os bombeiros, que têm formação para a emergência e outro tipo de ocorrências, andam a fazer um serviço de transporte de táxi, que pode ser feito por empresas próprias criadas para o efeito. Não concordo que se estejam a ocupar vários elementos durante o dia para transportar pessoas para a fisioterapia, hemodiálise que ficam horas à espera dentro da ambulância. Os bombeiros deviam fazer só emergências.Estão a desperdiçar-se recursos?Sem dúvida. Depois não temos bombeiros para fazer emergência. Estamos a utilizar recursos de voluntários o que neste momento não faz sentido. Os voluntários são cada vez menos e as ocupações profissionais são cada vez mais. Trabalham mais horas e fins-de-semana para conseguirem ter ordenados que sustentem a família. Sobra menos tempo para se dedicarem à corporação e muitas vezes têm de faltar aos turnos no quartel. Deveria haver um complemento para o voluntariado que não há. É uma nova realidade?As corporações têm mesmo que adaptar-se às novas realidades. Mas a população de Vila Franca de Xira também têm de perceber que os bombeiros não podem acudir a todos os pedidos de transporte. Por exemplo, nesta altura natalícia, querem que os bombeiros façam o transporte dos idosos de um lado para o outro. Temos de assumir um compromisso quando não devíamos ser nós a assumir. Enquanto associação humanitária temos o dever moral de colaborar. Mas depois estamos a faltar aos serviços onde fazemos falta. O futuro tem que passar por ter bombeiros preparados, em termos de equipamentos e pessoal, para saírem ao minuto e prestar auxílio a uma emergência, seja de que tipo for. Continua a existir na mentalidade das pessoas que os bombeiros têm de estar em todo o lado. E não pode ser. A mentalidade dos bombeiros também se alterou. São menos voluntários porque tudo isto evoluiu e toda a gente quer ganhar dinheiro. Os bombeiros não podem continuar a ser os parentes pobres. Tenho meses de solicitações de pedidos de ambulâncias e piquete a custo zero para várias festas. Fazemos tudo de borla e ninguém nos dá nada.O conceito de bombeiro voluntário está alterado?Completamente. Mas não sou muito adepto disso. Sou adepto do voluntariado mas isto caminha cada vez mais para um semi-profissionalismo. Não estou a ver os 40 mil bombeiros todos profissionalizados. Quem vai sofrer com isto são as populações. Com o serviço de ambulâncias já estão a sofrer. Há empresas que só transportam se as pessoas pagarem. Depois vêm socorrer-se aos bombeiros. Gostava que continuasse a haver voluntariado e que fosse um complemento aos profissionais. Ia-se ao quartel consoante a disponibilidade dos voluntários, mas deviam criar-se estímulos para esses bombeiros enquanto desempenhassem as suas funções. Isso seria benéfico a exemplo do que acontece em alguns países da Europa. Terem compensações por serem voluntários. Isentos de uma taxa moderadora. Terem um crédito habitação com uma bonificação ou não pagar a taxa do contador da electriciddade, por exemplo.No seu entender a semi-profissionalização é o futuro? Corpos de bombeiros com equipas profissionais complementadas com voluntários. Já existe mas numa dimensão pequena. Mas isso vai depender das autarquias pois tem custos. Cada vez mais o voluntariado não se compadece com o voluntariado. Por exemplo, hoje o piquete está completo. Amanhã pode não estar. As pessoas não podem abdicar da sua vida profissional para se dedicar aos bombeiros.As entidades estão sensibilizadas para esses factos?Penso que sim. Há pessoas a querer andar com isso para a frente. O problema são os custos que isto implica. E antes de avançar tem que se conseguir ter equipas preparadas para depois suportar o resto. Não se pode estar a exigir que o bombeiro tenha formação numa determinada área quando depois não há ninguém para dar essa formação. Ainda sobre o transporte de doentes. O dinheiro do Hospital de Reynaldo dos Santos não faz falta aos bombeiros?Claro que faz. Mas a situação era boa para o hospital mas não era rentável para os bombeiros. O hospital tinha um determinado número de exigências que os bombeiros não podiam cumprir. O gasóleo aumentou mas o valor do quilómetro não. Por outro lado, a falta de pessoal e de meios provocava um desgaste muito grande para responder a todas as solicitações. Por isso é que nos retiramos do concurso de prestação de serviços do hospital. Fiquei muito contente que deixássemos de fazer esses transportes. Mas a cidade ficou a ganhar ou a perder com a decisão?Para Vila Franca de Xira foi belíssimo terem acabado os serviços do hospital. Em termos de operacionalidade e de pessoal. Ninguém aguentava com as emergências todas por fazer. Chegava uma ambulância a sair do hospital, entrava na auto-estrada e já estavam a pedir outro serviço. Era insuportável. Em termos financeiros é capaz de ter sido mau. Mas não se pode ter tudo.Mas há um clima de crispação entre a administração do hospital e os bombeiros?Já houve mais, mas ainda existe. De vez em quando ouvem-se comentários. Por exemplo, quando colocaram lá as empresas, disseram: “isto agora já não são os bombeiros”. Mas às vezes nós também damos tiros nos pés. Somos voluntários mas também temos de ser profissionais.Como assim?Acho que os bombeiros deviam estar sossegados. Não temos condições para fazer serviços do hospital. Os bombeiros têm que se preocupar com a população e a sua área. Se há uma emergência no hospital aí os bombeiros fazem. Para fazer transporte normal contratem empresas e paguem. Se surgir um acidente ou uma doença súbita não temos cá ninguém. Toca a sirene, chega não chega, passam 20 minutos, tinha um AVC e quando chegamos já a pessoa está morta.Tocou no Ateneu e jogou andebol no VilafranquenseO comandante dos Bombeiros Voluntários de Vila Franca de Xira, António Pedro, nasceu em Azambuja nasceu em 1960 e veio para a cidade ribeirinha com apenas dois anos. Em pequeno tinha o sonho de ser bombeiro, polícia ou piloto de aviões. Mas a sua primeira actividade foi ajudar a escola de música do Ateneu Artístico Vilafranquense (AAV) a nascer. Recorda com saudade esse tempo e nomes como os irmãos Mário (actual presidente do AAV) e Sertório Calado, o toureiro Vítor Mendes ou Américo Borda de Água, que foi quem decidiu formar a banda juvenil do AAV. Depois disso praticou andebol – que considera ser o seu desporto – nas camadas jovens da União Desportiva Vilafranquense (UDV), onde jogou até sénior.Como tinha alguns amigos nos Bombeiros Voluntários de Vila Franca de Xira acabou por ingressar na corporação em 13 de Setembro de 1976 como cadete. Tinha 16 anos. A partir dessa altura nunca mais abandonou os bombeiros e foi subindo a pulso na hierarquia durante os 33 anos que já dedicou à causa dos soldados da paz. Assumiu o comando em 1987, cargo que mantém até hoje. Profissionalmente António Pedro está ligado à distribuição de carne pelas grandes superfícies. Assume que não tem sido fácil – e cada vez está a ser mais difícil – conciliar a vida de comandante e a sua profissão. “Só consigo aguentar esta situação porque temos no quartel elementos de grande competência ao nível da operacionalidade que conseguem suportar todas as adversidades diárias. Casos do segundo comandante Passarinho ou do chefe Torres, passando pelos restantes bombeiros. São dos melhores aqui na região que me dão toda a confiança. Por isso posso desenvolver a minha actividade profissional descansado”, garante.“Há uma guerra surda nas corporações”A corporação de Vila Franca de Xira tem os meios necessários?Não. De maneira nenhuma. Já dei conhecimento à direcção, que não tem tido essa atenção e tem descurado essa situação. O que me preocupa mais nesta altura, além da falta de equipamento específico para combate a incêndios urbanos nas viaturas, são as ferramentas necessárias para desencarceramento. Face à evolução das viaturas, equipadas com sistemas de segurança ao nível de protecção das portas, as nossas ferramentas já não conseguem cortar esse material. São equipamentos caros mas a direcção tem de se preocupar com isso. Não vale a pena andar nos bombeiros a fazer de conta. Vila Franca de Xira não tem uma área florestal mas sim rural com 90 quilómetros quadrados de Lezíria, onde já se verificam muitos acidentes de trabalho e de viação na estrada que vai do Gado Bravo até Benavente. Também não temos viaturas todo-o-terreno, que possam fazer o socorro, principalmente no Inverno. Depois falta-nos mais um auto-tanque.Nota-se que está insatisfeito com a direcção…Sim. Apesar de ser amigo das pessoas. As direcções, de há uns anos para cá, tomaram “o poder” das associações e são as entidades gestoras e eleitas pelos sócios. Mas a verdade é que isto é uma associação de bombeiros não um centro cultural ou associação desportiva ou recreativa. A finalidade dos bombeiros é socorrer e ter equipamento para socorrer. Se estamos preocupados com tudo, menos com o que é mesmo importante, temos de nos dedicar a outra coisa. Ir para a porta do Ateneu ou para um rancho folclórico. Depois vemos corporações vizinhas, com menos tempo que nós, mas muito bem equipadas. Isso é desmotivante para os bombeiros.Há rivalidades entre as corporações?Continua a haver. As próprias pessoas criam rivalidades. Ao nível das chefias e dos comandos deviam saber-se as posições. E saber incutir aos bombeiros que a área de actuação é esta e não a do lado. Não é uma questão de quintais mas sim de princípios. Se cai aqui uma chamada da Castanheira do Ribatejo, por exemplo, temos de informar os bombeiros da Castanheira. Se for preciso ajuda colaboramos. Se não é preciso é da responsabilidade deles. Não devemos entrar em casa alheia.Isso tem acontecido?Sim. E cria um mau ambiente nos bombeiros. Vão para uma ocorrência e quando chegam lá está o vizinho do lado. Muitas vezes só recebe a ocorrência depois deles terem saído. São situações que não são correctas. Há um mal-estar latente dentro das corporações da região?Há grupos que se formam dentro dos corpos dos bombeiros. Existem rivalidades em todas as corporações e o ambiente não é muito saudável. Deve-se às mentalidades de cada um. De coisas que dizemos ou fazemos e não devíamos. Esse mau estar é uma guerra surda que anda em todas as corporações do país. Acha que essa guerra prejudica a operacionalidade?Ao nível da corporação sim. Os corpos de bombeiros têm nos seus quadros pessoas com níveis de formação e actividades profissionais diferentes. Depois cada um tem os seus problemas. Outros não terão bons ambientes familiares. Tudo isso é retratado e empolado no quartel e passa para o colega do lado. Quando admitimos bombeiros novos tenho o cuidado de dizer que devem ter estofo de ver um ferido, assistir um queimado, ou combater o fogo. Mas há outro estofo que também têm de ter. De compreender que alguém pode não o receber bem. É como na tropa. Não se pode ser muito esperto nem muito parvo. Às vezes o comandante tem muita dificuldade em controlar isto. Tento sempre fazer com que o bom senso prevaleça. Mas esse é um fenómeno que se tem agravado ultimamente.Uma das situações que está a agravar o mau ambiente dentro das corporações tem que ver com algumas pessoas que são adversas à mudança. Há bombeiros que comparecem e cumprem o seu dever. Mas como não fazem formação e a nova lei diz que têm de fazer, tenho de os passar para o quadro de reserva. Essas pessoas sentem-se injustiçadas porque há outros que não comparecem e não cumprem, mas como fazem a formação contínua progridem. Ao fim e ao cabo é injusto para os dois. Depois começam-se a formar grupos e isso mina o clima.“Não esperava ser homenageado pelos “Bombeiros da Amizade” Bombeiro de carreira, o comandante António Pedro viu, no dia 14 de Novembro, publicamente reconhecida toda uma vida dedicada à nobre causa de ajudar. Foi o escolhido pelos “Bombeiros da Amizade” – Grupo de bombeiros com sede em Vila Franca de Xira – para ser a personalidade homenageada no ano de 2009. “Ao longo de 33 anos como bombeiro, sempre representou esta corporação de Vila Franca de Xira com um profissionalismo de louvar, pelo que é enaltecido o seu estoicismo no combate que os bombeiros travam em qualquer ponto do país com abnegação e vontade de vencer algo muito forte, o inimigo de todos: o fogo!”, lê-se na missiva escrita pelos “Bombeiros da Amizade”.A cerimónia contou com a presença de cerca de centena e meia de pessoas, autarcas e amigos que se quiseram juntar nesse dia que foi especial para o “menino” que um dia sonhou ser bombeiro. “Não esperava receber o prémio porque acho que sou ainda muito novo. Foi isso que lhes transmiti quando me abordaram para me homenagear. Responderam que já homenagearam outros que não fizeram tanto e que estão há menos tempo nos bombeiros do que eu. Fiquei muito honrado e satisfeito com a distinção”.Mas António Pedro não se ilude e é frontal quando analisa a sua posição. “Quem está neste lugar espera tudo. Não podemos agradar a todos e sei que mesmo dentro da minha corporação há quem não simpatize comigo. As pessoas não são obrigadas a concordar com algumas ideias que tenho. Não vale a pena ser hipócrita”.Confessa que já pensou várias vezes arrumar a farda e ir embora fruto do desgaste que o cargo implica, mas até agora a vontade de ficar tem falado mais alto. Diz que tanto pode ir embora no final do mês como daqui a cinco anos. Não tem uma meta. Já foi convidado por outras corporações da zona para assumir cargos de chefias mas nunca aceitou. “A minha corporação é a de Vila Franca de Xira e há-de ser sempre até me ir embora”. Palavra de comandante que neste momento tem cerca de setenta bombeiros sob a sua alçada, vinte deles assalariados.
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