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“Puseram em cima da festa do Natal a festa do consumo”

“Puseram em cima da festa do Natal a festa do consumo”

Frutuoso Duarte Matias, 70 anos, ribatejano de Santarém que é pároco em Tomar há quatro anos

Tem um discurso translúcido e emite opiniões que são, muitas vezes, uma pedrada no charco. Pessoa reservada, assume que não gosta de dar entrevistas mas acabou por conversar com O MIRANTE. Critica o espírito consumista da época natalícia e diz que “sobrepuseram ao Natal a festa da fartura, da abundância, do consumo”. Elsa Ribeiro Gonçalves

Estamos no Natal. O que acha da frase tantas vezes repetida nesta época de que “O Natal devia ser todos os dias”? Acho muito bem desde que se entenda que o espírito de Natal é todos os dias. Mas o Natal é o nascimento – Natal significa nascimento – de uma pessoa muito concreta: Jesus de Nazaré que o povo de Israel, onde nasceu, reconheceu como o Messias e o enviado de Deus para dar a boa nova do amor de Deus a todos os homens. Nesse sentido, o Natal é um acontecimento histórico de um dia concreto.Há dúvidas em relação à data exacta do seu nascimento…Não sabemos exactamente o dia em concreto quando Ele nasceu. Os antigos não davam muita importância ao dia do nascimento. De resto, o calendário, quando Cristo nasceu, não era como o nosso. Não havia o dia 25 de Dezembro. A igreja escolheu o dia 25 de Dezembro porque era uma festa que já existia - a Festa do Sol Nascente – e como vemos que Cristo é que é o Sol, a luz que guia os homens, celebramos o seu nascimento no dia em que o sol começa outra vez a crescer. Há um grupo de cristãos, mais do Oriente, que celebra o Natal uns dias depois. A 6 de Janeiro, o nosso dia de Reis. Sente que no Natal as pessoas aproximam-se mais da fé e da igreja? Nota a igreja mais cheia? Já foi mais. Hoje as pessoas celebram tudo muito individualmente. Preferem o seu lar, a sua família. Onde têm conforto, aquecimento, tudo de bom… As pessoas, em tudo na vida social, cada vez são mais (pausa)… Eu não queria dizer mas são mais egoístas talvez e isolam-se muito mais. Celebram muito poucas coisas em conjunto. É por isso que hoje, mesmo no Natal, há menos pessoas nas igrejas do que há uns anos. As pessoas enchem-se muito com as coisas que têm em casa e ficam-se por aí. Não dão um sentido cristão explícito, religioso a este acontecimento…À missa do galo vão mais pessoas mas por moda…Não muitas. E as que vão fazem-no por tradição. Outras vão também por um bocado de poesia. Mas também há quem vá por fé e por um sentimento religioso, infelizmente nem sempre muito esclarecido. Mas alguma coisa há…“Os portugueses têm tendência para beijar tudo e mais alguma coisa”Este ano por causa da gripe A, é aconselhado que as pessoas façam a vénia ao invés do beijo ao menino. Concorda com esta medida? Penso que não seja só por causa da Gripe A. Sou pároco há muitos anos e há muitos anos que digo aos fiéis para não beijarem a imagem mas tocarem com a sua mão direita no sentido de receberem o menino. E com este gesto recebem todos os meninos, todas as crianças, toda a inocência, toda a ternura dos seus netos, vizinhos, das crianças que não têm colo. Aprendi isto há muitos anos com uma criança que, no Natal, estava ao colo da mãe para beijar o menino. Esta criança fez o gesto de levar a sua mão direita na boca e depois tocando na imagem. Beija-se através do toque da mão e não através da boca. E já há muitas pessoas que fazem isto, até antes da gripe A. Eu próprio, enquanto pároco, apelo a isso. E este ano vai reforçar esse apelo?Acho que vai ser igual. Acho que esta questão apenas está a ser muito amplificada pelos nossos jornais e televisão. Os portugueses têm tendência para beijar tudo e mais alguma coisa (risos). Somos muito beijoqueiros. No fundo trata-se de trocar o beijo por um gesto.Estamos em crise mas mesmo assim esta é uma época de grande consumo. Que mensagem gostaria de passar às famílias que vivem, por estes dias, um Natal mais árido? O Natal é para os pobres. É o nascimento de um menino pobre que nasceu para os pobres, antes de mais. Por isso os pobres, mesmo estando a atravessar dificuldades económicas, não deixam de ter Natal. Estão mais de acordo com o Natal do que aqueles que têm a mesa muito farta e demasiadamente abundante até. Puseram em cima do Natal uma outra realidade, que é a realidade do consumo. Sobrepuseram ao Natal a festa da fartura, da abundância, do consumo. Também há pessoas que partilham mais no Natal com outras pessoas. Há muita gente que vive o Natal como a festa da partilha. Que põem de parte uma quantia para partilhar com os mais pobres. E estes devem sentir que o Natal é uma festa sua. E o que é para si o Natal?O Natal é o nascimento de Cristo. Nunca pudemos deixar cair o significado da própria palavra Natal: Natal significa nascimento. Agora, dizer que Natal é a festa do Pai Natal é o maior contra-senso. A expressão “Natal” não tem nada a ver com um velhote, bonzinho, com barbas e com um saco às costas a contar histórias aos meninos. Então, neste caso, devia chamar-se outra coisa. Apropriaram-se do Natal para promover o consumo.Um padre com obra feitaTem desenvolvido um grande trabalho em prol da comunidade. Esteve ligado à construção de um lar em Rio Maior e de um centro de dia em Linhaceira (Tomar). Qual deve ser a missão de um padre junto das comunidades onde trabalha? Ao contrário do que as pessoas muitas vezes são levadas a pensar, os padres não se dedicam apenas a actos religiosos. A igreja tem uma função social que é pôr em prática na comunidade o amor ao próximo. Pratiquei essa missão de serviço social em Rio Maior porque havia lá uma pessoa, o senhor Lino, que trabalhava com idosos e foi assim que no meu tempo se construiu um bom lar e centro de convívio para a terceira idade. Não é um armazém de idosos mas uma grande casa de família, com muita qualidade para os idosos passarem os últimos anos da sua vida. Mais perto de Tomar, na paróquia da Asseiceira, construímos no centro da freguesia (Linhaceira) o centro de dia que ainda lá está a funcionar. Chegou a ser abordado por fiéis por causa do último livro de José Saramago? O que lhe merece dizer sobre esta obra que fez correr tanta tinta? Não fui abordado por ninguém nem senti necessidade de explicar isso. O texto que Saramago procura comentar, o livro de Génesis, é um livro escrito num estilo muito próprio que não é uma crónica de acontecimento que seja notícia de jornal. É uma grande parábola, uma história para fazer reflectir sobre a vida. A cena de Caim e Abel não é uma coisa que se possa comentar como se comenta uma notícia do jornal. Acho muito estranho que uma pessoa não crente comente à letra um livro em que põe Deus a falar e a dizer determinadas coisas. Qual devia ser a prenda de Natal do nosso Governo para todos os portugueses?Não gosto da palavra prenda. Gosto da palavra presente. O Governo, e todos nós, devemos estar presentes na vida das pessoas para os ajudar a serem mais pessoas. Não tanto dar o peixe mas ensinar a pescar. Os portugueses precisam que lhes facilitem a vida para que se possam desenvolver com as suas capacidades. As pessoas não podem estar à espera que o Governo lhes dê o almoço já feito.Um padre com coração escalabitanoFrutuoso Duarte Matias nasceu a 3 de Março de 1939 (70 anos) em Moçarria, a poucos quilómetros de Santarém. É o irmão do meio de uma família numerosa (sete filhos) e o único que seguiu a via do sacerdócio, tendo descoberto a vocação com 16 anos. Recorda que na sua terra não havia muita prática religiosa e, por isso, as pessoas não iam muito à igreja. Depois da quarta classe foi trabalhar para Lisboa, “como era hábito naquela altura”, e foi ao encontro de outros jovens cristãos num movimento chamado Juventude Operária Católica. Foi o momento em que descobriu que Deus o chamava para o sacerdócio. Entrou no Seminário de Santarém com 17 anos, prosseguiu no seminário dos Olivais (Lisboa) e foi ordenado pároco a 16 de Agosto de 1967. Passou pelas paróquias de Torres Novas (Paróquias de S. Pedro e Salvador), Rio Maior, Asseiceira (Tomar) e desde há quatro anos que é sacerdote das paróquias de Santa Maria do Olival e São João Baptista. O Natal em que baptizou 25 militares em MoçambiqueA experiência que mais marcou Frutuoso Matias ao longo de 42 anos de sacerdócio remonta entre 1969-72 quando foi colocado como capelão de um batalhão militar na guerra colonial, em Moçambique. “Foi lá, no meio da guerra, que tive experiências daquilo que os homens são capazes de fazer de bem, sobretudo quando se sentem em perigo”, recorda de olhos fechados, lembrando ainda a grande camaradagem que existia entre as companhias do mato, que estavam mais isoladas. “Tive celebrações da Páscoa e do Natal como nunca mais vou ter aqui”, aponta. E há um Natal que nunca mais vai esquecer: o dia 25 de Dezembro de 1970, quando na capela militar de Lourenço Marques baptizou 25 jovens, que não eram cristãos e receberam o baptismo nessa noite.
“Puseram em cima da festa do Natal a festa do consumo”

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