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“Fui interrogado em Caxias durante 300 horas seguidas”

“Fui interrogado em Caxias durante 300 horas seguidas”

O comunista Carlos Coutinho partilha um lado menos conhecido da sua vida a O MIRANTE

Carlos Alberto da Silva Coutinho, 67 anos, nasceu no Alto Douro, mas já se considera um ribatejano. Antigo vereador da CDU na Câmara de Vila Franca de Xira, foi jornalista, combateu na guerra colonial, fez parte das brigadas revolucionárias do PCP, foi preso e acabou torturado em Caxias. O escritor retirou-se há pouco tempo para dar lugar ao pintor.

Como é que um homem do Alto Douro acaba por fazer vida em Vila Franca de Xira?Acabei em Vila Franca de Xira na sequência de ter vindo para Lisboa, recrutado. Nessa altura já tinha o “bichinho” de ser jornalista e escrever. Quando acabei a tropa fiquei por Lisboa, entrei para os jornais e vivi na capital uns 20 anos. Dei aulas durante uns meses enquanto estava numa situação precária no “Vida Mundial”, depois passei para “O Século” e fiquei profissionalizado até me reformar, há cinco anos. Depois fui um dos expulsos da cidade. Saí do caos de Lisboa para uma periferia suficientemente distante e arejada onde me sentisse bem. Alguns dos seus textos mais conhecidos são sobre a guerra. Que experiências guarda dessa passagem por Moçambique?Na tropa tinha uma alternativa: ou fugir à guerra ou lutar contra ela. Preferi lutar contra ela. Quando lá cheguei percebi que havia muito poucas hipóteses de ir lutar contra a guerra sem fazer a guerra. Acabei por descobrir que no serviço de saúde tinha que ter uma atitude igual, quer para um ferido português quer para um ferido inimigo. Isso foi o ideal para mim. O exército inaugurou a neuropsiquiatria militar e eu e outro colega fomos escolhidos para essa especialidade. Contudo acabei por ser o chefe da secretaria do hospital militar porque depois viram que não tinham condições físicas para aplicar aquilo que queriam. Acabei por ser um burocrata. Ver a guerra da janela não lhe deu vontade de ser mais activo?Tive muita vontade de que deixassem de existir algumas pessoas que via como criminosas, independentemente da cor da sua pele. Os criminosos que via, na sua quase maioria, tinham a minha cor de pele. Estar no Ultramar foi estar no meio de uma cidade envolvida na guerra por todos os lados, a vê-la em directo. Estavam em guerra as pessoas e os animais. O medo, o clima de pavor, ódio e desconfiança dentro da mesma cidade era o mais pesado de tudo. Eu vi a guerra dos guerreiros e da população civil. E vi o que isso fazia no comportamento das pessoas. Uma cidade a viver assim era um manicómio tão horrível e tão violento como em alguns textos que mais tarde escrevi. Sonha com ela?Às vezes. Lembro-me de um episódio. Uma noite cheguei ao meu quarto, fora do quartel, e ouvi um barulho. Fui à janela ver o que era e percebi que tinha sido um mabeco [nome dado em Angola a um carnívoro selvagem semelhante a um cão] que se aproximou de uma casa em busca de comida. Um sargento, meu vizinho, deu-lhe um tiro para ele fugir. Esse tiro foi entendido pelo sentinela do quartel como uma acção de guerra. O homem perdeu a cabeça, veio para a rua aos tiros e durante duas horas toda a cidade começou aos tiros a tentar responder a uma ameaça mútua que, no fundo, não existia. Parecia um arraial. A guerra produz-nos estas perversões.E depois de cumprir o dever pela nação foi preso pelo poder…Quando voltei prenderam-me porque continuei a lutar contra a guerra. Eu estava no PCP, que resolveu criar um aparelho militar chamado ARA [Acção Revolucionária Armada], e eu tinha muita vontade de promover rápidas mudanças no país. Quando me disseram o que era aceitei de imediato. Destruí uns quantos aviões e helicópteros em Tancos [distrito de Santarém], sabotei o Cunene [cargueiro português que levava armas para a Guiné] e fiz várias operações que debilitaram o aparelho militar colonialista. Depois, claro, acabei em Caxias…Torturado?Sim, fui torturado como nem quero descrever. O meu primeiro interrogatório durou 300 horas, quase nove dias seguidos sem dormir, com tortura de estátua. Perdi 32 quilos em 13 dias e fiquei com todos os cabelos do corpo brancos. Perdi visão, memória… mas recuperei e esse é um período da minha vida que não gosto de recordar.Como se sente quando ouve alguém dizer que fazia falta um novo Salazar para equilibrar o país?Isso é um grito alarve que tem que ver com duas coisas: em primeiro as ideias difundidas por gente que continua a ter direito à palavra. E segundo o facto de dominarem os pontos onde a palavra pode ser difundida. Essas pessoas têm também uma terrível ignorância sobre a falta de liberdade em Portugal. Faz-me mais pena que ira. Mas não é um exclusivo nosso, é um comportamento que se estende por toda a Europa infelizmente.Como foi conviver com grandes nomes da literatura portuguesa como Virgílio Ferreira ou Miguel Torga?Tive a sorte de, desde miúdo, começar a frequentar pequenas tertúlias antifascistas que eram frequentadas por outros grandes nomes, como por exemplo o António Barreto. Depois quando vim para Lisboa tive a oportunidade de conviver com outras pessoas que me permitiram absorver tudo o que diziam, como uma esponja. Tudo o que sou hoje devo-o a todos esses momentos, que me enriqueceram. Desde a guerra à prisão. O Virgílio Ferreira era simpático mas o Miguel Torga era de um mau trato incrível. Era talvez a pior pessoa ao cimo da terra para ter uma conversa, era mesmo intratável. Mas o que lhe saia da boca ficava a ecoar nos ouvidos durante muito tempo.Numa das suas obras diz que “os jornalistas são os pecadores mais empedernidos da terra”. Porquê?(Risos) É uma brincadeira. Os jornalistas são como toda a gente. Existem boas e más pessoas. Os tempos vão maus para a profissão na medida em que a transformação que está a ocorrer nos média tirou margem criativa, iniciativa e liberdade aos jornalistas, deixando-os como uns meros empregados, dependentes da vontade do chefe como outro empregado qualquer. Foi vereador sem pelouro na Câmara de Vila Franca de Xira durante quatro anos. Sai magoado desse cargo?Saio com uma certa tristeza. Tendo eu estado quatro anos como vereador e ter tido um esforço diário, com milhares de quilómetros feitos neste concelho, sábados, domingos, feriados e noites, tendo feito um trabalho de oposição, tenho pena que não deixe um produto material maior que as pessoas possam ver. Gostava de ter deixado coisas que justificassem ter passado por essa responsabilidade. A única coisa que fiz foi opor-me ao que achava estar errado, tentar condicionar aquilo que podia ser condicionado e tentar ajudar a que fossem feitas as coisas correctas e necessárias. Ao fim de quatro anos sinto que o produto desse esforço é infinitamente menor que o esforço produzido, fruto de não ter pelouros.Como viu a entrega de pelouros à coligação Novo Rumo?A partilha de pelouros é um arranjo de família. Quando há desacordo ele é fingido. Nós temos uma política que está abalizada por circunstâncias que a direita vai compondo e que mesmo os elementos do PS que não são tão à direita acabam por ceder.O homem de letras que destruiu helicópterosNatural da região do Alto Douro, Carlos Coutinho, antigo vereador da CDU na Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, nasceu em 1943 em Fornelos, concelho de S. Marta de Penaguião, próximo de Vila Real. Veio para Lisboa ainda novo para ser jornalista. Escreveu nos jornais “Vida Mundial” e n’ “O Século”. Privou com Virgílio Ferreira, Miguel Torga e Jorge de Sena. Frequentou tertúlias anti-fascistas e diz que foi aí que “cresceu”. Acabou na guerra colonial sem disparar uma bala. Voltou a Portugal, ingressando nas brigadas revolucionárias do PCP, as ARA (Acção Revolucionária Armada), destruindo e sabotando aeronaves portuguesas estacionadas em Tancos. Dentro dessas brigadas sabotou o Cunene, um cargueiro português que levava armas para a Guiné. Foi preso por causa disso e torturado em Caxias. Foi libertado no 25 de Abril de 1974. Abandonou a escrita para se dedicar à pintura, mas não mostra os seus quadros a ninguém. Carlos Coutinho foi convidado do Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, para uma conversa sobre os “Encontros e Desencontros” com aquela corrente literária e confessou não ter gostado que os suplementos literários dos jornais acabassem. Vive na Póvoa de Santa Iria, onde toma a bica matinal no único café que permite que se fume no seu interior, situado na Rua do Bonfim. “Tudo o que sou hoje é fruto do que acontece à minha volta”, garante.
“Fui interrogado em Caxias durante 300 horas seguidas”

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