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O engenheiro que luta contra as falsificações no folclore

O engenheiro que luta contra as falsificações no folclore

Raul dos Santos Coito é um apaixonado pela etnografia que ficou vacinado da política

Entrevistar Raul dos Santos Coito é enfrentar uma enciclopédia viva no que concerne a folclore e história das tradições populares. E a tarefa é dificultada porque nunca deu uma grande entrevista. Aos 85 anos mantém o cavalheirismo de outros tempos e uma memória fresca que lhe permite descrever com minúcia episódios vividos há 40 ou 50 anos. Em cima da mesa a cábula orienta-lhe as datas e, como gosta de rigor, não se coíbe em consultar sempre que tem dúvidas. Foi um dos fundadores da Associação de Defesa do Folclore dos Templários e homenageado no passado dia 1 de Março, Dia da Cidade de Tomar.

Foi homenageado no Dia da Cidade de Tomar por ser um dos sócios fundadores da Associação de Defesa do Folclore dos Templários. O que representa para si?É pelo menos uma prova do reconhecimento do trabalho que fomos fazendo. Eu já tinha uma prova da associação, que me constituiu sócio honorário. Fui sempre um tomarense que gostei de estar em Tomar. E trabalhei sempre muito nas coisas de Tomar. Por exemplo, na organização da Festa dos Tabuleiros…A primeira vez que entrei na festa foi em 1966, com o arquitecto Mota Lima como mordomo. Comecei por fazer os peditórios, de porta em porta. Recordo que ao Colégio Nun’Álvares ninguém queria ir por causa do carisma do seu director, o Dr. Raul Lopes. Fui lá e expliquei-lhe que andava naquela zona a fazer o peditório para a Festa dos Tabuleiros e não queria deixar de lá passar. Mandou-me passar lá noutro dia. Deu-me dez contos o que, naquela altura (1966), era muito dinheiro. Pela festa, enfrentou maus feitios?Um dia fui bater à porta de uma pessoa conhecida que me disse que para a Festa dos Tabuleiros não dava nada. Respondi-lhe que fazia o que entendesse mas que era minha obrigação, como membro da comissão, bater-lhe à porta. Agradeci e vim-me embora. Eu achava que devíamos bater à porta de toda a gente. Desde o rés-do-chão até ao último andar. Que outras funções teve na festa?Trabalhei muito tempo nas ornamentações das ruas. Em 1968, o nosso mestre era o Eduardo Puga. No primeiro dia da reunião, o chefe da comissão mandou-nos desenhar num caderno um elemento para ornamentar as ruas. Tinham que ter uma decoração vertical, ao longo da rua, causa das perspectivas dos tabuleiros. Pelo que vê, a Festa dos Tabuleiros de hoje é muito diferente da desses tempos?É quase a mesma coisa. Antes, o traje do homem não era muito significativo. Usavam umas calças de qualquer cor e a camisa não era branca. Não gostava. Numa das festas pediram-me para fazer o cortejo – só fui mordomo oficial na Festa dos Tabuleiros de 1981 - e impus que todos os homens usassem calças pretas, camisas brancas e gravatas vermelhas, igual à cor da fita que tinham à cintura. Cheguei a desenhar o cortejo todo e a calcular o comprimento. A volta tem quatro quilómetros (neste momento agarra na caneta e desenha um croqui de todo o trajecto) e eu andava a pé exactamente pelo sítio onde passava o cortejo, desde a Mata dos Sete Montes à Praça Dom Manoel (Praça da República) e vai arrumar no antigo Regimento de Infantaria XV, junto ao Convento de São Francisco…E alguma vez levou um tabuleiro?Não. Nunca levei ou acompanhei. O meu filho é que, quando estava a estudar em Paris, veio cá ver a festa e perguntei-lhe se queria ir tirar fotografias ao cortejo. Mandei-lhe vestir o traje com o barrete no ombro e lá foi com as máquinas fotográficas. Porque é muito desagradável no cortejo ver os fotógrafos e jornalistas sem terem o traje. Ao menos de camisa branca e calça escura ou preta. Para não estragar a imagem a quem está a assistir. De todas as festas tem alguma mais marcante?Sim, a festa em que a minha neta de 19 anos levou um tabuleiro à cabeça há duas festas atrás (2003 e 2007). Os meus filhos acompanham a festa e vestem-se a preceito neste dia. Até há um episódio curioso na última festa porque estava uma senhora, por acaso de etnia cigana, sem par e foi o meu filho que a acompanhou. O que pensa da recém-anunciada candidatura da Festa a Património Imaterial da Humanidade?Acho bem. Tomar tem uma festa única no mundo e junta-se tanta gente neste dia. Pena é que passada meia hora de acabar as pessoas desapareçam todas. É impressionante.Aos 85 anos tem muito boa memória. Qual é o seu segredo?Nenhum (risos). É a ginástica mental. Ainda hoje vou todas as tardes para o meu escritório fazer cálculos de betão armado. Ainda calculo umas vigas de ferro. Só ainda não consigo desenhar no computador. Tenho preguiça de ir aprender porque estou habituado ao estirador. Mas penso tirar uns dias para ir ao Porto, onde tenho um afilhado, para aprender a mexer no computador. Singularidades de um engenheiro em tempos de tropaPassou apenas treze meses na tropa mas tem gratas recordações desse tempo, histórias que recorda com vivacidade. Fez o curso de sargentos milicianos em Évora, e em Vendas Novas o curso de oficiais. Um capitão estava a ensinar a mexer num aparelho de topografia e ele andava, curioso, por ali à volta. “Você não percebe nada disto”, lançou-lhe o capitão. “Percebo qualquer coisita porque fiz agora o curso de engenharia no Instituto Industrial de Lisboa”, replicou. “Então venha cá e ensine os seus colegas a mexer no aparelho”, ordenou-lhe o superior. “Passei de observador a professor em poucos segundos”, conta a rir. De Vendas Novas foi para Leiria onde foi oficial orientador de grupo de Artilharia 4. Era ele que dava orientação às bocas-de-fogo. “Certa vez refiz as contas de um superior e vi que as bocas-de-fogo estavam apontadas na direcção errada. Ele tinha-se enganado em 11 graus. Venho a correr do ponto de onde estava para corrigir a direcção. Sentei-me numa pedra, revi outra vez as contas – não fosse eu ter-me enganado - e quando saiu o primeiro tiro suspirei de alívio”. Sempre teve queda para a matemática e para a topografia e foram estes conhecimentos que fizeram com que saísse da tropa com 24 anos já com a patente de tenente. “Passagem na política é para esquecer”Como é que alguém do ramo da engenharia se envolve apaixonantemente pelo folclore?Fiz parte das listas para a Câmara de Tomar e fui eleito vereador no mandato do Dr. Amândio Murta (PSD). Já ia com a missão específica de ficar com a parte do turismo. Naquela altura tínhamos um orgulho muito grande naquela casa (Edifício do Turismo Municipal) conhecido pela Comissão de Iniciativa e Turismo. Foi a partir daí que entrei no folclore. Mas a minha passagem pela política é para esquecer. Não fiquei bem no retrato. Porquê?As pessoas são muito cruéis. Na altura tinha a empresa que concorreu a uma obra. Parece que eu, na qualidade de sócio, não devia ter concorrido. Foi a que fez o preço mais barato e por isso foi a escolhida para fazer a obra. Quando estava quase feita começaram-me a dizer que tinha que pedir a demissão da câmara. Disse que não pedia nada porque estava apenas a dois meses de acabar o mandato. Além disso quem pagava a obra não era a autarquia era o Instituto Nacional de Estatística. Não gostei da experiência. O que lhe parece Tomar de hoje, em termos de urbanismo?Isto cresceu muito. Pode não ter crescido muito bem mas cresceu muito. A cidade foi aberta demais. Deixaram fazer casas por todo o lado, debaixo das oliveiras, muitas vezes sem água nem esgotos. Agora para fazer essas infra-estruturas é uma carga de trabalhos.Tem algum projecto seu marcante na cidade?Desenhei muitos edifícios e projectei outros tantos. O da Caixa Geral de Depósitos, na Corredoura, por exemplo. Quando comecei a trabalhar toda a gente queria fazer montras e fiz uma série delas. O prédio mais alto de Tomar, na Rua Everard em frente às Finanças, fui eu que fiz o projecto. Foi um dos primeiros que teve elevador cá em Tomar. “Há muita coisa que se dança que não é folclore”Qual foi o primeiro festival de folclore que ajudou a organizar?A Gualdim Pais organizava festivais de folclore e quem fazia aquilo, Fernando Tomás, veio ter comigo - eu era na altura (1981) o vereador responsável pelo turismo - para arranjar subsídios municipais. Era algo que movimentava público e as casas faziam negócio. O turismo é isso mesmo: as pessoas virem aqui aos espectáculos, gastarem dinheiro e irem-se embora. E então começamos a fazer os festivais na Praça de Touros. Arranjei maneira da câmara pagar o rancho mais caro e o mais barato. Os outros era a Gualdim Pais que pagava. A certa altura disse-me o (Joaquim) Santana que não metesse nenhum grupo de Tomar porque nenhum prestava. Disse-lhe que fazia dois festivais, um na Praça de Touros e outro na Mata dos Sete Montes só para os grupos de Tomar. Neste último estavam representantes da Federação de Folclore a tomar notas e a ver o que é que os grupos precisavam para ficarem em condições…No fundo, avaliavam os grupos?Sim. A partir daí começámos a trabalhar todas as semanas com os grupos de Tomar nos pavilhões da FAI. Aos sábados à tarde apresentavam aquilo que tinham e estavam elementos da federação que criticavam o que estava bem ou mal. Porque há muita coisa que se dança e que não é folclore. Trabalhámos ao longo do ano e acabámos por federar quatro ranchos no mesmo dia: Asseiceira, Minjoelho, Alviobeira e Carregueiros. Depois disso já federámos o grupo da Linhaceira. Foi este trabalho que esteve na génese da fundação da ADF Templários?Sim. A Associação de Defesa do Folclore foi fundada no dia 4 de Setembro de 1986. Antes, como disse, durante um ano realizámos os trabalhos de ensaios com os grupos e, normalmente, esse sábado acabava com reuniões no edifício do turismo - com os directores dos grupos - onde acabávamos a comer uma rodela de chouriço e a beber um copo de tinto que tínhamos no frigorífico. Como precisávamos de trabalhar com os grupos todos da Região de Turismo resolvemos constituir a associação. E como é que faziam com os grupos de fora de Tomar?Com a ajuda da Região de Turismo, que nos facultava os carros, íamos visitar os grupos. O primeiro que visitámos foi em Proença-a-Nova, na Sobreira Formosa. Era uma professora que estava à frente do grupo. Corrigíamos o que estava mal e tentávamos prepará-los para serem federados. Deste modo são reconhecidos no país todo. No Sardoal há vários grupos mas só um é federado, os Resineiros. Em Abrantes federámos dois grupos, o do Tramagal e o de Vale das Mós. E há outros. O que é necessário para um grupo ser federado?Tem que ser o conselho técnico da Federação a propor a candidatura. As modas têm que ser da região. O traje também tem que estar adequado à região e o calçado também é muito importante. O calçado do homem deve ser feito à mão porque não é vulcanizado, é cosido. Há poucos sapateiros a fazer isto actualmente. Os sapatos têm que ter atacadores e os das raparigas, normalmente, botões. As saias têm que tapar o tornozelo. Se é um traje de 1900 as mulheres nem sequer mostravam os tornozelos. É difícil passar toda esta informação às gerações mais novas?Um pouco. As camisas dos homens não tinham colarinhos e tinham uma presilha em baixo. Perguntamos aos homens para que serve esta presilha e eles não sabem. Não sabem que era para segurar as ceroulas (risos). A camisa atava por dentro da ceroula. As cintas na nossa região são pretas. As vermelhas só se utilizam na borda de água e por quem toma conta do gado. Uma vez tive uma discussão muito grande sobre as cintas. Mas consegui levar a minha avante. É preciso trabalhar muito. Li muito sobre folclore e sobre o traje português para cada região.E quem é que paga este vestuário específico?A associação só dá as indicações. Os grupos é que têm que comprar. E comprar os tecidos apropriados. Não há subsídios para ninguém. Nós só pedimos que eles não comprem sem dar conhecimento à associação porque senão compram coisas que não servem. Agora é muito difícil encontrar certos tecidos. Os lenços das senhoras têm que ser virados do avesso para ver se são novos ou de época. Só se encontram nas lojas mais antigas. Vende-se muito gato por lebre. De dia trabalhava como engenheiro, as noites eram passadas à volta do folclore. A família compreendia essa entrega?Sim, que remédio (risos)... E viajou muito para assistir a festivais de folclore?Não. Nunca acompanhei os grupos para parte nenhuma. Isso custava dinheiro e eu evitava dar essa despesa. Mas os grupos também não costumam convidar muito. Como é que vê o futuro do nosso folclore?Os grupos têm que sensibilizar os mais novos para que o folclore não se desvirtue. Eles têm que saber porque é que usam um lenço vermelho ao pescoço. Que é para não entrar pó. A pessoa que está à frente do grupo tem que saber muito sobre folclore. E se não sabe tem que chamar alguém que perceba. O rigor tem que ser mantido.Mas como é que se convence, por exemplo, um rapaz de 9 anos a largar o jogo de computador e a vir ensaiar uma modinha?Normalmente, quando os pais andam no folclore os filhos também aparecem. É um trabalho que tem que ser feito pelas famílias. Mas considero que é muito difícil hoje em dia trazer os mais novos para o folclore. De aluno a professor na Escola Industrial de TomarRaul dos Santos Coito nasceu a 14 de Outubro de 1924, no número 47 da Rua General Tamagnini de Abreu, junto à Várzea Grande, em Tomar. Era o segundo mais velho de quatro irmãos, o único que ainda é vivo. Aos 11 anos entrou para a Escola Industrial de Tomar (actual Jácome Ratton) depois de estar um ano de interregno em casa, tendo como professor o próprio pai. “Entrei antes dos sete para a primária e ainda não tinha idade para entrar na industrial. Durante um ano o meu pai mandou-me fazer cópias de 75 linhas para eu não me esquecer. Isso fez-me muito mal”, relembra. Chegou a ter a hipótese de entrar para o Colégio Nun’Álvares mas acabou por entrar mesmo na Escola Industrial onde fez o curso de serralheiro por influência do pai, construtor civil que tinha uma oficina de carpintaria. “Hoje tenho alguma pena de não ter estudado no Colégio Nun’Álvares”, lamenta. Ruma para Lisboa, onde prossegue os estudos na área de engenharia no Instituto Industrial, entrando no curso de construção civil, obras públicas e minas. Aos 23 anos, com o curso feito, voltou a Tomar e foi procurar lugar como professor na mesma escola onde tinha aprendido. Não havia vagas e durante um ano foi dar aulas de desenho e trabalhos manuais em Ourém. Um ano depois consegue lugar e dá aulas durante 16 anos, até ao 25 de Abril, altura em que deixa o ensino e se dedica em exclusivo à engenharia. “Tive uma turma com 32 raparigas e eram todas ‘Marias’. Levei-as a exame e passaram todas”, recorda. A filha, Paula, é arquitecta e o filho João é engenheiro. Tem uma neta e dois bisnetos gémeos.
O engenheiro que luta contra as falsificações no folclore

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