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“Com os PDM as coisas deixaram de ser feitas a bel-prazer”

“Com os PDM as coisas deixaram de ser feitas a bel-prazer”

Cachado Rodrigues foi o arquitecto responsável pelos planos directores municipais de Almeirim, Alpiarça e Chamusca

Elias Cachado Rodrigues não sonhava ser arquitecto. Enveredou por essa área porque lhe indicaram que aí estava a sua vocação. Já foi director do Departamento de Gestão Urbanística da Câmara de Lisboa e foi responsável pela elaboração de vários Planos Directores Municipais (PDM). Orgulha-se que o PDM de Almeirim, pelo qual foi responsável, tenha sido um dos primeiros a ser ratificado a nível nacional. Confessa que se não fossem os PDM o ordenamento do território seria muito pior. Mas também diz que há políticos que se vergam a alguns interesses da construção civil e da indústria Nesta entrevista o arquitecto de 61 anos, apaixonado pelo património e por história, fala também da sua infância e juventude em Almeirim, da luta contra a ditadura e das marcas que ficaram do convívio com os mais pobres. António Palmeiro

Foi o responsável por alguns dos primeiros Planos Directores Municipais. É verdade que na altura os PDM não reflectiam a realidade?Os planos foram instrumentos essenciais para organizar os concelhos. Tudo o que sirva para ordenar o território é positivo. Houve um grande salto positivo com a obrigação, nos anos 80, de se fazerem os planos directores. Na minha particular experiência o PDM de Almeirim foi o 16º a nível nacional a ser ratificado. Isso é relevante. Não deve ter sido fácil.Na altura o presidente da câmara era Alfredo Calado, que teve uma visão política importante. Em termos técnicos houve o envolvimento da população e muita vontade de diálogo, o que foi extremamente enriquecedor.Por que é que tantos políticos se queixam dos PDM. Por que se diz que constituem entraves em algumas situações?Já passaram cerca de 20 anos sobre as ratificações dos primeiros planos directores. A prática de execução dos planos leva muitas vezes a que exista a necessidade de se fazerem revisões obrigatórias ao fim de dez anos, que não foram feitas. Ou seja, quando há entraves há formas de rever tais situações.Choca-o o facto de em muitos casos as revisões demorarem mais tempo do que demorou a elaboração do plano inicial?No meu entender isto é uma forma de deixar os planos em vigor num limbo, um pouco ambíguo, e de resolverem as situações entre linhas, o que não me parece correcto. Com os planos conseguiu-se realmente organizar o território?A situação estaria muito pior se não houvesse a legislação que criou os PDM e se não houvesse os instrumentos de urbanismo. Mas a organização dos concelhos não se faz de um ano para o outro. Com os planos as coisas deixaram de ser feitas a bel-prazer.Com que sensação fica quando vê atropelos às regras definidas nesses planos?É ofensivo em termos técnicos, morais e éticos. Há situações em que politicamente há interesse por determinadas opções, o que não deixa de ser legítimo. Mas o pior é quando essas situações são ultrapassadas sem diálogo ou ilegalmente. Admito que existam situações extremas que precisam de ser revistas. Mas algumas são feitas à revelia de qualquer regra. Sente-se frustrado quando vê situações em que se passa por cima das regras?O que me choca é quando os próprios autores dos primeiros planos não são ouvidos. Quando as equipas que estão a fazer as revisões dos PDM não dialogam com os responsáveis por esses planos. Não quer dizer que tenham que ser os técnicos dos primeiros documentos a fazer as revisões. Mas manda alguma ética técnica, política e profissional que estes sejam consultados.Não foi consultado?Não tive convite formal para integrar as equipas de revisão, nem para dar alguns contributos que pudessem ser úteis. Também não é obrigatório. Por que não há esse intercâmbio?Sem generalizar, há políticos que se sentem condicionados para dar resposta a alguns interesses da construção civil e da indústria. Um bom autarca deve saber o que é que pretende para o seu concelho no futuro. Mas há casos exemplares pela positiva que devem ser reconhecidos. Há alguma localidade que sirva de exemplo em termos urbanísticos?Sou suspeito porque acompanhei muito de perto a situação de Almeirim. Apesar de todas as contendas, dificuldades e polémicas, Almeirim se não tivesse a intervenção que teve depois de 1974, se não tivesse os políticos com vontade de mudar e de ouvir opiniões, estaria numa situação desastrosa. Também admito que existam situações que possam ser polémicas, mas existem traçados regulares que se devem à compra de terrenos pela autarquia para prever o futuro. Houve um plano estratégico. Isso é que é planeamento urbano. A cidade foi pensada em termos de futuro. Desde cedo sensível à cultura e à criatividade artísticaO facto de ter sido apoiante da CDU não lhe trouxe engulhos?Tenho uma formação de esquerda que não recuso afirmar. Mas numa postura de abertura, de solidariedade com todas as pessoas, de atenção para com as situações de desigualdade social. Dou muito mais importância à atitude e acções e ao inconformismo perante as desigualdades, do que propriamente à parte partidária. Como é que desenvolveu esse espírito vindo de uma família abastada?É certo que tive uma infância e adolescência privilegiada. Mas andei na escola oficial e tive muitos colegas pés-descalços, com dificuldades, que lanchavam na minha casa. Na minha formação ao longo da vida lidei sempre com classes sociais diversas. Tive um professor na primária, Henrique Pina, uma pessoa sensível às discriminações sociais, que foi marcante na minha formação de valores e na dos meus colegas.E o seu pai teve alguma influência nas suas opções?O meu pai foi fundamental no aspecto de me dar referências contra a ditadura. Transmitiu-me valores democráticos e culturais. Isso fez com que, aos 15 anos, com um grupo de amigos, todos muito jovens, fizéssemos um clube juvenil e tivéssemos conseguido fixar uma biblioteca da Gulbenkian em Almeirim.Não teve problemas com o regime ditatorial por causa da sua ideologia?Tive alguns problemas. Quando fui para o liceu de Santarém fazia parte de um grupo que tocava fados de Coimbra. Nessa altura gostava também de cantar canções de intervenção de Zeca Afonso e isso era olhado com grande desconfiança. Participei também em diversos encontros clandestinos de juventude democrática e fiz uma intervenção no congresso da oposição democrática de Aveiro sobre o direito à habitação em Portugal.Chegou a ser preso?Quando estava no clube juvenil distribuímos um panfleto contra a guerra colonial. Confesso que nessa altura tive que me ausentar para parte incerta, mas nunca cheguei a estar preso.Teve a sorte de não ir para a guerra e cumprir o serviço militar já depois do 25 de Abril.Isso aconteceu porque houve alguns adiamentos da data para a defesa da tese de licenciatura e a situação arrastou-se durante dois anos, sem que tivesse contribuído para isso. Curiosamente, foi depois marcada para o dia 25 de Abril de 1974, na Escola de Belas Artes, perto do quartel do Carmo, que foi um dos palcos da revolução. O que é que o marcou mais na infância?Há uma situação inesquecível. Quando tinha seis anos foi criado um grupo de variedades que se chamava “Gente Miúda de Almeirim” e que envolvia cerca de cem pessoas. Foi criado por iniciativa do padre Oliveiros e tinha fins de benemerência. Fizemos espectáculos por todo o país para recolher fundos para as obras na igreja e para a construção de um bairro para pobres, além da ajuda aos mais necessitados. Isso marcou-me muito e foi um primeiro contacto com as artes da representação.Foi essa experiência que o levou também a interessar-se pelo desenho, pela fotografia, pela música?Indirectamente foi. Mas curiosamente nunca sonhei em ser arquitecto ou artista plástico. Até achava que tinha mais jeito para as ciências ou para as letras. Fiz testes no Instituto de Orientação Profissional, que na altura era dirigido por Bernardo Santareno, que revelaram então que a minha vocação era a arquitectura.Aquilo que é hoje deve-o à família? Só talvez dois por cento dos meus colegas de primária é que puderam tirar um curso superior. E nesse aspecto sinto-me um privilegiado.Herdou do seu pai, Álvaro Pina Rodrigues, o gosto pelas tradições culturais e pela valorização do património?Sim. Ele era um autodidacta e muito culto. Tirou o curso comercial no Porto. Só a necessidade do meu avô em tê-lo como apoio na sua vida comercial inviabilizou a continuidade dos seus estudos no ensino superior. Dedicou-se ao estudo etnográfico e está para sair um livro com a sua obra. Como é que era a sua relação com ele?O meu pai era uma pessoa muito reservada. Era um homem austero na sua maneira de viver que criou uma casa agrícola média. Mas dedicava muito tempo à cultura. Escreveu peças de teatro e foi encenador a nível local. Pautava a sua vida pela frontalidade, pela honestidade e pelo rigor que levava a que se criasse uma grande admiração à sua volta. Almeirim tem sabido reconhecer o trabalho que Álvaro Pina Rodrigues deixou?De certa forma. Depois do seu falecimento, a assembleia municipal fez uma recomendação para que se desse o seu nome a uma rua da cidade, mas não tenho conhecimento que depois disso tenha sido dado algum passo para a cumprir. Almeirim não tem sabido valorizar a sua históriaTem sido um defensor da valorização do património, sobretudo de Almeirim. Não sente por vezes que está a pregar no deserto?Muitas vezes sinto-me isolado. No caso particular de Almeirim sinto-me por vezes como um franco-atirador. Mas também sinto que há pessoas que vão cada vez mais percebendo a importância do património. No caso de Almeirim é desconhecida a sua história pela maior parte das pessoas, arriscava a dizer de 90 por cento dos habitantes do concelho. Da sua história o que se conhece melhor é a realização das cortes de 1580 porque existe uma placa alusiva a esse momento em que Febo Moniz procurou evitar que o trono português caísse nas mãos dos espanhóis. Defender o património não dá votos?Não vou por esse caminho. A questão é que os próprios autarcas incluem-se numa posição de desconhecimento da importância histórica de Almeirim, a nível nacional e europeu, que está toda documentada. O paço real foi utilizado por toda a dinastia de Avis até ao reinado de D. José e o corpo principal do paço tinha cem metros de comprimento e cerca de 24 metros de altura, o que corresponde a um edifício actual de oito pisos. O Gil Vicente fez em Almeirim as primeiras representações de dez autos. O cancioneiro geral de Garcia de Resende foi impresso nas tipografias do paço real. Isto tem importância local e nacional. Hoje não lhes dão valor por incultura.O facto de Almeirim ser hoje mais conhecida pela Sopa de Pedra também é importante.O que é que é mais importante em Almeirim? Será valorizar o estômago, a gastronomia, ou defendermos, como diria Garcia Lorca, que devemos comer metade de um pão para alimentar o corpo e a outra metade de cultura.É verdade que já pagou do seu bolso intervenções arqueológicas no centro de Almeirim?É verdade que dei notícia à autarquia de várias situações com locais de interesse para serem sondados e não tiveram sequência. E tive que as fazer à minha conta. Se pudesse até fazia mais. Mas compete à autarquia interessar-se pela pesquisa arqueológica que vem revelar situações que não são tão menores como se pensa. Sem investigação as pessoas não acreditam, minimizam a cultura.Foi director de gestão urbanística da Câmara de Lisboa. Quando anda pelo distrito de Santarém como é que vê o urbanismo desta região?O concelho de Santarém em particular tem andado à deriva há muitos anos. A partir do 25 de Abril de 1974 deixou-se de fazer urbanismo com rigor e visão de futuro no planalto e na envolvente. A expansão da Portela fez-se de forma desintegrada. O bairro de S. Domingos esteve abandonado em termos de espaços públicos. Mas reconheço algum esforço no sentido de se criar algum ordenamento. Uma cidade faz-se com visão de futuro e qualidade global. Uma vida com muitos projectosElias Cachado Rodrigues nasceu na Golegã em 1948, mas foi em Almeirim que viveu toda a sua infância e juventude. Licenciou-se em Arquitectura em 1974 pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Nessa altura já trabalhava. O seu primeiro emprego, em 1970, foi no Laboratório Nacional de Engenharia Civil, participando num inquérito sobre a habitação. Ao mesmo tempo dava os primeiros passos na arquitectura no ateliê do arquitecto Francisco Silva Dias. Dois anos depois ingressou no gabinete técnico de habitação da Câmara de Lisboa. Foi membro do Conselho Municipal de Lisboa entre 1978 e 1983 e chegou a director do Departamento de Gestão Urbanística da mesma autarquia entre 1990 e 2002. Com 61 anos, é actualmente assessor no departamento de gestão do espaço público do município de Lisboa. Ao longo da vida escreveu artigos sobre planeamento, espaços públicos e intervenção urbana. Como homem de cultura tem dedicado os tempos livres à fotografia e ao desenho, pintura e escultura. Já fez várias exposições na região e no país. Neste momento está a frequentar um curso de desenho e pintura no Fórum Mário Viegas, em Santarém. Apesar da sua vida profissional estar na capital, passa todo o tempo que pode em Almeirim e Santarém. Tem dois filhos. Chegou a ter um gabinete de arquitectura próprio com outros colegas. O projecto de arquitectura em que participou e de que mais se orgulha é o do centro cívico de Carnaxide (Oeiras). Um centro que tem a junta de freguesia, centro cultural, espaços de comércio e igreja. E que incluiu a intervenção no espaço público que permitiu criar uma zona de fruição para a população.
“Com os PDM as coisas deixaram de ser feitas a bel-prazer”

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